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‘Eu vou morrer dentro do batuque’: conheça o Quintal da Dona Marta

Dona Marta Joanita conta como conheceu a Umbigada e sua luta para perpetuar a dança afro-brasileira em Capivari, cidade do interior de São Paulo.

Por Redação

13|09|2022

Alterado em 13|09|2022

Por: Beatriz Oliveira e Mariana Oliveira

Trazida pelos negros escravizados durante o período colonial, a Umbigada é uma manifestação cultural afro-brasileira disseminada pelos mais diversos quilombos do país.
É no ‘Quintal da Dona Marta’, em Capivari, interior de São Paulo, que a umbigada também se faz viva no estado paulista.

O espaço é um dos redutos da tradicional dança e tem em Marta uma fonte de história e saber. Mestra e líder do Quintal, orgulha-se em ver seus filhos e netos perpetuando a tradição e a população da região valorizando essa cultura.

“Eu vou morrer dentro do batuque, é uma coisa que a gente faz com amor e carinho”.

Dona Marta

Nascida no Paraná em 25 de julho de 1950, Dona Marta Joana transitou por diferentes cidades com sua mãe até chegar em Capivari, cidade do interior de São Paulo, lugar onde vive até hoje. Foi ali que ela construiu sua história: casou, teve filhos, netos, bisnetos e se encantou com a Umbigada.

“Minha vida sempre foi muito sofrida. Criada sem pai, na verdade nem conheci. Tive que parar de estudar. Tudo que minha mãe queria era que eu estudasse, embora ela fosse analfabeta. Fiz do primeiro ao quarto ano. Fui para a roça, e assim me criei”.

Sua relação com a dança começou por volta dos seus 23 anos, com Dona Paulina, avó de seu ex-esposo, que já participava da Umbigada. “Eu ficava ali sentada até que um dia cansei e falei para ele que queria dançar, então comecei a acompanhar eles”.

Após a separação, chegou a ficar dez anos distante da prática da Umbigada. O retorno à dança se deu quando a Mestra Anicide de Toledo, referência da região de Capivari, a convidou para coordenar o batuque de Capivari, assim, há mais de 20 anos está envolvida na Umbigada local.

Cultura e políticas públicas

A Umbigada era apresentada na cidade em sítios, casamentos, batizados ou datas celebrativas, como o 13 de maio – marco da Abolição Inconclusa da Escravatura – e 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. E também em 10 de setembro, quando Mestra Anicide de Toledo comemora seu aniversário.

Quando Dona Marta se tornou assessora de assuntos culturais de Capivari e a prefeitura solicitou um levantamento da população negra da cidade que Marta teve a dimensão da importância da Umbigada para a região. Foi aí, então, que ela começou a sonhar em ter um espaço exclusivo para fazer as festividades. “A gente não tinha um lugar para reunir um dia que quisesse fazer um batuque, então foi onde surgiu a ideia de colocar o meu quintal”.

A construção do quintal foi realizada aos poucos. De princípio, os batuques eram feitos embaixo de um bambuzal e com a ajuda de alguns batuqueiros arrumaram o terreno. “Puxamos um bico de luz e lá a gente se reunia e dançava, mas ainda estamos lutando porque falta muita coisa”.

Em 2018, conseguiram financiar a construção de um barracão com a ajuda de um edital público. “A gente arregaçou a manga e trabalhamos por três meses na construção do quintal”.

A área próxima aos bambus foi mantida como memória e atração para as festas. Mas a questão financeira é ainda o grande desafio do Quintal, já que todas as atividades são custeadas por editais e os cachês de apresentações. “Não temos uma renda fixa para o quintal, todo mundo aqui trabalha por fora. Recebo encomendas de roupa africana, principalmente para religião Candomblé e Umbanda, é o dinheirinho que entra. E eu sou aposentada por idade, a gente se mantém assim”.

Um ritual ancestral

Falar sobre umbigada é também falar sobre ancestralidade. Antes de qualquer apresentação, os presentes fazem um agradecimento a Deus e também àqueles que vieram antes. Agradecem também pela vida e pedem força para seguir.

Tudo se inicia com um agradecimento a Deus e aos ancestrais pela vida, pelo dia e pela força. “Tudo que fazemos é porque tivemos um ancestral que nos conduz e nos permite dar continuidade, então buscamos preservar essa ancestralidade”.

Depois da oração, ao som de tambores como do tambu, quinjengue, e também da matraca e do chocalho, a mestre inicia o canto.

O grupo tem em torno de 20 pessoas e é formado por duas fileiras: os homens cumprimentam as mulheres que estão na fila oposta e retornam a seus lugares. O movimento é repetido, mas desta vez pelas mulheres e assim a dança começa, sem a necessidade de um par fixo.

“Não é uma dança que agarra o par, não, é livre”. Pré-requisitos também não são necessários, como coloca Dona Marta, “Quem gosta e tiver vontade pode entrar na roda e dançar. Estamos ali homenageando a vida, o umbigo que é nossa primeira boca, porque nem um feto consegue sobreviver se não for através do cordão umbilical”.

No figurino, cada grupo também tem autonomia de escolha. No Quintal, geralmente as mulheres utilizam uma saia longa e estampada com uma camisa branca. Já os homens vestem calça branca e blusa vermelha. A confecção deles também é da responsabilidade de Dona Marta. “Eles pedem, eu vou e costuro. Trabalho muito”.

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No figurino, as mulheres utilizam uma saia estampada e camisa branca. Os homens, calça branca e blusa vermelha

©Reprodução

Durante a pandemia, as atividades presenciais foram interrompidas e tiveram de recorrer às transmissões virtuais para manter o batuque ativo. No mesmo período perderam muitos batuqueiros em decorrência da Covid-19.

Com o retorno às atividades presenciais, a partir deste ano, o Quintal iniciou a oferta de oficinas para as crianças aprenderem tocar e dançar, e desse modo perpetuar a tradição. O respeito aos ancestrais também é mantido durante a nomeação de um novo mestre, nas indicações sempre são priorizados os Mestres mais velhos. “Eu coordeno no batuque desde 2009, agora é que a turma está me chamando de Mestra. Entramos e conforme passam os anos aprendemos a história, porque não adianta você dançar sem saber do que se trata”.

Focar no letramento das crianças é formar um adulto melhor, e do mesmo modo levar esse conhecimento a seus pais.

“As crianças não nascem racistas, mas aprendem com a convivência de cada lar. É um trabalho de formiguinha, mas com mais pessoas a gente vai conseguindo para não deixar a ancestralidade morrer”.