Kunyaza: o futuro é feito de prazer ancestral vulvar

Essa é uma prática que chama a atenção de muitos por fazer parte de uma cultura que naturaliza o prazer por meio da vulva

17|11|2023

- Alterado em 01|05|2024

Por Maria Chantal

Em seu Tedx, Katiuscia Ribeiro, doutora em Filosofia Africana, nos ensina que em Kemet, antigo Egito, o pensamento parte do coração. Ali, naquele vídeo, que é uma verdadeira aula sobre o quanto também se filosofava no continente africano, mas a partir do coração. A filósofa diz que “o pensar kemetico é um exercício de ouvir a si mesma e que o nosso coração é a morada da nossa consciência”.

No livro Manual de introdução à Ginecologia Natural, da escritora e parteira tradicional, Pabla San Martín, a autora reforça que “o texto mais antigo encontrado sobre ginecologia é o Kahun Gynaecological Papyrus, descoberto no Egito, no ano de 1800 a.c. O texto contém trinta e quatro seções sobre assuntos de saúde sexual denominados “queixas ginecológicas”.

Aponto pra filosofia e ginecologia do antigo Egito de propósito. Meu objetivo é te fazer refletir sobre o quanto o continente africano vai muito além do estereótipo que ficou eternizado na mente do mundo todo por conta das diversas campanhas de combate a AIDS e a fome.

Esse é um território que produz conhecimentos relacionados ao ser humano, incluindo o prazer sexual. E, para enriquecer a nossa conversa sobre isso, trago a prática de Kunyaza.

O que é Kunyaza?

A tradução literal diz ser algo como “liberar líquido”, na língua rundi, falada em Ruanda. Em seu livro Kunyaza – the secret to female pleasure, o escritor Habeeb Akande conta que a prática é cercada de histórias que explicam a sua origem. Uma delas conta que, na terceira dinastia da monarquia de Ruanda, que ficava próximo ao lago Kivu, a rainha estava solitária.

O rei havia se ausentado para acompanhar sua campanha militar. A rainha, solitária, mas com desejo de ter relações sexuais, começou a estimular sua vulva e clitóris em seus aposentos. Isso a deu tanto prazer que começou a liberar líquido pela vulva. A quantidade de fluido liberado foi tamanha que deu origem ao lago Kivu, o 6° maior lago do continente e o maior de Ruanda.

Kunyaza é uma prática cultural para trazer saúde aos relacionamentos e que preza pela intimidade. Ela inclui a penetração vagarosa, a estimulação do clitóris e da vulva, além da conexão emocional entre os parceiros através do olhar. O maior objetivo aqui é com o sensorial, não é com o tempo, nem performance.

Essa é uma prática que chama a atenção de muitos por fazer parte de uma cultura que naturaliza o prazer por meio da vulva e que tem como um dos objetivos os múltiplos orgasmos e kunyara, a água que flui da rainha, em outras palavras, a ejaculação vulvar. Sim, a cultura sexual ruandense tem um olhar positivo sobre os fluidos vulvares, sendo até uma questão honrosa colaborar para que sua parceria libere tais fluidos.

Aproveito aqui para fazer algumas pontuações, primeiro, estou chamando de ejaculação vulvar o que comumente se chama de ejaculação feminina. Como nem toda pessoa com vulva se considera mulher, acredito que faz mais sentido chamar de ejaculação vulvar.

Também precisamos diferenciar ejaculação de squirt. Para isso, uso como base o artigo “Female ejaculation and squirting as similar but completely different phenomena: A narrative review of current research“ [ em tradução livre “Ejaculação feminina e squirting são fenômenos parecidos mas completamente diferentes: Um viés narrativo de pesquisas atualizadas”] , publicado no PubMed, em julho de 2022.

Segundo o artigo, que estuda publicações sobre o assunto de 1946 a 2021, existe sim uma capacidade de pessoas com vulva liberaremhttps://www.high-endrolex.com/43, pela uretra, fluidos em quantidades e composições variadas. Isso pode acontecer em um momento de elevada excitação e orgasmo.

Porém, as origens do que se chama squirt e ejaculação feminina são diferentes. Sendo a ejaculação vulvar o fluido liberado em pequena quantidade pelas glândulas parauretrais, que ficam do lado da uretra ( local por onde sai o xixi). Esse líquido é de textura mais espessa.

Já o Squirt, que pode ser traduzido como esguicho, é um fluido transparente liberado em uma quantidade aproximada a 10 mililitros ou até maior, liberado através da uretra durante um orgasmo. Um detalhe relevante é que ambos os fluidos podem ser liberados simultaneamente, além de serem confundidos com urina.

Não existe um consenso entre profissionais de saúde quando o assunto são os fluidos genitais provenientes da vulva. Alguns profissionais ainda afirmam que é basicamente xixi, mesmo tendo pesquisas que apontam que a composição se difere da urina.

Lembro aqui que quando se trata do corpo com vulva, ainda precisa-se estudar e ousar escutar o que mulheres, homens trans, pessoas não-binárias e intersex têm a dizer sobre seus próprios corpos.

Por último, faço a seguinte observação: após o conhecido genocidio de 1994, Ruanda tomou como solução investir na educação feminina para reerguer o país. Sendo um país majoritariamente feminino, tem investido seriamente em igualdade de gênero, a ponto de, hoje, ter o parlamento mais feminino do mundo em proporção (61%).

Outro fator relevante é que, de acordo com o documentário Unter fremden Decken Ruanda ( em tradução livre: Sob estranhos cobertores de Ruanda), de 2014, 80% das mulheres em Ruanda experienciam o orgasmo regularmente. O que não se compara às mulheres de países como Espanha ( 52%), Brasil ( 44%) e Japão (11%).

Entenda: Kunyaza é uma prática cultural que traz práticas que vão do simples ao complexo. Então, trago aqui três opções para você inserir kunyaza no seu repertório sexual.

Como praticar com a parceria:

1

Crie um ambiente seguro e confortável. Para quem for receber a prática, é recomendável estar deitada com as pernas relaxadas. Se desejarem elevar a intimidade, fiquem de frente e sentem-se entre as pernas um do outro. Dica: olhem-se nos olhos.

2

Quem receber a pratica deve focar na sensação e não ter pressa de chegar a lugar nenhum.

3

Para quem irá fazer, o indicado é que se comece com a estimulação clitoriana e vulvar. Mova o pênis, ou outra forma de estimulo, ao redor do clitóris e pela vulva.

4

A partir da pressão ou batidinhas gerada pelo pênis, dildo ou sex toy, vá para uma dedicada estimulação oral e intercale com a estimulação clitoriana direta, dando leves batidinhas na glande do clitóris.

5

Retorne para a estimulação oral e finalize com a estimulação clitoriana pressionando o falo, ou outra forma de estimulo, em zig-zag ao longo da vulva. 

6

Kunyaza também envolve penetração bem vagarosa e, se sua parceria pedir, faça.

7

Esqueça o tempo. Foque na prática e nas sensações.

Dicas de Rugongo

Rugongo é o ato de estimular o clitóris. A diferença é que são três formas diferentes de estimular a vulva e o clitóris. Fique livre para adaptar a prática para a sua realidade, ou seja, sua parceria pode usar o dedo, sex toy no formato fálico, cinta peniana e até um dildo. Veja abaixo:

A forma simples é a estimulação da glande do clitóris a partir da glande peniana, a chamada cabeça do pênis. Onde move-se o pênis do topo para a base da vulva e vice-versa. Também podem ser feitos movimentos circulares em torno do clitóris, permanecendo por um tempo no sentido horário e depois anti horário

Uma outra opção é, com o pênis, dar leves batidas na glande do clitóris e nos lábios internos, para elevar a excitação. 

Aqui falarei da estimulação clitoriana indireta. Tanto a glande quanto o pênis de uma forma geral devem ser usados para pressionar a vulva. Os movimentos em zig-zag podem ser feitos iniciando na glande do clitóris e indo em direção a vagina, da direita para a esquerda. 

Utilize a estimulação Oral. A não ser que seja pedido, não use seu dente. Aqui a ideia é usar a sua língua para passear vagarosamente pelo clitóris e lábios internos da sua parceria. Você também pode adicionar beijos lentos e carícias na vulva com os lábios da boca.

Como praticar sozinha?

Os Ssengas são conselheiros matrimoniais, confidentes e terapeutas sexuais das comunidades tradicionais. Eles são os responsáveis por ensinar e passar adiante práticas sexuais e cuidados genitais e do relacionamento.

Muitas Ssengas encorajam a prática da masturbação clitoriana, antes de praticar kunyaza com sua parceria, por proporcionar autoconhecimento. “Quando você for para a cama e se deitar de costas, use o dedo (indicador) para tocar a glande do clitóris”, diz Betty Nalongo, Ssenga de Uganda. Você pode fazer com o seu dedo indicador o movimento de rotação em torno da glande e alternar com leves batidinhas do dedo sob a glande do clitóris.

Uma dica final é que quem estiver recebendo as massagens não fique simplesmente deitada, mas movimente os quadris. Rebole.Você pode utilizar um vibramor, de sua preferência, demos dicas aqui sobre como escolher o seu. Pode ser o sex toy que simula o movimento de uma língua, você vai estimular diretamente seu clitóris. Você também pode a partir de um vibro em formato fálico e dar leves batidinhas no clitóris.

Maria Chantal é uma mulher cis, bissexual, angolana em diáspora no Brasil. Estudiosa autodidata da Ginecologia Natural, atua como educadora menstrual, compartilhando conhecimentos sobre prazer, rebolado afro referenciados e a naturalização do ciclo uterino.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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