Hospital público: “me sinto só um número em um atendimento”
Precisa do número?, pergunto, e ele responde que não. Glória, o médico é humano. Vou jogar o papel fora, mas, na saída do consultório, a enfermeira informa que eu-número vou ser chamada pelo painel.
Por Jéssica Moreira
23|04|2018
Alterado em 23|04|2018
Há uma criança chorando sem parar no fundo do corredor. Minha dor de estômago também. Aquela frase “10 mil cairão ao seu lado” é tão real quando você se vê na recepção de um hospital público. “Tã nã”. “Tã nã”. O barulho da máquina também grita, anunciando o próximo número. Somos números e apenas números somos. A máquina apitou 0060.
Balcão 1. O atendente não me olhou. Dei meu registro de identidade. Ele digitou alguma coisa. Imprimiu uma sulfite A4. Se eu estivesse em um ataque zumbi, ele, com certeza, já estaria morto. Me entregou a folha. Seus olhos continuavam mirando a tela de um Windows 98. Não perguntou, em nenhum momento, o que me levava até ali. Apontou o dedo para um espaço em branco onde cabia o meu nome completo. Assinei. “Olhe o painel”, ele disse, mas sua humanidade era menos sensível do que o atendente eletrônico da operadora telefônica, que não para de me ligar.
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Sentei no banco, outras crianças choravam alto. De fome, de dor. Eu queria ter o tamanho delas pra poder chorar minha insignificante dor. Tã nã. Tã nã. 0060 – apontava o painel, sugerindo que eu-número fosse até a classificação de risco.
– Olá, o que a senhora tem?”.
– Bom dia”, eu-número disse pra tentar quebrar o gelo.
– Bom dia, moça, a outra enfermeira respondeu, já colocando o aparelho de medir pressão no meu braço direito.
– Então, tentei falar, enquanto fui interrompida por alguma pessoa na porta. “Então”, tentei de novo, mas a enfermeira me interrompeu pra informar a minha temperatura. Trinta e seis ponto seis. Pressão dez ponto seis. “Então, minha barriga…”, tentei começar de novo, quando uma delas mais uma vez me atravessou com pressa.
– Diarreia, você tá com diarreia. Alguma doença? Diabetes. Pressão Alta. Câncer. Tá grávida?
– Não. Não. Não. Não.
– Pode aguardar, você será chamada pelo nome.
Nome. Nossa, quanta humanidade! Deixarei de ser número. Vinte minutos. Jessica Aparecida. Entrei. Mais uma fila me esperava até chegar ao médico. Aquilo deveria ser alguma cena kafkiana de O Processo e eu iria morrer sem chegar até o médico. Perdi o papel com o número. Ah, meu deus. Saí andando pelo corredor. Chamaram meu nome, mas eu continuava número. E perder o número era perder a vez. Chacoalhei a blusa de linho que me esquentava do gelo das paredes e das pessoas. O número estava ali. Ufa, me aliviei.
Um rapaz chegou com a cabeça estourada. Ele devia estar jogando futebol, denunciava o meião laranja até o joelho. Não havia ortopedista, ele foi embora. Ao meu lado, uma menina falava com sua mãe por língua de sinais. O médico a chamou. A mãe tradutora entrou no consultório. Acho que os médicos deveriam falar em Libras.
Minha dor voltou. Queria que minha mãe estivesse aqui também. Não tenho febre, mas um calafrio aperta a barriga, então eu desencosto da parede fria. Eu não quero mais isso. Aguardo…o médico chama meu nome.
– O que aconteceu? Onde você estava ontem?. Eita, é uma consulta médica ou um interrogatório. Respondi com um “eu comi pastel”, me sentindo mais uma vez em o Processo.
– É diarreia – essa insignificante dor, ele não disse, mas dava pra ver o que achava em seu semblante. Crianças morrem de diarreia, eu penso, mas é uma insignificante dor que me causa calafrios. Passa o medicamento. O soro.
– Precisa do número?, pergunto, e ele responde que não. Glória, o médico é humano. Vou jogar o papel fora, mas, na saída do consultório, a enfermeira informa que eu-número vou ser chamada pelo painel. Espero mais quinze minutos.
– Qual é seu nome? Ela perguntou meu nome e não meu número. Pegou uma agulha e furou meu braço. Nenhum sorriso, nenhuma interação. Agora, meu corpo estava aberto a uma substância que tirava a minha visão, mas com a promessa que a dor passaria.
Na sala de medicação, outros números conversavam. Outros números conversavam! Nossa, só no encontro um com os outros os números podem voltar a ser gente. Até tinha uma vizinha minha por lá. O soro pingava cinco vezes por minuto. A prosa com os outros números era mais rápida. Exercício de paciência. Um policial com sua farda de soldado Soares também tomava soro. Ele também era um número. Os pingos foram findando, findando, até que acabou e eu, sem enxergar muita coisa, fui atrás do meu tio. Ainda no carro, o papel caiu…”Oh, o número”, ele apontou. “Guarda pra você, joga no Bicho, quem sabe isso valha pra alguma coisa”.
O Nós, mulheres da periferia está realizando uma reportagem sobre o atendimento ginecológico nas periferias. Você tem alguma informação ou relato para compartilhar? Envie para gente: contato@nosmulheresdaperiferia.com.br