Estação Luta: escritora faz relato literário sobre cotidiano no trem

"Estão todos em busca de um lugar, de pertencerem a algo, de terem a liberdade que almejam", relata moradora de Guaianases.

Por Redação

01|09|2020

Alterado em 01|09|2020

O sinal do trem apita e fecha o vagão. Sai da plataforma e o próximo horário de embarque é incerto. Pode ser que demore uns cinco minutos, ou trinta. É tudo uma questão de sorte, de São Pedro e talvez de outros santos que permitam as condições necessárias para que as malhas ferroviárias funcionem normalmente.

Quiçá, o indivíduo mais incrédulo no meio desta multidão, que aguarda a chegada do novo trem, torça para que exista uma força universal ou divina que faça a cabine operar da melhor forma possível. Mas quando se trata do trem da periferia da cidade de São Paulo, essa fé muitas vezes é dissipada no ar indo de encontro com a eletricidade dos fios que regem a máquina.

A demora é contínua e faz parte do cotidiano de cada sujeito que precisa se locomover diariamente em busca do seu pão. Quando não é o pão, é o diploma. Às vezes os dois juntos e então, o cansaço é mútuo. Essas pessoas que estão esperando pelo trem levantaram cedo de suas casas e chegarão apenas para a janta, em sua maioria. Mas hoje Deus foi generoso e fez com que o trem com destino à estação Luta chegasse apenas com a diferença de dez minutos do anterior. Os segundos que precedem a entrada, em que todos estão posicionados anteriores, posteriores e mais que posteriores sobre a faixa amarela são os mais efervescentes.

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Trem partindo de Guaianaases

©Ana Prado

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Não há respeito, crença ou lei nesta hora. É cada um por si em busca de um lugar. Estão todos em busca de um lugar, de pertencerem a algo, de terem a liberdade que almejam. Cobertos com a coragem que os move no sentido à “libertação”, entram no vagão do trem desesperadamente. Alguns sentam nos poucos assentos disponíveis, outros permanecem de pé, outros no chão, na esperança de que nenhum guarda solicite que eles se levantem.

Sua mãe não te deu respeito não? – grita uma moça para um homem que a empurrou no momento em que o trem abriu as portas.

Ele está de fone de ouvido e só é possível ouvir as batidas de música eletrônica. Não a ouve, e nem lhe dirige o olhar. Está imerso no seu mundo, com a mochila na frente do corpo e espremido na porta. Na sua ignorância também – na ótica da mulher e dos demais que foram empurrados.

No momento em que o trem apita para as portas serem fechadas, uma senhora sobe o último degrau da escada da estação, com o olhar de quem irá perder a oportunidade. O homem ignorante, nesse segundo decisivo, torna-se um herói que com as duas mãos força as portas a permanecerem abertas. A senhora, com sua bolsinha transversal, entra no pulo do gato e o trem fecha as portas.

Estação terminal: Luta. Mesmo que no seu sentido mais estrito ela não tenha hora para acabar.

A moça que fora empurrada abre um livro. Inicia a leitura de pé, num espaço desconfortável, e aos poucos folheia as páginas do prefácio. A luz do sol clareia as páginas e invade a retina, e é convidada a observar a paisagem urbana. Olha os muros pichados, as frases contra o governo, as casas, toda a organização do espaço em si. Gosta das frases, e pensa ‘quem será que escreveu isso?’. Está prestes a chegar na terceira estação da linha. E o trem permanece lotado e lota ainda mais. Ao passo que é necessário que guarde o livro e deixe-o para outra hora oportuna. Aqui ainda não tem grandes construções, há algumas casinhas, passarelas e córregos… “Aqui a visão já não é tão bela”. 

 Na quarta estação, uma mulher entra com uma criança de colo, e todos no trem ecoam numa só voz para que alguém conceda um assento, porém todos reservados já estão ocupados. Inúmeros corpos estão juntos uns aos outros, e mesmo assim conseguem trilhar em direção a um adolescente com uniforme de um colégio público, que se prontifica a levantar-se lançando um olhar caridoso, dizendo:

-Aqui, moça!

E a mulher agradece com um sorriso. A criança começa a chorar e a mãe tenta acalmá-la, encostando seu rosto na cabeça do bebê. Alguns lançam aquele olhar de desconforto ao ouvir o choro, outros olham com um encanto para aquela imagem de toque vital. A moça que fora empurrada aprecia a ação, mas também pensa o quanto queria continuar sua leitura e não podia por estar naquele trem lotado. São vários olhares para a mesma cena.

De repente, a estação Futuro chega, e o garoto que cedeu lugar à mulher, desce do vagão, junto com outras pessoas que também desembarcam na mesma estação. Entra no trem um jovem com uma caixinha de som e começa a rimar sobre como a vida do trabalhador é difícil na cidade. Um vendedor de balas, outro de pendrives e outro de salgadinhos dividem as atenções dos espectadores com as vendas:

-Ajuda nóis ae, pessoal! – é o lema. 

A moça que fora empurrada permanece de pé, cansada, observa as horas e de acordo com a sua previsão, irá se atrasar para o trabalho. O estresse súbito é de lei, pois não há novidade no atraso. Não existe novidade no estresse causado pelo caos da cidade grande, da selva de pedra. Volta seu olhar para a paisagem que ainda resta, mas percebe que os prédios vão ganhando mais destaque. Formam sombras e são tão altos que, muitas vezes, não é possível ver a altura em si quando se está de pé no trem, como ela está. 

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Aos poucos o trem vai se esvaziando, e há então lugares para se sentar. Um rapaz que está caindo de sono observa os lugares e aproveita para descansar um pouco. Na janela escora a cabeça, e depois de alguns minutos ouve a chamada para a estação final. Todos desembarcam na estação Luta. Um dia ela acaba, alguns temem. Outros continuam projetando empecilhos e construindo muros. Há aqueles que constroem pontes, pintam os muros retirando o acinzentado, fazem arte nessa estação terminal.

Tem uns que estão projetando uma nova estação para depois da Luta. Pode ser Vitória, Fé, não sabemos qual será.

Mas quem são as pessoas que estão construindo sabemos. Vamos nos ater somente aos construtores e não destrutores – estes já lotam a mente e o espírito do nosso povo -. E como todos possuem um lugar, um espaço – ainda que tentem negar os acessos e os direitos para tal-, a sugestão deve ser de todos e o nome deve ter como eixo a luta diária, que conduza o povo à libertação. Qual a próxima estação?

 Ana Paula Prado Oliveira, 21 anos, é moradora  de Guaianases, zona leste de São Paulo, e  graduanda em Letras pela UNIFESP.