No solo e na história, o Bixiga é negro: ‘éramos a periferia’
O bairro Bixiga, na cidade de São Paulo, guarda histórias da população negra, como a de Dona Eloá Pimenta e de Tia Eliza. Foram encontrados vestígios do Quilombo Saracura na região.
Por Beatriz de Oliveira
15|07|2022
Alterado em 15|07|2022
Dona Eloá Pimenta nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no Bixiga, bairro localizado na região central de São Paulo (SP). Quando criança, gostava de brincar com suas amigas, passear entre os riachos, disputando espaço entre as aves saracuras, que também davam nome a um rio do local. Na juventude, era apaixonada pelo cantor e compositor Geraldo Filme, apesar de acreditar que ele não a notava. Ia também a festejos e batuques e todo deslocamento era feito à pé. “Era riacho e chão de terra, a cidade começava depois. Nós éramos a periferia da periferia”, conta.
Para Dona Eloá, “a vida era sossegada e tranquila”. Hoje, aos 82 anos, ela é testemunha das transformações da cidade. Não há mais riacho, nem lama. Cada vez mais o barulho das construções de novos prédios, invadem o sossego que havia no Bixiga, que oficialmente fica na região da Bela Vista.
Dona Eloá Pimenta nasceu no Bixiga
©arquivo pessoal
Mas a história negra deste solo encontra espaços para se mostrar. É o que se pôde presenciar durante as escavações para construção da Linha 6-Laranja do Metrô: um sítio arqueológico foi encontrado no local onde ficava a escola de samba Vai-Vai, retirada do local justamente para as obras do metrô. Entre os vestígios encontrados, como louças e talheres, alguns são do século 18 e acredita-se que sejam do Quilombo de Saracura, um dos primeiros da capital.
Em nota, a empresa A Lasca Arqueologia, que está acompanhando as obras, disse: “a escavação e o resgate dos vestígios arqueológicos do local podem integrar um processo de visibilidade e identidade para as pessoas que se reconhecem e reivindicam a memória local”.
Preservar a memória da população negra paulistana é o que querem os integrantes da Mobilização Estação Saracura/Vai-Vai. O movimento foi criado por moradores do Bixiga a partir da descoberta dos materiais históricos e reivindica a paralisação das obras do metrô até a formalização de um projeto de preservação dos achados, bem como a manutenção do sítio arqueológico Saracura-14 Bis em seu local.
Em abaixo-assinado, que até a publicação desta reportagem conta com quase duas mil assinaturas, o movimento pede também que a futura estação seja nomeada de “Saracura/Vai-Vai” – o nome definido atualmente é “14 Bis” – e que a curadoria dos vestígios arqueológicos fique sob responsabilidade de instituição especializada em história e patrimônio negro.
No dia 2 de julho, a Mobilização Estação Saracura/Vai-Vai fez uma manifestação em frente às obras do metrô reivindicando essas demandas. “Não somos contra o metrô, somos contra o apagamento histórico”, é o lema do movimento. A Linha Uni, concessionária responsável pelo metrô, está dando continuidade às obras.
Foi com entusiasmo que a turismóloga e especialista em relações étnico-raciais Isabella Santos recebeu a notícia do achado de vestígios do Quilombo Saracura. “Eu pensei assim ‘poxa, há tanto tempo a comunidade do Bixiga envolvida nessas questões está reivindicando para que não se construa o metrô no terreno onde era a Vai-Vai, e aí na hora de escavar é como se os nossos ancestrais dissessem: – a gente está aqui para dizer que esse solo também é preto’. Eu recebi assim, como um recado ancestral”, afirma ela, que pesquisa as memórias negras da cidade de São Paulo desde 2006.
A benzedeira do Bixiga
A carioca Maria Eliza de Luca, conhecida como Tia Eliza de Categeró, se mudou com o marido e os quatro filhos para São Paulo nos anos 90. O marido italiano, já falecido, era artista plástico e conseguiu, com a ajuda do patrão, uma casa para a família na região do Bixiga.
No terreno localizado na rua Conde de São Joaquim, construíram também uma pequena capela, denominada Capela de Santo Antonio do Categeró, santo que Tia Eliza tem grande devoção. Ela recebeu uma imagem de presente de um padre e desde então fica exibida no espaço. A inauguração da capela contou com missa afro e roda de samba.
É nesse espaço que Tia Eliza passa boa parte de seus dias. Ela tem o dom de benzer, informação que logo se espalhou entre os moradores, que vão à sua procura com queixas diversas. A fama se alastrou cada vez mais e a benzedeira recebe todos que a procuram. Não cobra nada pelo serviço, mas aceita doações.
Tia Eliza passa boa parte do tempo dentro de sua capela
©Beatriz de Oliveira
Entre as bonecas e imagens de santos que ocupam os espaços da pequena capela, há muitas fotos de pessoas que Tia Eliza benzeu e rezou ao longo dessas duas décadas. Em nossa conversa, ela olhava para as fotografias e contava as histórias dessas pessoas. Até que pegou um caderno antigo, com imagens de algumas personalidades famosas recortadas de jornais: são pessoas que ela sentiu que deveria ajudar, mesmo sem terem ido a procurar.
“Eu dediquei a minha vida a ajudar as pessoas. Nunca tive minha história. As pessoas contam as histórias delas para mim. Agora vê se alguém manda eu sentar ali e contar a minha história, eu não tenho”, afirma a benzedeira, apesar de ter contado alguns bons episódios vividos ao longo de seus 65 anos de vida, em pouco mais de uma hora de conversa.
A benzedeira tem colocado sua vida a serviço de terceiros, por meio de suas orações e rituais de benzimento. Mas em sua vida privada, enfrenta dificuldades: tem problemas com o IPTU e contas de água e luz atrasadas. Relata que construtoras batem em sua porta inúmeras vezes. Querem comprar o local para construir um prédio. Tia Eliza não se comove com as cifras oferecidas, e garante que enquanto estiver vive sua capela e sua casa permanecerão de pé.
GALERIA 1/6
A entrevista com Tia Eliza aconteceu dentro de sua capelinha, sentamos uma de frente para outra, assim como acontece com quem à procura para ser benzido. E como ninguém sai de lá sem receber as orações da benzedeira, comigo não foi diferente. O momento começou com ela me orientando a acender uma vela para o meu anjo da guarda e me pedindo para repetir os dizeres: “Essa vela é para o anjo da guarda [nome de um parente falecido] na corrente dos preto velho. Que essa luz ilumine a sua alma, na corrente de São Francisco de Assis. Amém”.
O Bixiga é negro
De fato, os edifícios têm ganhado cada vez mais espaço no Bixiga. Ao longo das décadas, o local passou por inúmeras transformações. Como canta Geraldo Filme na música Tradição, composta entre os anos 60 e 70.
“O samba não levanta mais poeira/ Asfalto hoje cobriu o nosso chão/ Lembrança eu tenho da Saracura/ Saudade tenho do nosso cordão/ Bexiga hoje é só arranha-céu/E não se vê mais a luz da Lua”.
Dona Eloá Pimenta mora há quatro décadas em Sapopemba, na zona leste de São Paulo, mas nunca deixou de ir ao Bixiga, lugar em que nasceu. Por isso, foi testemunha ocular das mudanças vivenciadas no bairro. “Eu vou chamar o Bixiga de uma medalha escondida, a cidade cresceu em torno do Bixiga”, afirma e continua “mas aquele Bixiga pobre ficou esquecido, prova é que o pessoal do Bixiga não se diz Bela Vista, e o pessoal da Bela Vista não queria saber do Bixiga, era assim: ‘pobre que tava perto e bom pra trabalho’”.
A paulista relata ainda que a maioria da população do bairro era negra. “Se fala da colônia italiana mais em função da Festa da Achiropita, então fez com que os italianos ficassem aparecendo mais”.
Essa presença negra se reflete também no período escravocrata. “As pessoas pretas que estavam no centro de São Paulo o século XIX, em torno do rio Saracura, Itororó e Bixiga, estavam trabalhando forçadamente na cidade”, afirma a turismóloga Isabella, citando também as quituteiras, que juntavam dinheiro para comprar sua alforria, e os quilombos, como forma unir força em torno de lutas em comum.
Ela pontua também que a cidade passou por um processo de embranquecimento e que à medida que houve a expansão do centro, as populações negras e pobres foram afastadas, colocadas à margem. “A cidade de São Paulo conta sobre si uma história hegemônica, extremamente embranquecida, advinda do processo de urbanização, que foi excludente, racista, e continua sendo”, diz a turismóloga.
O achado de vestígios que podem ser do Quilombo Saracura é um caminho para colocar em evidência a história protagonizada por pessoas negras na cidade de São Paulo. “Lutar por essa preservação é entender que São Paulo é sim, como gosta de dizer, uma cidade diversa, mas não dá pra dizer que ela é diversa se a gente continuar contando as mesmas histórias da elite”, afirma Isabella.
“É preciso entender o que tem nosso ali, quais são esses objetos que foram encontrados, o que eles contam sobre a gente. Eu penso que a gente está escavando como se fosse mesmo camadas no passado e a gente vai se reecontrando nelas. É tão importante pra gente, população preta, entender de onde viemos”, finaliza.
3 dicas para conhecer mais sobre o Bixiga
Se ficou interessada em conhecer mais sobre esse histórico e potente bairro da cidade de São Paulo, aqui vão três dicas!
O dia de Jerusa
O curta-metragem de 2014 “O dia de Jerusa” se passa no Bixiga. Nele conhecemos Jerusa, uma antiga moradora do local, e Silva, uma pesquisadora de opinião. O que era pra ser apenas um rápido questionário sobre uma pesquisa de sabão em pó, se torna uma tarde inusitada repleta de memórias contadas por Jerusa, a aniversariante do dia. É possível assistir ao filme no YouTube.
Escrito por Viviane Ferreira, a obra ganhou uma versão em longa metragem lançada em 2021. Está disponível na Netflix.
O pai de Rita
Lançado em 2022, o filme “O pai de Rita” narra a amizade de dois compositores da velha guarda da escola de samba Vai-Vai. Ambos tinham paixão pela passista Rita e se perguntam o que aconteceu com ela. Até que um dia Ritinha, filha dessa passista, surge na vida deles com o objetivo de descobrir quem é seu pai.
Tour no Bixiga
Nossa entrevistada, a turismóloga Isabella Santos é dona do projeto Sampa Negra, em que realiza tours pela cidade de São Paulo a fim de contar as histórias protagonizadas pela população negra. Um deles acontece no Bixiga, percorrendo pontos como os rios invisíveis da cidade, as ruas que contam histórias em seu nomes, a Escadaria do Bixiga, e o sítio arqueológico Saracura. Para participar é necessário preencher o formulário e pagar R$80.
Fotógrafa registra cotidiano de crianças na Favela da Rocinha
Nascida e criada na Favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro (RJ), Salem fotografa o dia a dia da comunidade a fim de quebrar estereótipos e realçar potências. Por meio desse trabalho, ficou conhecida como a Fotogracria, “a cria que tira foto dos cria”. Entre os seus trabalhos, se destacam as fotos […]