No rap, nas rádios e ações sociais: a trajetória de Nega Gizza
Em entrevista ao Nós, mulheres da periferia, Nega Gizza conta sobre carreira no rap, saudade dos palcos e contribuição para o movimento hip hop no país
Por Beatriz de Oliveira
26|05|2023
Alterado em 16|06|2023
“O povo quer terra, ninguém quer esmola/ Mas quem se rebela nessa senzala enfrenta a degola”. O trecho faz parte da música “Filme de Terror”, a primeira do álbum “Na Humildade” da rapper Nega Gizza. Lançado há duas décadas, o primeiro e único disco da cantora segue atual, além de ser referência quando o assunto é rap nacional. Giselle Gomes Souza ou Nega Gizza, é rapper, locutora, apresentadora, produtora cultural e uma das fundadoras da Central Única das Favelas (CUFA). Aos 45 anos, descreve a carreira no rap como uma fase saborosa na sua vida. Sente saudade dos palcos, mas não tem intenção de voltar a cantar, mesmo recebendo convites até hoje.
Tudo que eu não queria é morrer com indigente
Mas eles sobem no palanque e nos convence
Que tem pena da miséria dessa gente
Se seu coração diz
Vai! Vai! Vai pro combate!
Se seu punho diz
Vai! Vai! Vai pro combate!
Não vou morrer pelo Brasil
Não vou morrer pelo Brasil
– Nega Gizza, em “Filme de Terror”
Durante a juventude, vivida na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), Nega Gizza tinha o sonho de ser jornalista. “Dois pontos importantes na minha história foram o envolvimento com a literatura e com a comunicação, que era ouvir, absorver e ficar muito tempo trabalhando aquilo na mente”, conta. Toda sua família tinha o costume de ouvir rádio e a jovem absorvia as notícias que eram narradas; também gostava de ler os jornais impressos que seu pai comprava diariamente. Passou ainda a escrever as notícias que ouvia. Sentia vontade de, um dia, poder falar sua opinião e superar a timidez.
“Pra gente que veio da classe baixa é muito difícil ter a oportunidade de desenvolver dons. Eu poderia ter conseguido conciliar aquilo, se não fosse, por exemplo, a fome que a gente passou e que me levou a trabalhar e ajudar em casa”, diz. Mesmo com as dificuldades, a carioca se tornou uma comunicadora, locutora de rádio. Apesar de estar fora dos palcos, a voz é ainda hoje o seu instrumento de sustento.
O primeiro contato profissional com a comunicação veio ao trabalhar em uma rádio comunitária da sua região. Nesse ambiente, desenvolveu sua fala e se familiarizou com o microfone.
Numa dessas idas à rádio, escutou a tradução de um rap americano. Ficou impressionada em como a realidade descrita na letra, de crítica social, se assemelhava a do Brasil. Decidiu conhecer o movimento hip hop e frequentar eventos de rap. Logo cedo, se identificou com o rapper carioca MV Bill, que mais tarde se tornaria seu padrinho no meio. Por influência do ritmo musical, Nega Gizza se interessou em ler sobre a origem do povo negro brasileiro, a escravização e as favelas.
Até que, de admiradora do estilo musical, decidiu se tornar também uma rapper. Antes de optar pelo estilo, passou por alguns outros, como gospel e pagode; mas foi no rap que encontrou a chance de expor o que pensava sobre sua vida na favela. Os primeiros apoiadores da artista foram seu pai e irmãos. A mãe aceitou a carreira da filha anos mais tarde, quando de fato houve retorno financeiro e passou a guardar com carinho recortes de jornais que mencionavam a cantora.
De admiradora do estilo musical, decidiu se tornar também uma rapper
©reprodução internet
O início da trajetória do rap se dá num contexto delicado na vida da carioca: a família acabara de ser despejada do apartamento que morava em Brás de Pina e passou a viver em uma ocupação no Parque Esperança, ambos na zona norte do Rio de Janeiro. “O rap trouxe um encaixe para o momento que eu estava passando na vida social, que era uma vida desgastante e sem acolhimento da sociedade”, afirma.
Num momento também doloroso de sua história, a rapper começou a trabalhar com MV Bill. Antes de ser assassinado, o irmão da artista se envolveu com tráfico de drogas e por isso frequentava diferentes favelas, em meio a isso conheceu MV Bill e lhe contou sobre o talento de Nega Gizza. Quando MV Bill soube de sua morte, convidou Nega Gizza para participar de um de seus projetos.
“Ouvindo aquele disco [Traficando Informação, de MV Bill], eu jamais imaginei que eu cantaria com ele no palco”, conta.
Nega Gizza ao lado de MV Bill
©reprodução internet
Em 2002, a rapper lança o álbum “Na Humildade”. Em suas 12 faixas, o disco trata de temas como política, genocídio a juventude negra, valorização da mulher na sociedade e importância do movimento hip hop. A faixa “Prostituta” ganhou em 2001 o Prêmio Hutúz de melhor demo. Nela, a rapper narra o cotidiano de uma trabalhadora do sexo.
Sou meretriz, triste e feliz
Codinome vagabunda, entre o mau e o bem,
Vou deixar de ser imunda,
Você acha que é falta de moral, promiscuidade excessiva,
Seja puta 2 minutos e sobreviva.
– Nega Gizza, em Prostituta
As letras também revelam questões relacionadas à vida pessoal de Nega Gizza, como a entrada no tráfico e morte do irmão em “Nenem”. Já nos 50 segundos da faixa “Caminhada 2”, a cantora faz um relato da ocupação por moradia que a família participou.
“O disco norteou muito os assuntos que eu queria abordar”, conta a rapper. “Foi muito positivo na contribuição para cultura hip hop. É um disco clássico”. Nas redes sociais, são frequentes as mensagens e marcações falando sobre o álbum, apesar das mais de duas décadas de lançamento.
Nega Gizza revela ainda que apenas há alguns anos passou a conseguir ouvir o álbum completo com prazer. “Eu me sabotava bastante, não achava perfeito. Só há poucos anos, eu ouço meu álbum, escuto a Nega Gizza e falo ‘é foda’. Hoje eu entendo que aquilo foi algo maravilhoso.”
A rapper rimou essas letras em vários estados e cidades do país. Sua carreira estava no ponto mais alto após o lançamento do disco, com pedidos de entrevista e participação em shows. No meio de tudo isso, a cantora descobriu que estava grávida de sua primeira filha. Seguiu nos palcos durante toda gravidez e os primeiros meses de vida da bebê. “Meu marido me apoiou bastante, minha mãe também, eu tive essa rede de apoio”, relata.
“O que me deixou pronta para combater todas as adversidades foi que eu estava realizando o meu sonho. Engravidei, eu queria ter filhos mais pra frente. Mas eu estava realizando meu sonho artístico, de levar a minha voz. Era muita adrenalina na minha vida”.
Nega Gizza recebe prêmio Prêmio Hutúz
©reprodução internet
Realizado o sonho, Nega Gizza foi, aos poucos, finalizando o capítulo de sua vida como cantora. Não gostava da realidade de ter que esperar por ligações do agente para falar sobre shows e propostas. Se envolvia cada vez mais com as ações sociais desenvolvidas na Central Única das Favelas (CUFA), quando decidiu dar adeus aos palcos. Fundada por Nega Gizza, MV BIll e Celso Athayde, a CUFA é uma organização que atua nas favelas brasileiras nos âmbitos político, social, esportivo e cultural.
“Fui preferindo estar mais no social, porque eram muitas realizações e ideias com a CUFA nascendo”, conta.
Se desligou da organização em 2020, “sabendo que eu contribuí grande parte da minha juventude e da minha vida adulta para a CUFA existir, então sou muito feliz de ter feito parte desse corpo que operava diariamente, hoje eu sou uma parceira, uma voluntária”. Atualmente, sua principal atuação é como locutora. Apresenta o programa de rádio Voz das Periferias, em que sempre busca dar espaço para sons de rappers mulheres.
A ativista conta que até hoje recebe convites para cantar. A resposta é sempre não. Sente saudade dos palcos, mas não tem a intenção de voltar à rotina de cantora. “Foi um momento muito saboroso que eu pude viver, que foi me entregar para o hip hop, para a música e conseguir ter êxito”, diz.
Nega Gizza é rapper, locutora, apresentadora e produtora cultura
©reprodução Instagram
Mas convites para apresentar eventos ou que envolvam produção cultural são bem vindos. Quem auxilia a carioca com essas demandas de assessoria é sua filha Mizraim. Além dela, também é mãe de Melquisedeque. Ao falar sobre maternidade, lembra da própria mãe, que se doava demais aos outros e não cuidava de si. Nega Gizza reflete que não quer ser assim.
“Eu tenho essa liberdade de ficar sozinha, me conheço, sei as várias coisas que tenho que fazer pra mim. Já que pensar na casa, no relacionamento diário, no trabalho, cansa demais. Até nas lutas e nas causas que tenho preciso de tempo para eu respirar e estar bem para dar continuidade. É muito importante nós, mulheres, pensarmos em nós”.
Nega Gizza com os filhos
©reprodução Instagram
Nega Gizza é uma mulher em movimento, uma ativista com muitas causas, uma artista que realizou sonhos e marcou o rap nacional. Como ela mesma se define na música “Larga o Bicho”, é uma mulher de espírito guerreiro, atrevida e vaidosa.
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