As figuras escondidas da periferia e as meninas que sonham em ser cientistas

Sem firulas ou efeitos especiais mirabolantes, o longa emociona quando mostra a importância de Katherine no cálculo das trajetórias de astronautas ao espaço

Por Jéssica Moreira

15|03|2017

Alterado em 15|03|2017

Ao assistir ao filme Figuras Escondidas (2016, de Theodore Melfi), que no Brasil recebeu a tradução de Estrelas Além do Tempo, é impossível não remeter a história de três negras americanas que trabalharam na NASA – Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Mary Jackson (Janelle Monáe) e Doroty Vaughan (Octavia Spencer) – às trajetórias das meninas pretas da periferia que sonham em se tornar cientistas.
O filme, que mostra de maneira sensível e realista, as histórias não-contadas da corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética, em meados da década de 60, traz como pano de fundo a segregação racial norte-americana e a corrida incessante de mulheres pretas para alcançar seu espaço em um ambiente essencialmente machista e racista.
Leia também: Que horas ela volta? E os sonhos de minha mãe para mim 
Sem firulas ou efeitos especiais mirabolantes, o longa emociona quando mostra a importância de Katherine no cálculo das trajetórias de astronautas ao espaço. A resiliência de Mary ao se tornar a primeira negra em um curso de Engenharia só para homens. E a insistência de Doroty para ser reconhecida em um cargo de poder. E, aqui no Brasil, será que as meninas negras da periferia podem sonhar em ser cientistas? Quais são os empecilhos que ainda enfrentamos para alcançar esse objetivo? Por que não podemos deixar nossos grandes sonhos pra trás?
Desde os nove anos de idade Sabrina sonha em estudar Astronomia. Naquela época, sempre que os olhos se voltavam para o céu, tentava imaginar a vida para além de nosso planeta e quão interessante seria estudar os astros que, de longe, avistava. Passados alguns anos, é no Instituto de Física da USP (Universidade de São Paulo), que a jovem de 22, negra e moradora do extremo norte da cidade de São Paulo, caminha para alcançar esse objetivo.

Image

Sabrina Martins, estudante de Física da USP, quando passou no vestibular em 2014| Arquivo pessoal


“Nunca é claro para a gente como ser uma astrônoma. Porque a gente sempre ouve falar de profissões mais voltadas para o mercado de trabalho. ‘Ah, então você tem que ser advogada, engenheira’, mas nunca para ciência pura. E a gente da periferia, a gente que é pobre, a gente nem sabe como é feito ciência, não temos essa noção. Então, para onde ir para alcançar esse sonho é sempre uma coisa a se descobrir”.
Foi aos 15 anos que a ideia de prestar vestibular brotou na menina. Ela, que fazia cursos de comunicação comunitária, pensou diversas vezes em estudar audiovisual. Quando estava prestes a se decidir pela sétima arte, se deparou com um guia de profissões. “Aí a moça falava para buscar no passado aquilo que você queria ser quando era pequena e tentar ver se isso ainda fazia sentido. Foi aí que me decidi por Astronomia”.
Foi seguindo seu sonho de infância que ela ingressou em um cursinho pré-vestibular popular onde estudou por, aproximadamente, seis meses. “Foi bem difícil, porque em agosto eu estava estudando coisas que a galera já tinha visto em abril”.
Leia mais: “Na universidade, sou uma das cinco mulheres negras em uma sala de 85 alunos brancos”
Então, para compensar o atraso, todos os dias estudava na Biblioteca Mário de Andrade, das 13h às 18h, quando saía e ia a pé até a Av. Dr. Arnaldo, onde se localizava o espaço. Não foi de primeira, nem de segunda, mas, sim,  na terceira chamada que Sabrina soube que havia ingressado em Física. “Aí eu passei e fui fazer minha inscrição em Física, porque não passei em Astronomia, que era o que eu queria. Mas, hoje em dia, eu percebo que a Física é a base da Astronomia e eu estou bem feliz fazendo este curso e conseguindo direcioná-lo para Astronomia”.
Para ela, que achava que o maior obstáculo era a entrada, descobriu, no decorrer do curso, que a permanência era o grande desafio.  Seu bairro, Brasilândia, está a a 23,6 km do campus universitário. Para chegar até a USP, Sabrina leva, em média, duas horas, em um trajeto que envolve de três a quatro ônibus.
Image

Sabrina Martins, no dia do trote do Instituto de Física da USP.


“Na volta, eu saía do curso às onze da noite e se eu perdesse um ônibus que passava às 23h10 no ponto, o outro era só às 23h30. Já cheguei a perder esse ônibus, e tive que fazer um puta rolê e chegar em casa às duas da manhã. Chegando no Terminal Lapa também, se eu perdesse o da meia noite, só meia noite e meia. Muitas vezes, eu ficava meia hora no terminal esperando a próxima perua. Eu cheguei até a fazer amizade com um motorista. Eu estava no ponto ‘panguando’ e, de repente, o ônibus parou e abriu a porta e o motorista falou: “você ia perder o ônibus” e eu entrei muito agradecida”.
A locomoção diária, atravessando a cidade de norte a oeste, já se configurava e ainda se apresenta como um empecilho, mas, nem de longe, o mais difícil deles.
Diferente da protagonista de Figuras Escondidas, Katherine Johnson, não foi na escola pública que Sabrina se encontrou com os números. “Eu não tinha dificuldade, mas não era fácil, principalmente porque no 2º ano quase não tive essa disciplina na escola”.
E ela não foi a única. Dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes  de 2016, (Pisa, na sigla em inglês), mostram que o Brasil está na 66ª  colocação em matemática e 63ª em Ciências, dos 70 países analisados. A falta de um direito básico, como o ensino de matemática, ainda afasta meninas como Sabrina de realizarem o seu sonho. Uma matéria da Folha de S. Paulo, de setembro de 2016, também mostrou que, segundo os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), caiu o nível de aprendizado em matemática dos estudantes do ensino médio, sendo que apenas 7,3% dos estudantes atingem níveis satisfatórios de aprendizado nessa disciplina.
Não só na entrada da faculdade, onde diversas já ficam para trás, mas é na continuidade do curso que a dificuldade aumenta. Como cita, ainda, outra personagem do filme, Mary Jackson, “toda vez que temos a chance de chegar, eles mudam a chegada”.
Após sua entrada na universidade, Sabrina entendeu que teria que estudar dez vezes mais que seus colegas de sala. Isso porque os cálculos em Física ultrapassavam aqueles que havia conhecido no período escolar.
“Quando começou cálculo, o professor começou falando de trigonometria como uma naturalidade, como se aquilo fosse a coisa mais fácil do mundo e eu nunca tinha tido trigonometria na escola. Estudei Física no cursinho também, só que Matemática não é uma coisa que você consegue aprender em quatro meses, sabe? Então, a naturalidade que ele falava de coisas básicas, que já eram para eu para a faculdade sabendo, eu não sabia! Foi bem impactante a primeira aula, quando eu vi aquele monte de fórmula, aquele monte de coisa, eu só queria correr”.
Foi quando passou a chegar na faculdade às 10h da manhã e estudar até o horário da aula, à noite, para acompanhar o conteúdo das disciplinas. “Foi bem treta, eu tive crise depressiva  no final do primeiro semestre. Eu não passei em muitas matérias, porque eu não conseguia ir para a aula. Foi bem difícil. Pensei em desistir do curso. Às vezes, você começa a acreditar que você não tem talento pra coisa, que é culpa sua que você está indo mal, te fazem acreditar em uma coisa chamada “genialidade”, que alguns são gênios e outros não são. Que você é a parcela da população que não consegue aprender determinadas coisas e ponto. E não, o conhecimento é construído, todo mundo tem capacidade de aprender todas as coisas. Por mais que você tenha consciência disso, às vezes, a outra ideia te consome. Você começa a acreditar que você é inferior. O sistema te faz acreditar nessas coisas, sabe, mas, enfim, eu continuei estudando, bem atrasada em relação às pessoas que entraram comigo”.
Em 2017, Sabrina irá concluir o quarto ano do curso, que possui cinco. Ela ri e diz que isso não significa que irá se formar ano que vem. “Eu levo uns dois anos ainda”. A futura cientista conta que, passados todos esses impasses, está feliz com o curso. “Cheia de dúvidas ainda em relação ao que eu vou fazer depois. Acho que essas dúvidas todo mundo tem, né. Porque o curso continua difícil, mas eu estou gostando bastante do que eu estou aprendendo. O curso poderia ser de outra forma, a recepção às pessoas de outra forma, são várias coisas ali dentro que poderiam ser de outra forma, mas é meio que não deixar as dificuldades entrar em você e no que você quer aprender”.