Lana Souza: ‘Parecia ação social, mas era preconceito’

Você, que realiza atividades em favelas e periferias, já recebeu algum convite que tinha a intenção de ser uma ação social e na verdade era preconceito? Confira a reflexão da colunista Lana Souza.

Por Lana Souza

Toda organização, coletivo, grupo ou até mesmo indivíduos que realizam atividades em favelas e periferias já receberam algum convite de parceria que se tornou algo extremamente abusivo. No texto de hoje quero compartilhar com você uma experiência vivida pelo Coletivo Papo Reto, instituição da qual eu faço parte e que atua com comunicação, direitos humanos, segurança e educação no Complexo do Alemão na cidade do Rio de Janeiro

Durante a pandemia, o Papo Reto se uniu ao Mulheres em Ação no Alemão (MEEA) e ao Voz da Comunidade e juntos criaram o Gabinete de Crise do Complexo do Alemão. Esta atuação de alguma maneira ampliou a relação com diversas empresas e fundações e também potencializou nossa presença nas redes sociais. Isso fez com que mais pessoas conhecessem o nosso trabalho e tivessem o interesse de aproximação.

Sempre que um novo contato nesse formato chega para alguém da equipe do Papo Reto, conversamos internamente antes de decidir um posicionamento e foi em uma dessas situações que um diálogo bem incômodo aconteceu.

Uma mulher enviou uma mensagem para a Ananda Trajano, coordenadora de projetos e juventude do Coletivo Papo Reto, dizendo que gostaria da parceria do Coletivo para realizar uma ação social no Complexo do Alemão. Ananda se colocou disponível para que a mulher desse mais detalhes sobre a ideia antes de repassar a proposta ao nosso grupo. A resposta começa com “Ótimo, então vamos lá: a empresa fornece cartão de crédito para 90% dos negativados…” e termina com “Como a intenção é atingir um público grande, ajudaríamos o pessoal da comunidade, onde 80% tem o nome sujo.

Óbvio que nossa resposta foi a de que não teríamos interesse nesse tipo de parceria. Foi neste momento que a moça insistiu que a ação seria interessante para a comunidade e questionou: “Por que o interesse tem que ser de vocês ou do pessoal da comunidade?”. Ananda, que ficou na missão de ter esse desconfortável diálogo, disse ter se sentido desapontada. “Não é esse o nosso trabalho. De verdade achei que fosse ser algo “social”, voltado para o que fazemos. Principalmente porque ela disse no começo que era pra ajudar a favela”.

Para Raull Santiago, que é CEO da Brecha – Hub de inteligência favelada e também integrante do Papo Reto existe racismo envolvido em convites como esses “Eles vêm em forma de intimação, a pessoa acredita que sua “grande ideia” mudará a realidade da favela e por nos enxergar como inferiores fica ofendida quando a favela recusa algo que não nos é útil. O preconceito fica evidente em todas as etapas do processo.” É essencial que os coletivos, grupos e instituições que atuam em favelas sejam vistos com respeito e responsabilidade por essas empresas. “Neste caso específico, a mulher ainda trouxe uns dados que não tinham nenhum fundamento, só para reafirmar o preconceito e o quanto a ação proposta era salvadora.” completou Ananda.

Eles vêm em forma de intimação, a pessoa acredita que sua “grande ideia” mudará a realidade da favela e por nos enxergar como inferiores fica ofendida quando a favela recusa algo que não nos é útil”

Desde de que o Coletivo Papo Reto foi criado, em 2014, observamos esse tipo de comportamento por meio de pessoas e instituições que não dialogam com a realidade das favelas. “As empresas geralmente nem refletem sobre o impacto daquela ação. É só a ideia pela ideia, é o mercado falando “eu fiz, eu realizei” e nunca “eu contribui para a transformação”. É muito individual. Sempre reproduzindo preconceitos históricos.” avalia Raull.

Além do trabalho que o Papo Reto normalmente executa pensando direitos humanos a partir da segurança pública, durante a pandemia, colaboramos para garantir alimentação básica para milhares de famílias que (ainda) se encontram em situação de desemprego. Essa é a nossa realidade.

Distribuição de cartão de crédito sem educação financeira básica e sem contexto de realidade nunca será a solução. Respeitem a realidade das favelas.


Jornalista de formação e comunicadora popular. Administradora do Coletivo Papo Reto, que atua no Rio de Janeiro pautando direitos humanos nas favelas a partir da comunicação e educação.


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Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.