Moïse Kabamgabe: sobrevivente de guerra encontra morte no refúgio

Moise saiu de seu país, em meio a guerra e a fome, para escapar da morte e a encontrou no quiosque Tropicália. Encontrou em terras brasileiras o combo do racismo e da xenofobia de grupos que agem como animais, gangues ou milicianos com a segurança branca da impunidade

01|02|2022

- Alterado em 01|02|2022

Por Sâmia Teixeira

Nesta semana nos revoltamos com mais um caso de violência contra a classe pobre trabalhadora. É contra toda a nossa classe e é importante começar qualquer discussão dessa maneira.

No dia 24 de janeiro, o jovem congolês Moïse Kabamgabe, refugiado de apenas 25 anos, sofreu a violência da qual fugiu quando, em 2011, partiu do Congo para o Brasil.

Moise, como muitos sabem, foi espancado até a morte pelo patrão, responsável pelo quiosque Tropicália, próximo ao posto 8, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro.

O nome do assassino chegou a ser divulgado pelas redes sociais do Anonymous. O proprietário seria Luciano Martins de Souza, mas nenhuma confirmação oficial foi feita até o momento.

Quem matou Moise, seja lá quem for, tem tido o privilégio da identidade preservada na imprensa mais tradicional, enquanto a do refugiado foi tampouco considerada: a vítima teve seus órgãos retirados, dentro de um curto período de tempo, sob status de indigente no Instituto Médico Legal. Pouco importa que corpos negros e migrantes tenham nome. Nunca tiveram nome, nem história, nem família, nem dignidade humana.

O jovem Moise tem não somente um nome a ser dito e lembrado, mas também uma e dura trajetória até o Brasil.

O Congo é um país de instabilidade política e violência descontroladas [contamos um pouco da realidade sob viés de gênero no artigo: [ No Congo, o estupro de mulheres é prática de terrorismo histórica ].

Moise deve ter conhecido os problemas da violência e da barbárie capitalistas em seu país de origem desde muito cedo. Um exemplo da exploração colonial e capitalista, que vê o continente africano como uma terra sem povo, aberta para lucro e espúrio, removeu forçadamente mais de 10 mil famílias da cidade de Kasulo, sudeste do Congo, para exploração de cobalto para a Apple, Tesla, Microsoft, Dell, Google e outras grandes empresas de tecnologia.

A remoção se deu com a invasão e a presença militar violenta de milicianos vindos da fronteira do país com Ruanda, que também buscam minérios na região.

Esse é um dos casos mais recentes. Há um documento, publicado pelo alto comissariado de direitos humanos das Nações Unidas, que mapeia diversas violações humanitárias no Congo no período de 1993 a 2003. 

Em fins de 2005, já havia uma denúncia da ONU sobre a descoberta de três valas comuns na região de Kivu. Em 2019, cinquenta valas comuns foram encontradas na região oeste do país, onde conflitos entre etnias rivais deixaram pelo menos 890 mortos.

As camadas de um marginalizado

Em matéria veiculada pelo jornalismo da Globo, um parente de Moise mostrou sua revolta e indignação com o assassinato covarde. Ele disse incessantemente: “Ele trabalhava. Eu trabalho, a gente trabalha”. 

O povo preto se defende sempre da morte com esse argumento. O povo preto leva o RG e a Carteira de Trabalho para apresentar nas batidas policiais. A população pobre e periférica sabe que não tem o direito de deixar qualquer brecha para o sistema.

E, nesse caso, assim como haitianos, angolanos e outros refugiados de origem africana, Moise sofria com a categoria de negro e a subcategoria de migrante.

O jornalista Caio Barreto Briso comentou em suas redes sociais sobre o dia em que conheceu o congolês em uma pauta do trabalho. Segundo ele, Moise era um rapaz tímido, que recusou o convite para um almoço ao considerar que outros irmãos migrantes não teriam o mesmo privilégio.

No post de Caio fica evidente, em um trecho de seu relato, algo que sempre me vem à cabeça quando vejo o sofrimento de refugiados e migrantes: as camadas de marginalização.

Quantas camadas de marginalização têm as pessoas em trânsito em busca de acolhida?

O jornalista ainda compartilhou uma informação obtida em conversa com a coordenadora da Cáritas-RJ, Aline Thuller, que reforça a gravidade que o refúgio representa para certos grupos.

A coordenadora contou ao jornalista sobre a preferência de empresários cariocas pela contratação de migrantes brancos. “Congoleses, angolanos e haitianos só eram procurados para trabalho braçal – como carregar e descarregar caminhão de pedra”, expôs.

Moise saiu de seu país, em meio a guerra e a fome, para escapar da morte e a encontrou no quiosque Tropicália. Encontrou em terras brasileiras o combo do racismo e da xenofobia de grupos que agem como animais, gangues ou milicianos com a segurança branca da impunidade. 

Não há de se ter orgulho nenhum dessa parte colonial, racista e xenófoba de nossa sociedade tropicália.

E só nos mostra que um candidato pode até ser desacreditado, perder a força, o apoio. Mas a expressão de ódio, segregação, eugenia, racismo e xenofobia continuam a existir e, por consequência, a serem combatidas. É um dever moral.

Esta parcela podre da sociedade não pode continuar existindo e perpetuando a exploração e a violência contra os mais oprimidos.

Não nos importa se o patrão é miliciano, bolsonarista, direitoso, cheio de ódio. Nosso ódio deve ser maior. Moise tem tanto valor quanto George Floyd, quanto João Alberto. Por eles nos organizamos, levantamos o debate, em mais uma das inúmeras e repetidas vezes.

Moise é cada um de nós. Representa o indivíduo em busca de dignidade, que encontra fronteiras, negativas e marginalização a todo momento. Ele representa todo ser humano caminhante por esse mundo, buscando paz e integridade.

Moise sofreu uma dura violência quando teve de partir de sua terra natal. E agora, com a segunda violência em sua curta vida, desta vez fatal, o que faremos a respeito?

Deixaremos passar, conferindo a esse jovem trabalhador mais uma vez o status de indigente? Ou arrancaremos justiça por Moise com os dentes?

Sâmia Teixeira Sâmia Gabriela Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da CSP-Conlutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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