Contar nossas histórias é uma forma de curar as que foram silenciadas

A doula Edite Neves conta nesse texto as histórias das mulheres que vieram antes dela e reflete sobre a importância da memória e oralidade para a acolhida e cura das mulheres negras.

Por Redação

21|08|2020

Alterado em 21|08|2020

Um corpo que é carta ancestral já nasce cheio de marcas e dores daquelas que vieram antes. Com segredos, sapiências, amores, lutas e tudo que um corpo pode expressar.

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Edite Neves, 37, doula, mãe do Ravi e pedagoga

©Arquivo pessoal

Esse corpo tem feridas ancestrais de vozes silenciadas, gestos oprimidos, ações julgadas, de colos que foram negados, bebês não nascidos, paixões não vividas, olhares que vieram atravessados, mãos que não foram alcançadas, irmãs distanciadas.

Podemos ser a cura daquelas que não se curaram. Podemos ser a voz de tantas outras que se perderam ou se esqueceram no próprio silêncio. Sou a realização de minha mãe Eurides e a cura de minhas avós Izaltina e Edite. Eurides, filha de Edite e neta de Maria Rosa. Luís, filho de Izaltina e neto de uma indígena que perdemos o laço da história.

Podemos ser a cura daquelas que não se curaram. Podemos ser a voz de tantas outras que se perderam ou se esqueceram no próprio silêncio.

Mulheres à frente do seu tempo, cada uma a sua maneira, mas que foram violentadas das mais diversas formas e não aceitaram o que era imposto, assim sofreram mais uma vez a violência das histórias que não foram guardadas e recontadas. Eu me curo te contando.

Há muitos anos minha mãe pediu para eu contar e escrever sobre a história e os caminhos que ela decidiu seguir. Relutei e sempre achei que não era capaz, mas os anos se passaram e fui me fortalecendo para dar voz e cura ao que ela precisava sarar dentro dela, assim eu cicatrizo uma parte da ferida.

Eurides de Jesus Texeira nascida em Ruy Barbosa, filha mais parecida de Edite Francisca de Jesus, que produzia panela de barro para vender na feira e gostava de botar samba pra Cosme e Damião no terreiro de sua casa.

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O pai e a irmã Tina, Edite abaixo, Rose, a mãe Eurides segurando a irmã Elis e, ao lado, os irmãos José Carlos e Jorge Henrique

©Arquivo pessoal

Nas alegrias de Cosme e Damião foi criada, mas precisava desbravar  mundo e sair da sua terra natal. Ela, cheia de sabedoria e pesquisa de vida, decidiu encontrar outro ninho e pousou em São Paulo até os seus últimos dias de vida. Mãe de seis filhos, sabia escrever o nome, mas não dava conta de juntar as letras pra formar outras palavras.

Conhecia os números e sabia contar, mas ninguém a enganava com o que precisava receber. Disseram muitas vezes que ela era feia, então, sempre dizia: mãe feia faz filhos bonitos. Também tentaram fazer acreditar que era incapaz e nós, suas filhas e afilhadas, demoramos muitos anos pra desconstruir esse caminho que fomos obrigadas a trilhar.

Não seremos silenciadas na voz e no corpo que se cura, mas ainda dói

Agora não mais. Não queremos mais esse sofrer que nos silenciou e nos minimizou como se não tivéssemos importância. Agora não mais. Não queremos o peso que elas carregaram. Agora não mais. 

Não seremos silenciadas na voz e no corpo que se cura, mas ainda dói. Não mais suportaremos as águas sujas que tentam desaguar em nós. Sou porque outras vieram antes me mim e hoje gosto muito da mulher que me tornei. Por isso, a cada passo que dou, seguro na mão das minhas irmãs, as de sangue, de coração e de alma. São muitas as mulheres que me chegam e que me encantam.

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Pais de Edite durante sua formatura em Pedagogia, a primeira filha a se formar da família

©Arquivo pessoal

Carrego o nome de minha avó com quem senti e intui sobre as ervas e o samba, e da outra avó trago os segredos e as sutilezas. Não sei explicar, mas é desta forma que sinto, intuo, acolho e é assim que sempre será. 

Nem tudo explicamos academicamente, mas dou conta de saber de coisas que vieram pela sutileza dos olhares que se cruzam com os meus, com os sonhos sonhados com elas, com os aromas que me cercam, a pisada na terra que não é minha, mas é minha, com as histórias que ouço e compartilho, com os laços da fala e dos conselhos. Eu sou uma, mas sou muitas e todas nós somos um universo em nosso corpo.

Sou fruto da relação de Eurides e Luis, a quinta filha que foi a primeira a se formar na academia, a primeira a viajar só e a desfrutar e conhecer a terra que concebeu minha mãe.

Eu sou uma carta ancestral escrita no ventre de minha mãe, que foi selada com meus óvulos e vem sendo curada com minhas mãos. Aquela que acredita na força e generosidade do universo, que acredita na força e potência do amor que nos reconecta com nossa ancestralidade, que mostra doçura e amarguras de cada ser como um universo, único. 

Labuto e carrego no aconchego do toque o valor de meu trabalho, pois acolho almas com o sorriso, acolho corpas e corpos com óleos, ervas e muito afeto. Aprendo caminhos que podemos seguir só e acompanhadas com as marcas que recebemos ao nascer e transformamos no decorrer, amadurecemos e curamos quando entendemos e acolhemos nossas anciãs.

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Dona Eurides, mãe de Edite.

©Arquivo pessoal


Podemos nos permitir crescer, amadurecer e acolher nossas emoções, que cada escuta seja com afeto. Percebi que podemos ser grandes com o que construímos, que podemos muito mais do que nos disseram e nos fizeram acreditar. 

Que possamos soltar as amarras de outros tempos, que possamos dar voz e cura àquelas que nos fizeram. Se sua cura é de luta, lute. Se sua cura for de labuta, labute! Se sua cura for de acolher, acolha. Descubra sua ferida ancestral, perceba, reflita, chore e faça o que for preciso, mas se cure, por você, por elas que se foram e por aquelas que virão

Percebi que, a cada acolhimento, curo o ventre de minha mãe e as mãos de minha avó. A Cada fala e a cada afeto que dou, ajudo a cicatrizar essa ferida ancestral, sarando as que foram silenciadas.

Assim, luto todos os dias para me manter viva. E oferto minhas mãos e meu pulsar de afetos pra abrir essa ciranda e pensarmos juntas, segurando uma nas mãos das outras para podermos nos curar e curar as feridas de muitas e muitos outros seres.

Sou Edite Neves filha de Dona Eurides e neta de Edite, escuto, aconselho e acolho mulheres em seus processos, crianças e suas famílias. Cada acolhimento é pensado junto a quem o recebe, percebendo e avaliando juntas o que cada ser necessita a partir dos mais diversos toques. Toque da palavra e da escuta em uma conversa sem julgamentos ou aconselhamento, toque das mãos com uma massagem, abraço, toque de ervas com um casulo ou escaldapés.

Edite Neves, 38, mãe do Ravi, doula, arte educadora, pedagoga, consultora e conselheira familiar, com revisão de Joana Cortês, Lay Vieira e Jéssica Moreira.