Do Rio de Janeiro à Palestina: a militarização dos territórios

Gizele Martins, jornalista, moradora e articuladora do Complexo da Maré (RJ), fala sobre as similaridades entre Brasil e Palestina e a violência estatal em ambos os territórios. Confira!

Por Jéssica Moreira

24|05|2021

Alterado em 24|05|2021

Cria do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, a jornalista Gizele Martins tem refletido há anos sobre a militarização do Estado destinada aos corpos de pessoas negras e faveladas. Em 2017, ela também pode ver de perto os pontos que unem as favelas do Rio à Faixa de Gaza na Palestina.

O convite veio a partir de uma articulação entre o Movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), que luta pelo fim da opressão contra palestinos e pressiona o Estado de Israel a respeitar o direito institucional, e o movimento de favelas e de mães do Rio de Janeiro que perderam seus filhos para a violência estatal.

“Foi o período em que as famílias sofreram com mais invasões das unidades de polícia pacificadora (UPPS), do Exército. Sofremos remoções e muitas das empresas que financiam o apartheid junto ao Estado sionista israelense na Palestina também estavam negociando sua entrada durante os mega eventos do Brasil”, explica Gizele.

A região, que vive um conflito histórico, teve o confronto ampliado depois da Suprema Corte de Israel dar uma ordem de despejo a famílias palestinas que vivem em Jerusalém Oriental. Antes mesmo do dia 10, a população contrária à expulsão dos palestinos já saía às ruas de bairros majoritariamente árabes de Jerusalém, sofrendo com a repressão da polícia de choque israelense.

Até o cessar-fogo anunciado em 21 de maio, 232 palestinos haviam sido mortos. Desse total, ao menos 63 crianças eram crianças e 36 mulheres. Do lado israelense, 12 pessoas morreram. Os dados são da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente).

Após um longo processo de articulação, foi realizado um convite para o movimento de favelas ir para a Palestina junto ao movimento BDS do Brasil em 2017. Gizele foi a pessoa nomeada por todo o movimento de favelas. “Já que eu falo muito sobre militarização da vida, também por ter sofrido com a invasão do exército na Maré, durante 2014. A ideia era ver presencialmente e tentar juntar a luta deles à nossa”.  Confira a entrevista na íntegra abaixo!

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Gizele Martins, 34, é cria da Maré, jornalista comunitária e ativista pró-palestina

©Arquivo pessoal

 

Nós, mulheres da periferia: Quais foram suas descobertas neste processo? Há relação entre a realidade do Rio de Janeiro com a Palestina?

Gizele Martins: Indo à Palestina, eu descobri que a gente tem muita coisa em comum. Que lá é um laboratório da política da morte, de uma política racista, sionista e uma política de apartheid. Os territórios palestinos e a população palestina são feitas de laboratório de uma política de militarização. Ali há inúmeras empresas que fabricam o caveirão, que fabricam helicópteros, câmeras de vigilância e fabricam técnicas militares de matar. Após essas técnicas serem experimentadas no território e na população palestina, elas são vendidas para o mundo.

Não por acaso, o Brasil faz há 10 anos a realização de uma feira de armas, o que chamamos de feira da morte. Nessas feiras, realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, são apresentadas as armas mais vendidas e aquelas armas experimentadas contra o povo palestino. Foi na Palestina também que aprendi que não existe guerra ali, pois na verdade o que eles vivenciam é um massacre, assim como o que a gente vivencia nas favelas do Rio de Janeiro.

Nós: Quais são as outras semelhanças que você notou?

Gizele Martins: A gente tem muita coisa em comum. O muro que temos na Favela da Maré, que chamamos de Muro da Vergonha, é espelhado nos muros do apartheid na Palestina. Os primeiros caveirões que chegaram nas favelas do Rio de Janeiro vieram do apartheid da África do Sul. Os novos caveirões vêm do apartheid da Palestina. As armas experimentadas no corpo palestino são as mais vendidas no Brasil e na América Latina.

As técnicas militares utilizadas pelo exército israelense na Palestina são vendidas para todo mundo. Não por acaso a polícia militar brasileira, a carioca, durante os mega eventos no Brasil foi até a Palestina fazer treinamento. Ou seja, são muitas relações que o estado terrorista brasileiro com o estado terrorista israelense têm comerciais e em detalhes. Eles financiam o apartheid na Palestina e financiam o genocídio da população negra moradora de favelas e periferias no Brasil.

Nós: Por que devemos utilizar o termo ‘massacre’ e não ‘guerra’ na Palestina?

Gizele Martins: Assim como existe uma guerra na Palestina, o que existe ali é um massacre, pois guerra seria se existisse forças militares e políticas em comum. Isso não existe. O exército israelense tem todas essas forças nas mãos, assim como o Governo brasileiro também. O que a gente vivencia na favela não é uma guerra, é um massacre.

O que existe, tanto na Palestina quanto nas favelas, não é um confronto, é um massacre.

É uma forma de controlar as populações e povos que os Estados ricos querem empobrecer. Os povos que eles querem usar para treinamento militar e bélico.

Nós: Institucionalmente, qual é o posicionamento do Brasil no que envolve Palestina e Israel?

Gizele Martins: Existem muitas relações entre o Estado brasileiro e o israelense. O  Bolsonaro, inclusive, assim que ganhou a eleição, foi para Israel para fazer negociações; é um governo federal que apoia o Estado israelense e apoia a ideia de que Jerusalém não é capital da Palestina, que é capital de Israel. O Governo brasileiro hoje é um apoiador do estado israelense.

Nós: Você faz algum paralelo dessa militarização brasileira e palestina também na Colômbia, onde ativistas estão sendo violentados pelo Estado por reivindicarem seus direitos?

Gizele Martins: O que acontece na Colômbia também é muito parecido com o que ocorre no Brasil e com o que ocorre na Palestina. A população ali vem sendo massacrada. As forças militares utilizadas na Colômbia, na Palestina, nas favelas, são contra o povo negro e favelado.

A gente vive as mesmas consequências de forças bélicas e militares colocadas por países e governos racistas. Por governos que querem se manter no poder e para isso querem acabar com nossas vidas, controlar nossas vidas e nos silenciar.

Uma das formas de controlar e silenciar a gente é por meio das forças bélicas. Não à toa, esses estados têm suas ligações militares. O que ocorre na Colômbia é desaparecimento forçado, silenciamento e enorme violência aos protestos. Quando a população está na rua, é a mesma coisa que ocorreu no Brasil em 2013, é o que ocorre na Palestina quando tentam manifestar. São as mesmas forças militares.

Nós: Em que contexto ficam as mulheres, no Rio, na Palestina ou na Colômbia?

Gizele Martins: A questão das mulheres, seja no Rio, na Colômbia ou na Palestina, é que a militarização impacta o corpo da mulher de outras formas. Na Colômbia, há casos de mulheres que estão sofrendo violência sexual. Na Palestina, mulheres têm perdido suas casas. Há um processo de impacto psicológico.

Tem um impacto militar que atravessa a vida das mulheres e nas favelas do Rio de Janeiro também. O estado terrorista e militar brasileiro tem acabado com os filhos de mulheres negras, acabado com os filhos dessas mulheres que vão viver esse luto durante toda a vida por ter perdido seus filhos para a violência estatal, por um massacre colocado pelo Estado.

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