Foto mostra Joana, Flávia e Mari durante o lançamento do livro na Bienal

Afeto e ancestralidade: o Manual de penteados para crianças negras

Conversamos com Joana Mendes e Mari Santos, autoras do livro, sobre os bastidores da produção, a importância da autonomia das crianças negras sobre seus próprios cabelos e do conhecimento de suas raízes desde a infância

Por Amanda Stabile

09|08|2022

Alterado em 09|08|2022

Desde pequena, Mari Santos tinha a certeza de que pais de crianças pretas e brancas não haviam recebido o mesmo manual para cuidar dos cabelos dos pequenos. Enquanto pentear os fios lisos era um processo muito mais tranquilo e menos doloroso, os momentos em que seus pequenos cachinhos precisavam ser manuseados eram embalados por lágrimas.

“Aquele momento poderia ser muito mais delicado e carinhoso e não era. Para a gente era muito traumático. Então achava que se a gente viesse com o manual ia ser mais fácil”, conta.

Após anos com isso na cabeça, a publicitária resolveu compartilhar a ideia com Joana Mendes, sua colega de trabalho na época. Começaram, então, a desenvolver o Manual de Penteados para Crianças Negras, livro que foi lançado pela Companhia das Letrinhas durante a Bienal do Livro 2022, em São Paulo (SP).

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As ilustrações representam a diversidade das crianças negras.

©Flávia Borges/Amanda Stabile

“Esse livro é uma tentativa de cura desses processos que passamos e que a gente revisita quando conta. Mas também é uma tentativa muito muito ambiciosa de que as pessoas olhem e falem ‘eu consigo, não é tão difícil assim. Não precisa ser tão trabalhoso e sofrido’”, explica Joana. 

Ilustrada por Flávia Borges, a publicação ensina os cuidados essenciais com cabelos crespos e cacheados, além do passo a passo de diversos penteados e a história por trás de cada uma das técnicas. “Para a gente, povos afrocentrados, os penteados são muito mais algo cultural do que modal. Eles carregam tradição, a origem de um lugar, contam uma história, um processo”, apontou Mari.

Conversamos com as autoras para saber um pouco mais sobre os bastidores de criação do livro, a importância da autonomia das crianças negras sobre seus próprios cabelos e do conhecimento de suas raízes desde a infância. Confira!

Como é a relação de vocês com os seus próprios cabelos hoje e como era na infância?

Joana Mendes: Hoje a minha relação é bem melhor do que era na minha infância. Nunca é fácil ter cabelo crespo e viver na sociedade que a gente vive, mas eu gosto do meu cabelo assim. Acho que, como todo mundo, tem dias que eu não gosto tanto assim. Tem dias que eu falo “vou raspar a cabeça de novo. Vou ficar careca de novo”. 

Quando era criança eu não desgostava do meu cabelo, mas tinha muita dificuldade. Meus pais e minha avó, que era quem também cuidava de mim, tinham muita dificuldade com cabelo crespo para pentear, para desembaraçar. E aí eu tive meu cabelo curto durante muito tempo para não ter problema porque eu chorava muito para desembaraçar. E depois eu tive cabelo alisado dos nove aos 22 anos.

Mari Santos:  Eu tenho essa outra relação de amor literal com meu cabelo porque ele é, hoje, uma coisa que eu realmente cultivo. Até porque eu tenho dreads e é um outro tipo cuidado, uma outra relação, inclusive de muita paciência com ele. E é engraçado que esses dias eu estava pensando: quando decidi ter dread, falei assim: “vou deixar ele crescer e vou ver quanto tempo eu aguento”. Eu acho que é aquele lance de “pô, queria também ter o cabelo comprido”. Ver as outras crianças com cabelo comprido era uma referência que a gente tinha muito.

Eu lembro que, na minha infância, na verdade, a minha família sempre teve cabelo afrocentrado. Eu usava tranças, coquinhos, fazia uma coisa que eu chamava de trança solta e meu pai chamava de rastafari. Mas o intuito era primeiro utilizar o conhecimento que a minha família tinha; segundo, sempre era naquela ideia de não deixar o cabelo bagunçado, super armado. Não era necessariamente para manter uma negritude, era mais para cuidar desse cabelo.

Minha avó fazia esses penteados em mim. Eu lembro que eu amava também, chamava de “hortinha” quando fazia trança nagô.

Mas eu também era muito zoada pelas outras crianças. Hoje eu tenho essa relação de amor, realmente eu gosto muito do meu cabelo. Eu acho que eu nunca tive um cabelo tão compatível com a minha personalidade. 

Vocês começam o livro dizendo: “nós somos Joana Mendes e Mari Santos, duas publicitárias negras que um dia sonharam em ensinar crianças negras a cuidarem de seus cabelos”. Como surgiu esse sonho e como foi o processo para realizá-lo em conjunto?

Mari: Eu tinha essa sensação de que era mais fácil ver como as crianças brancas não sofriam na hora do cuidado do cabelo, como era um processo que parecia muito mais tranquilo. Eu achava que os pais de crianças pretas não receberam o mesmo manual. Isso ficou durante muito tempo na minha cabeça.

A gente chora, a gente grita, dói e com aquele cabelo lisinho era tão simples.

E ficou essa vontade de criança de que a gente viesse como manual para ter os cuidados que, na verdade, batem muito mais do lado prático, do afeto. Aquele momento poderia ser muito mais delicado e carinhoso e não era. Para a gente era muito traumático. Então achava que se a gente viesse com o manual ia ser mais fácil. 

Eu troquei essa ideia com a Joana e nós começamos a desenvolver o livro. Eu, particularmente, tive problemas sérios durante a pandemia. A Joana tocou o livro praticamente sozinha, eu estava dando muito mais pitaco. Ela fez toda a parte de pesquisa, escreveu e olha que ela passou por uns perrengues. Eu até  questionei se valia a pena mesmo ter esse livro. Hoje eu vejo que faz sentido, que era uma ideia de criança que faz sentido, que conectou com os adultos e com essas crianças que fomos.

Joana: Esse livro é, também, uma tentativa nossa de cura desses processos que passamos e que a gente até revisita quando a gente conta. Mas também é uma tentativa muito muito ambiciosa de que as pessoas olhem e falem “eu consigo, não é tão difícil assim. Não precisa ser tão trabalhoso e sofrido”. Que entendam que os meninos não precisam ter o cabelo raspado e todo o peso que significa uma criança com cabelo raspado. É um apagamento.

Por que vocês criaram um manual para as próprias crianças e não para seus cuidadores?

Joana: Porque é importante ter autonomia. Eu, Joana, posso falar que quando eu era criança eu fazia muito as minhas coisas, tinha muita autonomia. Mas ali no começo, o livro também fala como é que a gente precisa lidar com o cabelo das crianças e dá dicas para os pais e cuidadores – sempre lidando com eles, mas dando também autonomia para as crianças, para que elas mexam no próprio cabelo e descubram o que querem fazer. E é também para que envolva mais gente, para que os pais e elas possam fazer esse processo juntos.

Ele é um pouco baseado nesses manuais de curiosidades que tinham quando a gente era criança. Eu fui muito moldada por eles. Eu ganhei um quando tinha 13 anos e isso fez com que eu, uma criança que já era muito curiosa, quisesse saber mais e mais. Então é para dar autonomia para essas crianças que são super curiosas para que elas tenham um pouco dessa curiosidade sanada, mas que também busquem cada vez mais saber a própria história e de onde é que elas vieram.

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Curiosidade: em inglês, a fitagem é chamada de “rake and shake”, que significa “rastelar e sacudir”.

©Flávia Borges/Amanda Stabile

Mari: É mais direcionado para as crianças porque é o futuro delas.

Vão virar adultos que precisam saber de onde vieram, como se relacionam com o próprio cabelo, com o próprio corpo, com a própria negritude.

É quase uma autodefesa da própria criança. Então eu acho que o livro também está nesse lugar do cuidado das gerações futuras. Se a gente tivesse isso lá atrás, talvez ele não estaria sendo tão necessário hoje. É ali que você muda: quando a criança pertence, cuida dela e da própria estima, sabe de onde ela vem, ela não vai ser mais um reflexo dos pais. Porque, querendo ou não, a gente também reproduz. Então, se minha mãe não sabia cuidar do cabelo, eu também não sei cuidar. Mas como eu sei agora eu sei, eu também posso transmitir isso e vira um momento de descoberta.

Qual a importância dos penteados para as culturas afrocêntricas?

Joana: São essenciais. É através dos penteados que, nessas culturas, você sabe se a pessoa é criança, adulto, se já passou pela puberdade, se é casada, homem, mulher, idoso, viúvo. Então, tem vários símbolos de status ali. E é por isso que eu falei no começo que, quando a gente raspa a cabeça, não se sabe nada disso, você não sabe nada desses grupos, você não sabe a história de ninguém. Esse era um artifício que era feito. 

Mari e Joana explicam no livro que uma das primeiras coisas que se fazia ao capturar uma pessoa negra na África era raspar a sua cabeça, porque, assim, não haveria como saber de qual grupo étnico ela vinha, se tinha filhos, se estava de luto — ou seja, era uma maneira de apagar sua identidade.

Mari: A gente é um povo que vem da realeza diretamente e isso é tão apagado, assim como os códigos que o cabelo carrega, essa coisa de “quem mexe no seu ori” [na língua Iorubá, “ori” significa “cabeça”]. Por isso a importância do cabeleireiro, que é quase um sacerdote, um feiticeiro, um médico, está nessa categoria de importância. Eu acho que para a gente, povos afrocentrados, os penteados são muito mais algo cultural do que modal. Eles carregam tradição, a origem de um lugar, contam uma história, um processo. 

O livro é cheio de diversidade da primeira à última página. Diversidade de tons de pele, de texturas de cabelos, de sorriso e representação de crianças com deficiência também. Esse briefing partiu de vocês? 

Joana: O nosso briefing foi trazer os mais variados tipos de crianças negras possível e quem fez isso tudo foi a Flávia Borges. Eu acho que é muito importante dar nome a quem faz coisas. Ela que trouxe a variedade de dentes, de cabelos… A gente sabia que ia ter que ter vários cabelos diferentes, também crianças em cadeira de rodas. Então foi a Flávia que trouxe esse olhar. Ela que fez esse livro ser tão incrível, criou os personagens.

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O “puff espacial” é um penteado que remete ao afrofuturismo, que é uma intersecção entre imaginação, a tecnologia, o futuro e a libertação.

©Flávia Borges/Amanda Stabile

Mari: É bom também trazer o trabalho de design na Marina Venâncio, que encaixou as coisas, deixou tudo muito delicadinho.

A gente queria que fosse diverso por que nós somos diversos, não somos iguais.

Então é importante trazer isso: a representatividade, o pertencimento, o acolhimento. Porque, na verdade, eu acho que tudo o que está nesse livro é um acolhimento, seja para a criança ou para adulto saber da sua história.

No livro tem um poeminha ensinando “como fazer cafuné num crespo?”. Por que vocês sentiram a necessidade de adicionar essa dica no livro? Já passaram por perrengues em relação a esse carinho?

Joana: Um pouquinho, né? [risos]. No início do processo, o livro  era todo feito em poema . Então eu fiz poemas para todos os penteados. Só que nessa de achar o tom, resolvemos mudar. Esse foi o poema que ficou sobre como fazer cafuné no crespinho, sempre pensando no carinho, no afeto, em uma maneira para que não machuque. Porque, pelo menos o meu cabelo, faz muito nó, então se você vem de qualquer jeito vão acabar ficando presos.  Isso faz com que a pessoa que está recebendo cafuné não esteja tão feliz assim.

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No final dos anos 1960, o penteado “Black Power” se tornou símbolo entre os Panteras Negras.

©Flávia Borges/Amanda Stabile

E tem também um fator de que algumas pesquisas falam que as crianças negras recebem menos carinho porque elas são consideradas adultas mais cedo, são as mais responsabilizadas, têm penas mais severas. Isso também faz com que aquelas que só querem ser cuidadas, e que precisam desse cuidado, não recebam.

Mari: É alarmante isso. E às vezes até dos próprios pais porque não sabem como cuidar. Eles só penteiam e não tem esse momento do afago, porque eu não sabem como colocar a mão senão vai embolar. Então você perde esse carinho, esse cuidado. Você passa a achar que é uma pessoa para não ser tocada. A gente já tem vários preconceitos embutidos com as peles negras. O racismo bombando e sem querer, os próprios pais e cuidadores dão uma reforçada nisso.

Tem os que tocam no seu cabelo pela curiosidade, para entender “que bicho estranho é aquele” e “que exótico você é”, mas as outras pessoas não se relacionam porque não sabem como tocar, não sabem o que fazer. Isso é alarmante e uma parte muito importante do afeto.

Para terminar: qual o penteado favorito de vocês e por quê?

Joana: Eu gosto muito do coquinho de coquinho, que vem dos Bantos, e da trança nagô, que fala dos Iorubás. Esses dois mostram os principais grupos étnicos da África que compõem os brasileiros e também que a gente não veio de lugar nenhum. A nossa história não começa a partir da escravidão, ela é tão ampla, tão vasta e a gente precisa conhecer. Tem tanta coisa que a gente vai descobrindo. A minha avó falava um monte de palavras que depois eu descobri que são “banto”, palavras que ela usava no dia a dia.

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O “Coquinho de Coquinhos” também é conhecido como “zulu knots”, porque se acredita que esse penteado tenha sido criado pelo povo Zulu.

©Flávia Borges/Amanda Stabile

Mari: Nagôs também, principalmente porque fez muito parte da minha infância, fora todos os motivos que a gente já citou. Dread eu não vou nem dizer [risos]. Tem um penteado que é o “coque banana”, a partir dos dreads ou das tranças. É um dos penteados que eu mais gosto de fazer. Também tem um que eu gosto bastante que não entrou no livro, os finger coils. Agora eu não vou lembrar qual é a etnia, mas eles fazem colocando bastões e enrolando todo o cabelo com creme, com óleo. Depois ele fica só aquele cacho muito certinho com franjinha. E eu vejo muitos meninos hoje na periferia também fazendo, só que eles enrolam com o dedo ou o pente, com bastante creme. Depois soltam e fica aquela molinha.