“Fui presa por solicitar socorro a uma pessoa negra baleada”

Andreia Luiza Rosa, 42 anos, moradora da zona leste de São Paulo. Professora da rede municipal, mulher negra e ativista dos direitos humanos, contra o genocídio da população negra. É integrante do grupo de coco Semente Crioula. Em uma noite de sexta-feira, dia 30 de outubro de 2015, cheguei em casa por volta de 23h30, […]

Por Redação

02|12|2015

Alterado em 02|12|2015

Andreia Luiza Rosa, 42 anos, moradora da zona leste de São Paulo. Professora da rede municipal, mulher negra e ativista dos direitos humanos, contra o genocídio da população negra. É integrante do grupo de coco Semente Crioula.
andreia rosa
Em uma noite de sexta-feira, dia 30 de outubro de 2015, cheguei em casa por volta de 23h30, com fome, pra variar. Liguei na minha pizzaria favorita e pedi esfihas e um refrigerante. Depois de algum tempo esperando, o entregador me ligou e disse que não poderia chegar na minha casa, pois a polícia não deixava ele passar, porque a rua onde eu moro estava interditada.
Então, o entregador perguntou se eu poderia retirar a pizza com ele, do outro lado da rua. Pedi para aguardar um momento e fui até ele. Nesse instante, vizinhos se aproximaram e perguntei o que estava acontecendo, por que havia tanta polícia na rua, e por que estava interditada. Os vizinhos me disseram que a polícia havia atirado em dois rapazes que estariam tentando roubar uma moto. Também relataram que os policiais disseram que os rapazes estavam supostamente armados, mas que não houve troca de tiros, que apenas os policiais atiraram.
Continuaram a relatar que se aproximaram dos rapazes baleados para vê se não eram conhecidos, e disseram que apenas um dos rapazes seria socorrido, que o outro ainda encontrava-se no chão e parecia em pior estado. Disseram também, que na rua da feira, aqui próximo de casa, no domingo passado, policiais atiram em um rapaz que morreu sem atendimento médico, pois a PM não deixou que o SAMU o socorresse, quando ainda estava com vida.
Meu vizinho disse que não era “um dos nossos”. Perguntei se o rapaz baleado no chão era negro. A resposta foi sim. Então, eu disse: “se é negro, é um dos nossos, sim. Não vai ser hoje que vai morrer mais um irmão de cor por omissão de socorro”.
A indignação foi maior que o medo, me aproximei do policial que estava ao lado do rapaz baleado e perguntei:
– Nossa, moço! O que houve com o rapaz? Ele está morto?
Resposta do policial: – Não, não está. Foi baleado.
– Então, por que vão socorrer apenas um? Já que os dois foram baleados?
– Por que você está solicitando socorro à vítima? Você conhece a vítima? É parente da vítima?
– Não, eu não sou a vítima. A vítima é ele, que está baleado e caído no chão. Ele precisa de socorro. Por que vocês estão negando socorro a uma pessoa baleada? Por que o carro do Corpo de Bombeiros está indo embora?
– Moça, o que a senhora está fazendo aqui? Como veio parar aqui?
– Sou moradora aqui. Moro naquela casa e apontei onde eu morava.
-Retire-se do local. Passe por esse lado da fita e dê a volta no quarteirão para ir pra sua casa. A senhora sabia que está interferindo em uma ocorrência policial?
Um policial puxou meu braço e disse que eu não poderia passar pelo mesmo local onde meus vizinhos estavam passando. Daí em diante começaram agressões físicas e verbais. Pedi para que me soltasse, que eu queria apenas ir para minha casa. Foi quando um policial gritou: joga ela na viatura, isso é carniça. Um outro disse: é só uma nega maluca, joga logo na viatura. O mesmo policial que me puxou pelo braço puxou meu cabelo e me jogou no chão retirando meu turbante. Eu cai na rua, ele chutou meu refrigerante e ficou pisando com um dos pés nas minhas costas.  Eu, já no chão, disse: “Policial, estou ouvindo você me xingar de carniça. Qual o seu nome?” Então, ele me respondeu: “Meu nome é vai se fod%#&r!”.
Comecei repetir o xingamento dele bem alto para que todos pudessem ouvir: “vocês estão ouvindo? Ele está me xingando de carniça, está mandando eu me fod%$&r!” O PM continuava a me xingar de carniça, repetindo diversas vezes e se aproximando do meu rosto, que nesse momento, estava colado no chão pela força de outro policial, enquanto o que pisava nas minhas costas mantinha uma arma apontada para mim. Dois policiais se aproximaram e um deles me algemou, os dois me pegaram pelo braço, me levando para a viatura, enquanto eu gritava os nomes de meus vizinhos que passavam no local, pedindo para que avisassem meu companheiro que a polícia estava me levando. Eles me jogaram na viatura e bateram a porta.
No local, havia muitas pessoas, muitos conhecidos. Afinal, são meus vizinhos. E eu me questiono: por qual motivo ninguém fez nada? Por qual motivo ninguém questionou a omissão de socorro ao rapaz negro caído no chão? Por que ficaram indiferentes quando apenas o rapaz branco foi socorrido, ou enquanto eu sofria repressão e abuso policial?
Uma das respostas a essas perguntas, muitos já sabem, pelo menos nós pretos sabemos, chama-se racismo institucional. Outra resposta é o medo. O que mais ouvi de pessoas conhecidas, de colegas de trabalho, de familiares foi: mas você não sabe que não se pode “mexer” com a polícia? Eu não consigo ver dessa forma. Realmente, não acredito que eu estava agindo contra os policiais, mas sim em defesa da vida, dos bons profissionais e da correta apuração do crime. Sei muito bem que a autoridade do policial não dá a ele o direito de agredir física ou verbalmente qualquer pessoa e que conduta violenta é ilegal. Mas, quem se importa, quando esses casos de abuso são cometidos contra pessoas negras, na periferia?!
Na viatura, tentei ficar calma, embora estivesse totalmente apreensiva quanto o que poderia me acontecer. Só pensava, se meu companheiro iria saber onde eu estava, porque nem documentos eu tinha comigo. Chegamos na delegacia. Como, nunca havia sido presa antes, fiquei aguardando o que eles fariam. Os PMs saíram da viatura e vieram outros perguntar o que havia acontecido. O policial que me levou à delegacia disse: “é louca. Deve tá drogada. É defensora de bandido”. Nisso, mantive-me sentada mais um pouco e dizia pra mim mesmo: “eles não vão me intimidar dizendo essas coisas”.
Mal sabia eu que eles usam essa tática há anos. Que, nós negras e negros recebemos o mesmo tratamento desde que fomos trazidos de África às Américas. Há 300 anos atrás, meus antepassados eram açoitados até sangrar. Depois, jogavam água salgada do mar em suas feridas para que gritassem, até urrarem de dor. Então, diziam que eram macacos, que gritavam feito animais, que não sabiam falar, apenas gritar. E assim, ficaram a me insultar. Foi quando me levantei na intenção de mostrar que estava presa, mas minha dignidade, ainda estava de pé. Nisso, os dois policiais entraram na viatura e disseram para eu sentar que iriam rodar comigo mais um pouco até planejarem o que diriam à delegada.
Me desesperei e comecei a gritar de dentro da viatura: “me tirem daqui, vocês disseram que eu seria trazida para prestar queixa. Quero sair daqui. Qual a necessidade de me manterem aqui dentro? Então é isso? Vocês vão me deixar aqui agonizando, igual fizeram com o rapaz baleado? Socorro, abram essa porta, por favor!”. E eles ignoraram meus pedidos gritados e me chamaram de vagabunda, mandaram eu calar a boca porque eles queriam combinar o que falariam à delegada para que ela me prendesse e ficasse todo “redondinho” o depoimento deles. E eu me desesperando dizia: “ei eu estou aqui, eu estou ouvindo o que vocês estão falando. Parem, quero falar com delegado, eu não fiz nada disso”. Eles falaram: “cala boca vagabunda que vamos falar com a base”. Quando percebi que estavam falando no rádio, gritei ainda mais alto: “eu não sou vagabunda, sou uma professora, sou mais que um individuo, sou uma mulher que foi agredida por vocês, porque questionou omissão de socorro a uma pessoa baleada por vocês”.
Nesse instante, meu companheiro chegou à delegacia e perguntou aos policiais porque eu ainda estava na viatura. Disse que aquilo era desinteligência por parte deles me manterem ali, que não havia necessidade para isso, pois eu não representava nenhum perigo a eles, já que eu estava algemada, disse que eu era professora, que eu não os havia desacatado, que eu era funcionária pública como eles. Foi, quando eles abriram aporta e falaram: “vai sua louca, não era isso que você queria? Agora vai, sai, pode sair”.
Me levaram algemada para o interior da delegacia. E lá ficamos por algumas horas, eu e o policial. Este, por sua vez ficava me encarando e me chamando de louca, fazendo gestos com as mãos. Passados alguns muitos minutos, a delegada foi falar comigo. De forma bem irônica, me perguntando se eu estava mais calma. Dizendo que esteve no local do crime e que viu a fita que eu cortei e continuou insistindo que eu havia agredido os policiais e que eles tinham testemunhas. A essa altura, a delegada já sabia que eu era professora, que assim como ela, era uma funcionária pública. Mas, ela insistia em tentar me incriminar, sem dar chances de eu me defender. Deu ordens para o policial me manter algemada até que eu resolvesse colaborar e concordar com a versão dos policiais.
E lá fiquei algemada e sendo insultada por policiais que me chamavam de louca, vagabunda, desonesta, entre outras coisas, disseram até que eu deveria chorar, me ajoelhar e implorar pra delegada me soltar. Chegou uma policial feminina para me revistar. Perguntei a ela se esse procedimento estava correto: a presença de dois homens enquanto ela iria realizar revista. Ela ignorou e me perguntou por que eu estava tremendo e reinterou dizendo, “agora todo mundo é bonzinho, disseram que você agrediu os policiais”. Perguntei se ela acreditava mesmo que eu, sendo uma mulher de 1m e 60cm, pesando cerca de 56 kg poderia agredir quatro policiais homens e armados. Também perguntei como ela ficaria se tivesse sido jogada no chão e chamada de carniça, nega maluca, vagabunda, louca, drogada e desonesta, quando se é apenas uma professora questionando omissão de socorro por parte dos policiais que te deram voz de prisão e depois de está algemada há duas horas. Também perguntei se ela já havia sido tão insultada dessa forma, ela apenas respondeu: boa sorte. Não entendo muito de direitos humanos a pessoas encarceradas, mas me senti violada, sendo humilhada de várias formas: xingamentos, olhares de condenação, fotos sem autorização, julgamentos baseados na sua aparência e cor da pele, seu direito de defesa negado, sua liberdade negada, sem voz, sem comunicação, apenas eu, um corpo feminino em um ambiente totalmente hostil, tentando manter sua dignidade.
Ainda há pessoas que conseguem manter sua humanidade em uma delegacia. Tive a chance de conhecer uma dessas pessoas. Quando, finalmente tiraram as algemas, um funcionário veio coler minhas impressões digitais, perguntou se eu queria utilizar o banheiro, beber água e lavar o rosto. Perguntou meu nome e ficou tentando me tranquilizar dizendo, que meu companheiro estava lá fora aguardando, que se eu quisesse ele poderia falar com meu companheiro para ir em casa buscar uma roupa e algo para eu comer. Também me disse eu não precisava assinar a versão dos policiais, que eu deveria me manter calma que ele iria pedir para a delegada coler meu depoimento. Eu disse a ele que queria sim que ele falasse com meu companheiro para trazer algum advogado.
E então, depois de horas esperando, a delegada resolveu ouvir meu depoimento. Porém, antes ficou repetindo a versão dos policiais e me encheu de perguntas, penso que a intenção dela era me deixar nervosa. A única pessoa que tentava me tranquilizar, a delegada impediu que ficasse na sala, mandou que ele ficasse no corredor. Tentei o máximo que pude ficar indiferente às provocações. Sim, considero provocações dizer que fiz coisas que não fiz, como chutar propositalmente os cartuchos de balas/projeteis, cortar a fita de isolamento, agredir os policiais. Não, eu não alterei o local do crime. Não, não agredi os policiais, Não eu não os xinguei. Não, eu não os ofendi. O mais estranho é que não foi registrado no boletim de ocorrências que eu fui agredida, que eu tinha arranhões nos ombros, joelhos, nos cotovelos, no queijo, no abdômen, o lábio inferior cortado e inchado. Ela apenas disse que eu estava sozinha, que até meu companheiro havia me abandonado, que eu não tinha testemunhas, que meus vizinhos não se importavam comigo.
Enquanto, a delegada tentava me intimidar e tomar meu depoimento, um funcionário entrou e disse que o perito que foi ao local, estava dizendo que o caso não poderia ser registrado ali, que deveria seguir para o DHPP. Nesse momento, aquela delegada me passou impressão de total insegurança, por desconhecer as portarias relacionadas a seu trabalho. Ela pediu para que o funcionário pesquisasse sobre a tal portaria, dizendo “assim não dá, toda hora muda essa portaria. Ninguém morreu no local. Só porque ele viu a pessoa baleada no chão, tá achando que houve homicídio“. Ela se dirigindo a mim, disse: “tá vendo, ninguém morreu? O que você foi fazer lá? Por que tinha que cortar a fita? Você que causou tudo isso pra você“. Respondi: “se o perito é um especialista e pode se confundir, por que eu, que sou só uma professora, também não posso ter pensado que o rapaz estava morto?”. E mais uma vez respondi que não rompi a fita, que eu estava na rua porque fui buscar as esfihas que a PM não deixou que o rapaz da pizzaria entregasse, porque a rua estava interditada. Mas, ela continuava alegando que os policiais tinham testemunhas.
Já que a delegada não estava disposta a investigar o que eu dizia, resolvi fazer alegações. Disse a ela que eu também tinha testemunhas, mas que ela não deixava eu falar com meu companheiro, pois ele era testemunha de que eu não havia cortado a fita e que o entregador da pizzaria também era testemunha, afinal ele tinha me ligado dizendo que não poderia fazer minha entrega porque a rua estava interditada, logo quem alterou o local do crime foram os policiais, trocando a fita de local. Mas, tudo isso foi em vão, pois o escrivão não registrou nada do que eu disse, e ela como delegada também não deu atenção ao fato dessa inconsistência no depoimento dos policiais.
Depois, o policial que me levou à delegacia chegou com o rapaz negro que fora baleado. A delegada começou a falar em tom alto, seguido de nervosismo: “se você não tem o papel com a laudo do médico, não posso ficar com ele aqui. Leva ele de volta para o hospital. Cadê o outro assaltante?”. E o policial disse: “o outro tá no hospital. Não posso levar esse de volta, porque a corregedoria está já tá no nosso pé. Não posso ficar rodando com ele“. E eu, pergunto: se não houve mortes, por que só o rapaz branco ainda estava no hospital? Por que o policial trouxe o rapaz negro sem alta médica? Por que uma pessoa branca quando é baleada merece ficar no hospital em observação e a pessoa negra pode sair, com com sangue escorrendo pela perna , sem direito de ficar em observação após ser baleado e retirado do hospital sem alta médica?
Para a delegada, sou apenas uma “defensora de bandido”. Foi o que ela disse, apontando para o rapaz: “tá vendo? Olha aí o que você defende, bandido“. Mas eu sei que eu estava defendendo um direito básico do ser humano, ser socorrido após ser baleado. E respondi a ela: “doutora, eu não sou juíza, sou professora. Você também não é juíza, é delegada. Os policiais que dispararam suas armas contra os rapazes, também não são juízes. Portanto, não podemos condená-los. Eles tem direito  de serem socorridos, afinal omissão de socorro é crime,  e eles também tem direito a um julgamento justo diante de um juiz. No Brasil, não existe pena de morte decretada por policiais“. Minha intenção era deixar bem claro que não defendo bandidos, sou ativista de direitos humanos básicos, principalmente à população negra.
Acho que minha militância contundente a deixou irritada porque ela disse que nada do que eu disse iria mudar a decisão dela e finalizou dizendo: “você sabe que você está presa, né?” Eu questionei o motivo, ela disse que os motivos eram: desacato, desobediência e resistência. Ainda tentei fazer minha defesa, perguntando se eu poderia pagar fiança, porque nunca vi ninguém ficar preso por desacato, ou desobediência. Mas ela alegou que somando os três artigos, passava de quatro anos, portanto eu não teria direito de pagar fiança, que eu ficaria presa até terça-feira (dia 03/11), quando teria direito a uma audiência de custódia e um juiz decidiria minha vida.
Nesse instante fiquei com medo, totalmente desesperada, foi quando a única pessoa humana, até então naquela delegacia, entrou na sala e esclareceu a delegada, dizendo que assim que ela finalizasse a ocorrência, ela deveria comunicar, imediatamente, minha prisão, que era só encaminhar para o juiz de plantão, no Fórum criminal da Barra Funda, que não havia motivos para eu ficar detida até terça-feira. Ela, mais uma vez, demonstrou que não conhecia os procedimentos e perguntou ao escrivão se isso era possível. Ele disse que sim, que era tudo informatizado, que ela poderia encaminhar ao juiz de plantão. Então, pedi a ela que encaminhasse ao juiz, ela se negou. E um tom, que demonstrava irritabilidade com meu pedido, deu ordens para um funcionário me levar de volta para cela, para que eu assinasse o boletim de ocorrência com a versão dos policiais e meu depoimento.
Antes de assinar, comecei a ler e questionar ao funcionário que me acompanhava por que eu deveria assinar aqueles papeis, já que eu não concordava com nada do que estava escrito. E ele me disse: “não precisa ler. É só assinar. Você não tem que concordar, só tem que assinar. São só procedimentos de rotina. É melhor você assinar. Para o seu bem, assina logo e para de ler, ou você não vai poder ver seu marido“. Quanto mais eu lia, mais eu chorava, de raiva, de indignação por tanta injustiça, ter que assinar declarações que eu não concordava e já passava de quatro horas da manhã e eu ainda não tinha falado com meu companheiro. Por fim, pedi uma cadeira para o funcionário porque estava com muita dor nas costas e tinha que agachar até a mesa para assinar. E ele disse que ia perguntar a doutora se era possível trazer uma cadeira. Ao ler o boletim de ocorrência, vi que a delegada não mencionou as agressões físicas ou verbais que relatei ter sofrido por parte dos policiais. Afinal, eles são funcionários públicos e devem agir sempre de acordo com a lei. Assim, quando cometem algum abuso estão sujeito à punição e deve ser denunciado.
Eu os denunciei, porém nada foi registrado. Nesse momento, senti que não poderia fazer mais nada, minha prisão estava decretada, iria amanhecer e eu sem saber se iria ou não conseguir um advogado. Pedi para o funcionário deixar a cadeira comigo porque estava com muitas dores e com medo dos ratos que estavam transitando na delegacia. Ele me deixou ficar com a cadeira na cela. Outro funcionário passou e disse: “vocês deram uma cadeira pra essa louca, com esse pano na cabeça. Agora é só ela se suicidar. Pronto agora não falta mais nada”.
Quando terminei de assinar os papeis e voltei pra cela, o mesmo funcionário que coleu minhas impressões digitais foi coler do rapaz negro baleado no incidente. Então, perguntei seu nome. Perguntei também se lembrava de mim, se tinha visto eu agredir e xingar os policiais. Ele respondeu que lembrava de mim, me viu quando me aproximei do policial e perguntei por que iriam socorrer só uma pessoa, e que eu não havia xingado ou agredido os policiais. Em um tom de arrependimento, me pediu desculpas, dizendo que ele havia me colocado naquela situação. E eu disse que ele não me devia desculpas, que ele assim como eu era uma vítima dessa situação.
Por volta de cinco horas, depois de ter assinado todos os papeis, finalmente pude conversar com meu companheiro. Ele foi até mim e disse que esteve lá na delegacia o tempo todo, porém a delegada não o deixava entrar. Que ele estava desesperado, sem saber o que tinham feito comigo e como eu estava. Pedi a ele que avisasse todos nossos amigos sobre a minha prisão arbitrária e perguntei se já havia conseguido um advogado. Ele respondeu que estava tentando contatar um advogado e que iria avisar aos nossos amigos o que estava acontecendo.
Quando amanheceu o funcionário que colheu minhas impressões digitais veio me dizer que o plantão dele estava acabando e que a delegada ainda não havia encaminhado meu caso ao juiz de plantão do Fórum da Barra Funda. Eu agradeci pelo apoio e força que ele me deu durante seu plantão e pedi que falasse com meu companheiro sobre esse fato. E houve troca de plantão, um delegado chegou à delegacia e me cumprimentou e perguntou qual meu artigo. Respondi que estava presa por desacato, desobediência e resistência. E ele comentou: “como assim? Ninguém fica preso por desacato. Foi essa delegada que está aí que efetuou sua prisão? Nossa isso é um absurdo! Você sabe que essa sua prisão é arbitrária, né?! Espera um pouco que eu vou falar com ela”. Foi então que pensei: “meu Deus existe bons profissionais! Nem tudo está perdido“. Logo em seguida um policial civil veio conversar comigo, perguntou se eu queria tomar café ou beber água, ir ao banheiro e se desculpou pela atitude da colega de trabalho. E me disse: “você sabe que vai ter que procurar a corregedoria”. Mas naquele momento eu só pensava em sair, em ir para minha casa.
De onde eu estava podia ouvir a delegada falando que iria me manter presa, porque os policiais tinham testemunhas e que iria me transferir, já que o delegado não me queria na delegacia. E ela dizia que era para colocar todo mundo na viatura: a mulher (eu), os menores e os ‘nóias’, palavras dela. Depois de muita discussão, dois policiais civis vieram falar comigo que eles iriam fazer minha transferência. E, finalmente, um advogado chegou e veio falar comigo, por volta de sete horas. Eu perguntei se ele iria coler meu depoimento novamente e se iria pedir um habeas corpus, mas a resposta dele foi não. Que ele já havia falado com a delegada, e que no meu caso não caberia habeas corpus e sim outra medida.
Dois policiais civis me levaram, sem algemas, sem viatura oficial, para fazer exame de corpo de delito no IML (Artur Alvim), e seguiram comigo até a 89ª DP de forma muita respeitosa e compreensiva, conversaram comigo durante todo o trajeto. Chegando lá, fui revistada por um carcereiro (isso mesmo, um funcionário do sexo masculino). Perguntei a ele por qual motivo ele estava fazendo essa revista e não uma policial feminina e ele me respondeu que era procedimento de rotina, que não tinha nada de mais. Eu entendo isso como violação de direitos. Esse mesmo funcionário, ficava me fazendo ameaças o tempo todo que estive na 89ª DP.
Mesmo ele sabendo que meu companheiro já se encontrava na mesma delegacia desde às 14hs, ficava dizendo pra mim: “se seu marido não chegar com seu diploma, vou te colocar lá na outra cela com todas aquelas detentas (aproximadamente 20 mulheres). Tá chorando por quê? Tá com dor? Vai rezando pro seu marido chegar logo, senão você vai pra lá“. Eu sem saber se meu companheiro estava ou não na delegacia, chorava muito, enquanto o carcereiro parecia se divertir com meu sofrimento. Estava tão desesperada, sem notícias, que perguntei e implorei várias vezes para ele ligar e avisar meu companheiro que eu estava ali e precisava desse documento, mas ele ria e dizia para eu esperar mais um pouco.
Por volta de 16h, o deputado Carlos Giannazi compareceu à delegacia, se aproximou da cela onde eu estava presa, me cumprimentou e me acalmou, dizendo que meu companheiro, meus amigos e um advogado da Apeoesp se encontravam na delegacia. Que eu ficasse tranquila, pois meu alvará de soltura já havia sido expedido pelo juiz, só estavam aguardando chegar à delegacia através de um oficial de justiça. Disse também que depois eu poderia procurá-lo, para que juntos pudéssemos acionar o Ministério Público e a corregedoria para apurar o caso. Agora, o choro era de alívio. Pelo menos, já sabia que não iria passar mais uma noite na delegacia. Porém, as horas foram passando e nada de sair daquele pesadelo. Então, por volta de 20h o carcereiro me chamou para assinar uns papeis, dizendo que eu estava livre.
Quando sai pude abraçar meu companheiro e minha amigas, um amigo e o Dr. Marco Aurélio da Apeoesp. Também fiquei sabendo que o Secretário Municipal de Direitos Humanos, o ex-senador Eduardo Suplicy, ligou na delegacia para falar com o delegado sobre meu caso. Foi muito reconfortante saber que não ando só, que tenho ao meu lado pessoas que assim como eu, são solidárias a dor do outro, que são favoráveis aos direitos humanos, à vida e contra qualquer tipo de discriminação. Pessoas que são contra abusos de autoridades e violações de direitos.
Muito mais que as lesões, dores físicas e emocionais causadas pelo vexame e constrangimento, ficaram em mim as marcas de um Estado opressor, que ainda tem resquícios de autoritarismo da ditadura militar. Que prefere punir a identificar as causas de tantas formas de violência. Um Estado que viola direitos e que perpetua o racismo. Não culpo os policiais, porque assim como eu, são trabalhadores, funcionários públicos cumprindo ordens. Vivemos em uma inversão de valores, uma sociedade doente e omissa onde as pessoas se calam diante de abusos de autoridades e violações de direitos humanos.
Quero acreditar em dias melhores para todas e todos. Quero viver sem medo. Quero viver em uma sociedade com mais justiça e equidade, onde cada um seja respeitado apenas por ser um ser vivente.
andreia rosa 2