Maria Shu: a dramaturga que está levando a periferia para outros continentes
A obra "Epifania", escrita por Shu em 2016, vai estar no país africano de Cabo Verde, no 3º Festival Nacional de Teatro do Mindelo.
Por Jéssica Moreira
18|07|2017
Alterado em 18|07|2017
Foi em um trem para a estação da Luz que encontrei, pela primeira vez, Maria Shu. O ano era de 2010, ela entrou na estação do Jaraguá, bairro na região noroeste onde ainda hoje reside e, em meio à multidão do horário de rush matutino, o acaso do cotidiano naturalmente nos apresentou. Eu conversava sobre teatro com uma amiga, quando aquela moça de sorriso doce e olhar e voz firmes se aproximou com seus livros nas mãos. Naquela época, ela estava no primeiro semestre do curso de dramaturgia da SP Escola de Teatro e, mesmo sem saber, reacendeu em mim a esperança de um dia também ser dramaturga, já que eu não havia passado no processo seletivo.
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Hoje, após sete anos desse encontro, tenho o prazer de divulgar que, daqui a alguns dias, a obra “Epifania”, escrita por Shu em 2016, irá também criar voo e pousar no país africano de Cabo Verde, no 3º Festival Nacional de Teatro do Mindelo, que acontece de 23 a 29 de julho.
Maria Shu | Bob Sousa
O texto, inspirado no romance “A Hora da Estrela”, faz um diálogo entre a personagem principal, Macabéa, e a autora Clarice Lispector, trazendo como pano de fundo diversas questões do universo feminino. A dramaturgia irá ganhar vida na interpretação da atriz Lilian Prado, do Grupo de Teatro Onironautas.
Essa, porém, não é a primeira vez que um texto de Shu, hoje com 40 anos, é encenado fora do país. Com este, a dramaturga já soma quatro trabalhos. Giz (2011/2013) foi o primeiro, que ganhou leitura dramática de Lavinía Pannuzio e, mais tarde, foi dirigida por Marcelo Valle. “Giz me possibilitou perceber que eu havia encontrado a minha singularidade, meu estilo dramatúrgico de escrever: uma verve poética, metafórica, híbrida de linguagens e referências”.
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A partir de um processo colaborativo com a Cia Os Satyros, Shu colocou na rua Cabaret Stravaganza (2011), espetáculo que ficou quase dois anos em cartaz em São Paulo e, depois, foi levado para a Suécia. Ainda em 2017, a peça Epifania ficará em cartaz no Viga Espaço Cênico e, em setembro, a peça Ar rarefeito (2013) – 1º lugar no Prêmio Heleny Guariba de dramaturgia em 2014 – irá ganhar uma leitura dramática em Portugal.
Heloísa | Arquivo pessoal
A dramaturga conta que a filha, Heloísa, de dez anos, é sua maior inspiração. “Quero ser uma mulher forte para ela. Ela sonha como eu, com uma carreira artística. Ela desenha todos os dias, desde que eu lhe apresentei ao giz de cera, antes dos dois de idade. Quero que a minha filha saiba que ela pode ser o que quiser e que resistiremos e existiremos por meio da nossa arte: a minha, cênica; a dela, provavelmente, a plástica”.
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Dentre as referências literárias, Shu destaca a admiração que possui pelo trabalho da mineira Grace Passô, uma mulher negra, que vem ganhando destaque com as letras. ” Por eu me identificar com o tipo de dramaturgia que ela cria, que espanca; por ela ser uma artista negra da palavra, premiada e com grande reconhecimento, por Grace se permitir permear dentro de projetos artísticos coletivos”. Além dela, alguns autores nacionais e também internacionais atravessaram a trajetória literária de Shu, como Silvia Gomez, Luciano Mazza, Newton Moreno e entre os estrangeiros Sarah Kane, Koltès, Visniec edetsaca-se Grace Passô.
A dramaturgia como cura
A chegada até aqui, porém, não foi um percurso simples. Foi aos 30 anos que a então professora de Português decidiu deixar a sala de aula para se arriscar nos palcos. Matriculou-se em um escola de artes cênicas, mas no decorrer das aulas não conseguia se enxergar atuando. “Eu não me enxergava talentosa, não me encaixava mais como professora. Entrei em depressão”. Foi quando o companheiro de Shu viu uma chamada na tevê sobre a inauguração da SP Escola de Teatro e a incentivou a se inscrever no processo seletivo.
Maria Shu| Christiane Forcinito
“Agarrei a dramaturgia como uma tábua de salvação. Eu escrevia contos, crônicas, haicais, mas a dramaturgia foi a soma das minhas paixões. É minha maneira de estar no palco, de me sacudir, de me questionar o tempo todo junto com o espectador. É como se eu atravessasse de novo aquela avenida perigosa , saísse ilesa e, de quebra, renovasse completamente meu olhar cada vez que uma peça minha entra em cartaz, recebe uma leitura dramática.
Chegar até aqui e ver seu trabalho ganhando o mundo faz Shu remontar aos sonhos que nutre desde a infância vivida nas proximidades da Rodovia Anhanguera, local onde foi acolhida por sua família adotiva, ainda bebê recém-chegada da Bahia. Das coisas que mais gostava naquele tempo, brincar com as palavras era uma de suas preferidas.
O movimento local, no entanto, impedia que a meninada saísse pelas ruas. “Lembro-me de uma vez em que eu e um dos afilhados da minha mãe atravessamos a rua. Ganhamos do outro lado da calçada, onde só havia uma faixa de grama antes da rodovia, mas chegar a outra margem ampliou nossa perspectiva; era como se olhássemos o mundo por outro viés e fôssemos os donos dos nossos horizontes, porque a partir daquele momento, nosso olhar não era mais dirigido por nenhum adulto. Decidimos voltar. Assim que Jean pôs o pé na rua foi atropelado. Inacreditavelmente, ele só quebrou um braço. Eu recuei a tempo e me salvei. Tínhamos uns seis anos”. Na maioria das vezes, a fantasia se dava dentro dos limites do pequeno quintal, onde as crianças da vizinhança se encontravam para inventar de tudo um pouco. Um dia, os adultos tiveram uma briga tão feia, que a casa cheia de felicidade de repente se esvaziou, fazendo a menina se refugiar no universo das palavras.
“Foi quando eu me entreguei à leitura e à escrita de diários, poemas, passei a frequentar assiduamente a biblioteca da escola, que promovia encontros com escritores. Lembro-me perfeitamente do Marcos Rey e do Pedro Bandeira cercado pelo olhar curioso das crianças num piso de assoalho lustroso, se desdobrando para responder perguntas ingênuas e elaboradas. Foi aí, mais ou menos com oito anos de idade que comecei a sonhar com uma carreira literária”.
Na escola, não havia dúvida, sua disciplina favorita era Português, prelúdio da primeira formação, que alguns anos mais tarde seria em Letras. Durante as aulas, era a professora Roseli, que a acompanhou do 5º ao 8º ano, que dava o incentivo para a então futura escritora ler para toda a turma as longas redações que costumava escrever. Foi em uma dessas leituras que a menina viu, pela primeira vez, um estilo diferente no livro didático.
Créditos: Christiane Forcinito
Era uma conversa entre uma avó e sua neta, que Shu rapidamente decorou e, na aula seguinte, se caracterizou a partir do que imaginava ser a personagem idosa. Nesse dia, encenou o texto com a ajuda de uma colega. “Sempre que possível, eu encenava um texto do livro didático em sala de aula. Assim, sem saber, nasceu minha paixão pelo teatro. Em datas comemorativas na escola, eu apresentava peças que eu escrevia, dirigia, criava o cenário: devo ter sido a primeira menina negra a interpretar o herói grego Hércules“.
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Mesmo apaixonada pelo teatro, foi na Pedagogia que Shu buscou curar algumas das feridas que ressoavam ainda do período escolar. Uma das poucas negras em uma escola de brancos na região oeste, Shu saiu do ensino fundamental e foi direto para uma escola de ensino médio técnica (na época, chamada de magistério), para fugir do racismo e do bullying que sofria por conta do tamanho de suas mamas.
“Beirava o insuportável e eu imaginei que eu só teria um pouco de paz se fosse pra uma escola majoritariamente de meninas: a saída foi o magistério e me apaixonei pelo ofício. Concluí os quatro anos e migrei para o curso de Letras, para amalgamar o magistério e minha paixão pelas palavras”.
Agora, já faz mais de sete anos que Shu tem na dramaturgia sua profissão. Seus últimos textos, ainda inéditos, tratam essencialmente da questão racial, já que a escritora sentiu a necessidade de entender suas subjetividades e o contexto de preconceitos que viveu e ainda enxerga também no meio artístico. “Tem artista branco lidando com o racismo como uma simples questão comercial”.
Abaixo, selecionamos um trecho da entrevista que Shu ofereceu ao Nós, mulheres da periferia. Ela se aprofunda sobre os principais desafios de ser uma dramaturga negra e periférica em um espaço composto principalmente por homens, brancos e pessoas de classe média. Muitas vezes, já chegaram a desconfiar se ela é mesmo autora de seus textos. Mas ela segue firme e deixa, aqui, a sua reflexão para todas as mulheres negras periféricas que sonham também em alcançar seu espaço nas letras.
Desafios: “Como você pode ser artista e não refletir os tempos?
” A dramaturgia é um espaço muito masculino; das vezes que duvidam que eu, uma mulher negra e periférica sou autora dos meus próprios textos; da inexistência da profissão junto ao SBAT (Sociedade Brasileira de Autores), dos pouquíssimos concursos ou editais voltados para o fomento à dramaturgia; de apresentar um texto pronto, de gabinete a um grupo, a um coletivo, porque a maioria tem se organizado e criado uma dramaturgia coletiva. Mas por que sigo escrevendo?
Porque vejo a arte como uma possibilidade de proposição de novos mundos, de novas linguagens, de reinvenção, de amadurecimento, de metamorfose constante. Explicaria meu processo de criação artística a partir de uma frase da escritora Bell Hooks, que diz o seguinte: “Eu não vou só olhar. Quero que o meu olhar mude a realidade”.
Antes mesmo de eu me tornar dramaturga, eu, ainda criança, me apaixonei pela crônica. A crônica é uma narrativa histórica que expõe os fatos seguindo uma ordem cronológica. A palavra crônica deriva do grego “chronos”, que significa “tempo”. Duas palavras-chaves que eu considero pertinentes: tempo e olhar. A partir observância é que se faz uma boa crônica, se faz uma peça de teatro. E isso pode levar algum tempo. Talvez seja preciso atravessar uma avenida movimentada e correr o risco de ser atropelado, para se sentir vivo. Como mulher negra, essa coisa do olhar tem um valor histórico.
Negros foram punidos por olharem diretamente nos olhos de seus donos; negros foram mortos ou agredidos por ousarem olhar para mulheres brancas. O olhar do “bom negro” era forçado sempre para baixo, para o lado, nunca para frente. Então, ao negro, por muitos séculos, só lhe foi permitido enxergar. Esse direito que foi negado, por um lado, fez nascer uma ânsia de querer OLHAR. A dramaturgia é a minha vontade permanente de olhar.
Hoje, eu escrevo para teatro, mas me sinto cronista, ainda. O dramaturgo/a é um cronista do seu tempo, um observador da sua realidade. O que estimula um dramaturgo a escrever? Nenhum artista compõe uma obra em pleno estado de paz, de tranquilidade.
Meus últimos textos (inéditos ainda) perpassam pelo discurso racial, porque eu senti uma necessidade de falar e pesquisar sobre minhas subjetividades, porque tem artista branco lidando com o racismo como uma simples questão comercial.
Nina Simone, cantora e ativista dos direitos civis era uma mulher negra comprometida em mudar o mundo a sua volta. A indignação foi umas das molas propulsoras de sua criação artística. Ela dizia: “como você pode ser artista e não refletir os tempos? Que eu consiga refletir meus tempos sendo uma dramaturga-cronista que atravessa a rua da infância e reinicia seu olhar sempre que necessário.”