Importunação sexual: é adoecedor nunca se sentir segura no transporte

Colunista Jéssica Moreira comenta o caso de importunação sexual ocorrido em um ônibus coletivo em Belo Horizonte (MG).

31|03|2023

- Alterado em 31|03|2023

Por Redação

Uma mulher está indo trabalhar por meio da mesma linha de ônibus que pega todos os dias. No corredor do transporte coletivo, alguém lhe avisa que um homem está fotografando suas partes íntimas. Ela se enche de raiva e coragem, toma o celular e expõe o fato. Todos se revoltam. Pedem para o motorista fechar as portas. O homem é preso em flagrante por consumação de delito de importunação sexual e logo depois recebeu liberdade provisória.

A cena aconteceu nesta semana na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), mas poderia ter sido aqui no meu bairro ou no seu trajeto. Infelizmente, poderia estar acontecendo bem agora, enquanto escrevo esse texto ou você o lê.

Entre janeiro e julho de 2022, o Conselho Nacional de Justiça recebeu 13 casos de importunação sexual por dia, totalizando 2866 casos em todo o país nesse período. Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ).Em Minas Gerais, nos dois primeiros meses deste ano, foram registradas 583 ocorrências desta natureza. No mesmo período do ano passado foram 440, de acordo com os dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp).Como as testemunhas em volta conseguiram gravar, ela também pode provar e publicar na internet, fazendo o caso vir a público, alertando outras mulheres sobre os seus direitos em situação semelhante. Desde 2018, temos a Lei 13.718, no Art. 215-A, afirmando que importunação sexual é: “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, e a pena pode ser de um ano a cinco anos se o ato não constitui crime mais grave.

É importante dizer, no entanto, que diante da violência e constrangimento, muitas vezes as mulheres vítimas de importunação ou assédio sexual não encontram meios de enfrentar seu assediador ou abusador. O que significa que deve haver muitos casos como esse pelo nosso caminho – acontecendo bem perto da gente –  que sequer ouvimos falar. 

Desde a infância, a sexualização e violência contra nossos corpos gera diversos traumas, afetando a saúde mental de muitas mulheres. Lembro que tinha 12 anos de idade e, enquanto ia para a escola, um homem cantou: “tão pequenininha do bumbum grandão” sem o menor constrangimento.

As cidades são inseguras, sabemos. E nós somos as que mais precisam circular pelo espaço urbano. Afinal, são muitas as que têm duplas ou triplas jornadas e atravessam as pontes de um bairro a outro com os filhos nos braços para conseguir trabalhar, estudar ou se divertir.

Nós, mulheres das periferias, não temos opção senão a de tomar trem, metrô e ônibus para chegar até os lugares que precisamos chegar para sobreviver. Chegamos, mas sempre chegamos com medo. 

Toda vez que entro em um trem meu corpo endurece, minha cara fecha. Não é à toa. Diante da superlotação dos vagões ou ônibus, não tenho medo de alguém pisar no meu pé ou roubar meu celular, eu tenho medo mesmo é de passarem a mão em qualquer parte do meu corpo, me beijar à força, fotografar ou filmar minhas partes íntimas sem consentimento

Tenho uma estratégia: nunca ficar em pé em frente a um homem, para evitar os olhares ou qualquer outra coisa. Passam diversas coisas pela cabeça: “será que vão acreditar em mim?”, “será que vou ter força pra gritar e brigar, em meio a tanto cansaço de um cotidiano extremamente violento?”. E mesmo quando temos essa força, o medo e a frustração também nos acompanham, como aconteceu com o próprio caso que abre esse texto, já que o assediador teve liberdade decretada depois do ocorrido, pois entenderam que não tinha antecedentes criminais.

Lembro quando lançamos o Nós, em 2014, havia uma discussão em curso em São Paulo sobre o vagão rosa. Fomos contra e diversos outros grupos ligados aos direitos femininos também. Sei que pode haver lugares em que essa política pode ter feito a diferença na vida das mulheres, mas em uma cidade com mais de 12 milhões de pessoas, sendo metade de mulheres, isso só serviria para tapar o sol com a peneira.

Embora as discussões sobre machismo e violência contra a mulher desde então tenham se ampliado, é triste ver que quase dez anos se passaram e casos como o de Belo Horizonte ainda acontecem. É só “dar um Google” ou ligar a TV.

Em março deste ano, a Rede Nossa SP publicou a pesquisa “Viver em São Paulo: Mulheres”, que joga luz a esse medo que sentimos diariamente. O estudo aponta que pelo menos 3,8 milhões de mulheres que vivem na cidade de São Paulo já sofreram algum tipo de assédio, o que equivale a 67% da população feminina. Dessas, 45% apontam que sofreram importunação sexual no transporte coletivo. Pelo quinto ano, o transporte é líder das menções como lugar onde as mulheres sentem mais medo de sofrer assédio. Pelo menos 39% delas indicaram se sentir inseguras nesses espaços. Embora alto, o índice é o menor da série histórica, iniciada em 2019. Nos últimos quatros anos, o transporte vinha em alta, como o mais citado, por 44%, em 2019, 46%, em 2020 e 52% nas duas últimas edições.

“Desde muito cedo, enquanto mulher, aprendemos a detectar fatores de risco no ambiente e se portar para evitar qualquer forma de vitimização, como o assédio. As cidades e os espaços públicos são hostis às mulheres. A gente até pode falar de uma arquitetura hostil para determinados grupos. A circulação das mulheres não pode ser mais insegura pelo fato de serem mulheres, o gênero não deve ser fator de risco”, é o que bem disse Arielle Sagrillo Scarpati, psicóloga e doutora em psicologia forense, durante o webinário “Sofrer x praticar: por que a conta não fecha? Diferenças entre homens e mulheres sobre experiências com a violência de gênero”, realizado pelo Instituto Patrícia Galvão. 

O assédio sexual é uma expressão da violência sexual, caracterizada como manifestação sensual ou sexual, alheia à vontade da pessoa a quem se dirige. E de acordo com a pesquisa  Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, realizada pelo DataFolha e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em março de 2023, o equivalente a 30 milhões de mulheres foram assediadas sexualmente no ano de 2022. Fonte: Violência em Dados, da Agência Patrícia Galvão.

Dados levantados pela Agência Patrícia Galvão na Pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” em 2023), nos mostram uma triste realidade, que também remete ao país racista em que vivemos:  as mulheres negras são as que mais sofreram assédio sexual no país, sendo 49,1% frente a 42,2% comparando-se às mulheres brancas.

Esse número não diz respeito apenas ao espaço urbano. Estamos inseguras em todos os lugares. É muito cansativo transitar pela cidade com medo, comprometendo nosso direito de ocupar e viver os lugares como queremos. Ou, antes disso, nosso direito de ir e vir para continuar fazendo atividades que garantem a nossa sobrevivência. Também queremos nosso direito à cidade com segurança e não deixar de fazer qualquer coisa por sermos mulheres.

Penso que enquanto não tivermos mulheres na mesa de decisões, a cidade continuará sendo feita para e a favor dos homens, por isso mesmo discutir e pensar o espaço que queremos é urgente, é pra ontem.


Os casos de importunação sexual podem ser denunciados pelos telefones 190 ou 180, que é o Centro de Atendimento à Mulher. Você também pode procurar atendimento presencial em delegacia ou promotoria de justiça da sua cidade.



Como denunciar nos trens de São Paulo


Em 2022, foram registradas 113 ocorrências de importunação sexual na CPTM, sendo 73 atendidas pelo Espaço Acolher. Em 101 delas, o infrator foi identificado e encaminhado ao DP e 37 ficaram detidos. Já nos dois primeiros meses de 2023, foram 14 ocorrências na CPTM, sendo 13 atendidas pelo Espaço Acolher, com 11 identificados e encaminhados ao DP e quatro ficaram detidos.Desde março de 2020, a Companhia de Trens Metropolitanos de São Paulo (CPTM) possui o Espaço Acolher em 31 estações das cinco linhas, que oferece atendimento humanizado e com privacidade a mulheres vítimas de violência ou importunação sexual nos trens e estações da empresa. A CPTM possui Espaços Acolher nas seguintes estações:

  • Linha 7-Rubi: Água Branca, Várzea Paulista, Francisco Morato, Franco da Rocha, Perus, Vila Aurora e Pirituba;
  • Linha 10-Turquesa – Rio Grande da Serra, Mauá, Santo André, São Caetano do Sul e Tamanduateí;
  • Linha 11-Coral – Mogi das Cruzes, Suzano, Ferraz de Vasconcelos, Guaianases, José Bonifácio e Dom Bosco;
  • Linha 12-Safira – Comendador Ermelino, Jardim Helena-Vila Mara, Itaquaquecetuba, Itaim Paulista e São Miguel Paulista;
  • Linha 13-Jade – Aeroporto-Guarulhos.

E nas estações de integração

Luz (Linhas 7-Rubi e 11-Coral), Brás (Linhas 7-Rubi, 10-Turquesa, 11-Coral e 12-Safira), Tatuapé e Corinthians-Itaquera (Linhas 11-Coral e 12-Safira), Engenheiro Goulart (Linhas 12-Safira e 13-Jade) e Palmeiras-Barra Funda (Linhas 7-Rubi).

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Cofundadora e diretora de comunidade do Nós, mulheres da periferia. É autora de VÃO: trens, marretas e outras histórias (Patuá) e ministra oficinas e palestras sobre cidade e literatura.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.