“Nunca pensei em sair, mas melhorar o lugar onde moro”

Em um grupo do Facebook que participo, alguém faz uma pergunta: Se pudesse viajar no tempo e dar um conselho pra você mais jovem, qual daria? Entre vários conselhos bacanas, tive que ler esse: (copiei e colei exatamente como estava escrito) “saia de casa aos 18, família é o inferno na terra, não more na […]

Por Redação

30|08|2017

Alterado em 30|08|2017

Em um grupo do Facebook que participo, alguém faz uma pergunta: Se pudesse viajar no tempo e dar um conselho pra você mais jovem, qual daria?
Entre vários conselhos bacanas, tive que ler esse: (copiei e colei exatamente como estava escrito) “saia de casa aos 18, família é o inferno na terra, não more na periferia, guarde dinheiro, não gaste com bobagens, vai embora do Brasil, só acredite na sua voz interior, viaje o quanto puder e ria de tudo e de todos!”. Esse “não more na periferia” – não aguentei e a partir daí rolaram diversas discussões entre a moça, que é pedagoga, outro rapaz e eu.
Eu nasci, cresci e ainda moro na periferia. Vim da Zona Leste, Engenheiro Manoel Feio, mas moro na Norte há mais de 25 anos. Comecei a trabalhar ainda adolescente pra melhorar minha condição. Minha mãe comprou um terreno na quebrada mesmo. Até hoje, há quase 20 anos, ainda estamos pagando e construindo. Por quê? Ou constrói a casa ou paga o terreno.
Tenho orgulho sim daqui, da vida que levei e que vivo. Sempre trabalhei em mais de um emprego pra pagar as contas, estudar e o tal “melhorar de vida”, mas nunca pensei em sair de onde moro. Sempre pensei em melhorar o lugar onde moro. E até hoje não sei o motivo de pensar diferente. Não sei o que é morar perto do metrô, de bancos etc. Aqui não tem ponto de referência de pontos turísticos ou de avenidas conhecidas.

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Vista da Jova Rural, zona norte de São Paulo (Créditos Priscila Gomes)


Conheço todo mundo daqui e a maioria pelo nome. Construímos nossas casas juntos onde um emprestava a água para o outro, recebia o material em nome do outro etc. A minha casa é a menos acabada da rua, ou digamos “mais atrasada”, ainda falta o acabamento. Deve ser por a minha família ser a menor da rua, somos apenas 2, então o processo e progresso são mais longos.
Aqui somos esquecidos pelos governantes, fora nas épocas de eleições. Aí recebemos muitas visitas, até entram na casa da gente e tomam café, olha só. Época boa porque as praças são arrumadas e os córregos são limpos. Até as calçadas são pintadas, árvores podadas constantemente.
As novidades chegam aqui por último e quando temos a sorte de ter. Internet banda larga? Não, aqui não tem Vivo, Net e os caramba a quatro. Passei os quatro anos da faculdade estudando com internet discada. Os empreendedores da comunidade prestam serviço de internet via rádio e agora tem até de fibra. Não, vocês que moram na “gema” ou “centro” não vão conhecer as empresas que têm aqui. São muito boas e recomendo. E são nas dificuldades que nascem as empresas. Vejo isso por aqui.
Pontos de ônibus de vidro realmente aqui demoraram pra chegar. Fiz uma reportagem sobre isso. Merecemos o mesmo tratamento dos “melhores” bairros da cidade, pois pagamos impostos tanto quanto eles.
Quando preciso de um táxi pra voltar pra casa, é difícil. Porque os motoristas já falam: você mora no morro? Não vou até lá. Sim, podem acreditar. Já tive que abrir os braços no meio da rua, parar o táxi e implorar, quando minha mãe uma vez passou mal e precisamos de um carro. Tive que mostrar o dinheiro antes e falar que ele não precisaria subir o morro.
Temos outros problemas por aqui. Quando alguém morre pela polícia, os ônibus são atacados e em seguida os outros são recolhidos. Já fui embora pra casa de madrugada a pé ou por causa da enchente ou por falta de ônibus mesmo. Ah, tem o fluxo de domingo também. O povo fecha a rua e rola funk. Sim, porque é muito mais barato e seguro se divertir por aqui mesmo.
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Mas na boa, tento fazer o que posso pra melhorar o bairro, passar para as pessoas o que temos de bom por aqui. E quer saber? Tem muita coisa boa. Temos muitos trabalhadores voluntários que não desistem do que fazem e o melhor: acreditam nas pessoas, que elas podem mudar o rumo das suas vidas.
Aqui mora gente que gosta de trabalhar, empreender, lutar por melhorias. Lutamos por asfalto, água, luz, documento do nosso terreno, mais linhas de ônibus, saúde, educação. Somos esquecidos sim. Por isso que aqui ainda não chegou o metrô, internet, TV por assinatura. Nem sei se existem planos para isso.
Aqui nascem sonhos e alguns são realizados: família, empresa, casa, filhos. Já conheci e fiz matérias sobre várias ONGs, voluntários, e que, de algum modo, tentam melhorar a vida dos moradores daqui de alguma forma. Ah, eles não desistem e nem desanimam. Podem acreditar.
Tem quem dá aulas de ballet para jovens, quem ensina adultos a ler e escrever e ainda outros que estimulam crianças e jovens a fazerem horta.
Até posso um dia sair da quebrada, me livrar dos “problemas” daqui, mas pelos menos mostrei as coisas boas que temos, tentei melhorar também de alguma forma. Talvez pudesse fazer mais. Uma certeza eu tenho: vou sentir saudades.
Priscila Gomes, 33, é moradora da Vila Zilda, zona norte da capital. Jornalista, é uma das fundadoras do Nós, mulheres da periferia.
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Priscila Gomes é jornalista e moradora da Vila Zilda, zona norte de São Paulo.