Covid-19 nas periferias: Estado falha no controle local da pandemia
Pesquisadoras apontam falta de atenção às diferentes realidades da cidade. Mortes continuam em queda, mas índice dos distritos periféricos permanece entre os mais altos.
Por Regiany Silva
28|10|2020
Alterado em 28|10|2020
São mais de 12 milhões de habitantes, 96 distritos e realidades brutalmente desiguais. Em São Paulo, uma das maiores metrópoles do mundo, a Covid-19 desembarcou primeiro nas áreas nobres, vindo direto da Europa. Com o tempo, o vírus viajou até as periferias da cidade, ocupando os corpos de quem atravessa pontes diariamente para trabalhar e sobreviver.
Ao longo dos sete meses da pandemia, diferentes estudos têm mostrado como a heterogeneidade dos territórios e a experiência que as pessoas têm na cidade podem ser determinantes para o impacto e, ao mesmo tempo, chaves para o enfrentamento da Covid-19.
Nos últimos meses, Nós, mulheres da periferia, em parceria com o portal Alma Preta, apresentamos semanalmente o boletim “Curva das periferias: negros e pobres diante da pandemia”, um esforço jornalístico de acompanhar os números da pandemia mais de perto, e entender o impacto dela nos distritos da cidade e na vida da população pobre e negra que vive na periferias.
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A partir desta semana, além de apresentar os números absolutos, de mortes e casos, agregados por distrito – como é disponibilizado pela Prefeitura de São Paulo – vamos apresentar o ranking dos distritos também por taxa de 100 mil habitantes.
O cálculo dessa taxa é feito da seguinte maneira: o número total de mortes é dividido pelo número total da população do distrito e multiplicado por 100.000. Essa leitura possibilita ver os dados a partir da proporção de moradores em cada território.
“Para começar a fazer comparações entre as mortalidades em diferentes regiões da cidade é necessário relativizar o número, estabelecer um denominador que pondere essa mortalidade pela população e transformar esse número em uma taxa, por isso multiplicar 100 mil, mas poderia ser por mil ou por milhão. Como estamos analisando uma cidade bastante populosa, o coeficiente por 100 mil acaba sendo o mais adequado”, explica Lara Cavalcante, estudante de arquitetura na FAU- USP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e pesquisadora do Instituto Pólis.
O boletim de hoje mostra que Sapopemba, Brasilândia e Grajaú permaneceram até setembro registrando, em números absolutos, mais mortes na conta acumulada. Enquanto Barra Funda, Jaraguá e Pari, continuam a contabilizar os números mais baixos.
Grajaú e Barra Funda, pontas inversas deste ranking, possuem realidade muitos distintas. Um, na periferia da zona sul, concentra mais de 300 mil habitantes, enquanto o segundo não chega a 15 mil moradores, de acordo com dados do IBGE( Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) 2010. Até setembro, Grajaú já havia contabilizado 428 mortes, enquanto entre os moradores da Barra Funda, o número total era de 28 óbitos.
Ao mesmo tempo, no ranking por taxa de 100 mil habitantes, os maiores números se concentram em distritos como Belém e Água Rasa, na zona leste, e Brás, no centro, com taxas de 244, 237, e 243 óbitos para cada 100 mil habitantes, respectivamente.
Lara explica que distritos com uma população muito pequena, como Belém e Brás, com 45 e 33 mil habitantes respectivamente, tendem a aparecer nos primeiros lugares do ranking por taxa porque qualquer alteração pequena no número representa um aumento significativo na taxa.
No entanto, outros distritos, como Freguesia do Ó, Artur Alvim e São Miguel, com cerca de 100 a 140 mil habitantes, todos na periferia da cidade, também se destacam no topo desse ranking.
Para Gisele Brito, pesquisadora do LabCidade FAU-USP e mestranda em Planejamento Urbano, a forma como se lê os dados é um fator crucial para pensar as políticas públicas. Se olharmos apenas a distribuição do número total por distrito, sem cruzar os casos e a mortalidade com outros fatores, como acesso à saúde, comorbidades, condição econômica, mobilidade urbana e circulação na cidade, caímos no risco de reforçar estigmas sobre a periferia.
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“A história do urbanismo mundial é de estigmatização de regiões por uma determinada doença, por uma questão sanitária, e depois, como solução, passam o trator em cima. Então, essa leitura interessa para quem?”, questiona.
Para ela, uma análise simplista que associa diretamente as periferias e suas formas de habitação com um risco mais alto de contágio coloca as favelas no lugar de problema, e, por isso, lugares que devem ser controlados e derrubados. “A gente deveria estar olhando para distribuição de remédios, profissionais de saúde, leitos hospitalares associados a essa tendência de morte”, reforça.
As duas pesquisadoras defendem que as ações de políticas públicas deveriam ter considerado a realidade de cada território, mesmo com gestão centralizada, mas orientadas de forma territorial.
“Os profissionais da saúde que lidam diretamente com os territórios, que conhecem as especificidades, comorbidades, fatores de risco, que de fato acompanham a população, foram subutilizados. Já existia uma estrutura capilarizada com os programas de atenção primária do SUS (Sistema Único de Saúde), a partir das UBSs (Unidade Básica de Saúde), com os agentes comunitários de saúde, que já desempenhavam o papel de vigilância nos territórios, mas optou-se por não utilizar esse contingente de profissionais”, destaca Lara.
Não entrou na conta que a vivência na cidade é diversa e por isso o contágio ou a capacidade de proteção também seriam bastante desiguais – Lara Cavalcante
Para a pesquisadora, abrir mão da atuação local, que deveria acontecer pela atenção primária, enfraqueceu o combate à doença nos territórios, visto que o SUS também desempenha um papel informativo, de conscientização e combate às notícias falsas. “Os territórios possuem características muito diversas e, por consequência, demandam ações diferentes. Só assim é possível construir políticas públicas que sejam consistentes e realmente tenham o objetivo de intervir nas desigualdades”.
Para Gisele, a escolha de atuar de forma mais territorial e direcionada à realidade de diferentes populações passa, antes de tudo, por uma escolha de quem é defensável e de quem é matável. “Temos que lembrar que isso nasceu circulando entre os ricos, e quando isso aconteceu o Estado tomou uma ação imediata. Quando a doença vai para os territórios de morte, as periferias, onde estão os pobres, os negros, eles ficaram esperando a tal da imunidade de rebanho”, afirma.
Confira os dados completos no 6º Boletim Curva das Periferias:
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