Trabalhadoras do sexo, garotas de programas, mulheres em situação de prostituição, putas. Nas periferias, apesar da pandemia, mulheres enfrentam o preconceito e o estigma do trabalho para garantir seu sustento e de suas famílias.
Reportagem de Bianca Pedrina em parceria com Lucas Veloso, da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
Arte de Magno Borges
Atualizado em 02|05|2023
Todos os dias, por volta das 6h, Luana*, 36, sai do Jardim Luela, bairro do município de Suzano, na Grande São Paulo. Com calça jeans, tênis e cabelo amarrado, pega um ônibus até o trem. Depois vai até a Estação da Luz, no centro de São Paulo. Lá, entra em um hotel e veste uma minissaia, passa batom vermelho escuro, coloca salto alto e desamarra o cabelo.
Negra, ela gosta de cores chamativas pelo contraste com a pele. “Me destaca mais. Quem passa, para pra me ver na calçada”, conta.
Luana é uma prostituta. A rotina dela consiste em ficar na região da Luz andando pelas calçadas, esperando um carro parar, um cliente chamar para um programa. Quando alguém aparece, os dois vão para algum lugar ali perto, geralmente um quarto pequeno onde tem uma cama e um ventilador antigo.
Ela e outras mulheres ouvidas nesta reportagem têm em comum uma vida marcada pelo preconceito e estigma em volta da profissão que exercem.
Trabalhadoras do sexo, garotas de programas, mulheres em situação de prostituição. Putas. Independente da termologia mais adequada, elas fazem sexo e ganham dinheiro em troca desse serviço.
Usam seus “nomes de guerra” e vivem uma vida dupla para serem aceitas pela sociedade. Mulheres que encaram essa realidade apenas para pagar as contas.
Muitas se sustentam assim há anos. Outras começaram agora por conta da pandemia de Covid-19, e do desemprego em alta. Não importa se trabalham em casas noturnas afastadas ou em regiões centrais de São Paulo. Em comum, elas têm que voltar para o mesmo lugar: as periferias.
Para Vanessa*, 28, a vida na prostituição começou aos 15 anos. Na época, queria a liberdade que a família desestruturada e o padrasto controlador não permitiam.
“Ele era muito quadrado, queria me repreender, não me deixava sair, receber amigas na minha casa, porque tinha ciúme”, relembra. “Eu queria alguma brecha para escapar daquela vida”, conta.
A brecha surgiu inicialmente no tráfico de drogas, após se relacionar com um namorado que era traficante. Os estudos foram deixados de lado para uma vida de “ilusão” junto ao namorado, segundo ela. “Me ancorei nele. Sabia que não ia ter um padrasto abusador e passar necessidade, porque ele mexia com as coisas erradas, ganhava muita grana.”
Durou pouco. Ele foi preso quando ainda era adolescente. Depois disso, Vanessa teve que voltar para sua “outra prisão”, o convívio com a família.
Diante do contexto familiar insustentável, ela decidiu seguir os passos do namorado e vender drogas, o que conseguiu por meio de alguns amigos que já estavam nesse ramo. Foi nessa época que se tornou usuária, e o dinheiro ia praticamente todo para sustentar o vício e as baladas.
Por um ano seguiu assim até ser presa. Foi parar na Fundação Casa (Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) e ali permaneceu por um mês. “Quando saí, não tomei juízo, continuei vendendo drogas, mas muitas pessoas estavam sendo presas e isso foi me dando medo”.
A oportunidade encontrada por Vanessa para sair do tráfico veio a partir de uma amiga, garota de programa, que a levou a uma casa noturna. Foi a partir desse dia que ela considerou que essa profissão poderia ser menos perigosa que a de traficante.
Não quer dizer que tenha sido fácil. “Como usávamos muita droga, a gente se submetia. Vivíamos aquela ilusão da droga. Então, para a gente era normal”, relembra. “Hoje em dia, vejo aquilo e percebo que a gente era escrava do sexo, ele [o cafetão] ganhava muita grana em cima, e a gente não ganhava nada.”
Lidar com os clientes também era um desafio. “Tem homem que não toma banho, que a gente vê a doença a olho nu; tem cara que a gente vai colocar uma camisinha com o pênis dele sangrando. Não que a gente seja obrigada a fazer, mas às vezes acaba se submetendo.”
A realidade vivida por Vanessa é a de muitas mulheres nas periferias que entram nesse ramo. Publicação da Frente Brasileira Pela Abolição da Prostituição, de 2017, aponta que pesquisas realizadas em diversos países constatam os principais problemas de mulheres que trabalham na indústria do sexo: possuem altos índices de vício em drogas, doenças sexualmente transmissíveis, foram vítimas de estupro e assédio sexual, e correm mais risco de ter depressão e TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático), em comparação ao resto da população.
Ainda de acordo com a organização, um estudo feito em nove países em 2004, 89% das mulheres nessa situação declararam que desejavam sair da indústria do sexo, mas não vislumbram outras alternativas de sobrevivência.
Sobre os abusos, em 2009, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime apontou que, 73% das mulheres na prostituição foram estupradas mais de 5 vezes.
“Nos lugares em que eu trabalho é muito difícil encontrar uma menina que cresceu em uma família estruturada e que vive de prostituição”, relata Vanessa. “Juro para você: de 100%, pelo menos 98% foram abusadas sexualmente”.
“A gente não tem muita oportunidade. Se a gente não tiver foco, e estiver próxima da prostituição, irá para esse caminho, porque está muito mais disponível. Cada vez mais mulheres jovens estão nessa vida”, conta.
Com a pandemia, a situação ficou ainda mais perigosa.
"Tem homem que não toma banho, que a gente vê a doença a olho nu; tem cara que a gente vai colocar uma camisinha com o pênis dele sangrando. Não que a gente seja obrigada a fazer, mas às vezes acaba se submetendo"
Vanessa, trabalhadora do sexo, atende em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo
Apesar do medo da pandemia e morte de algumas amigas, vítimas do vírus, Luana, que fala no início desta reportagem, não pode parar com a rotina. Na verdade, o trabalho até aumentou.
Nos quatro primeiros meses de quarentena no ano passado, quando as restrições eram mais rígidas e o comércio ficou fechado, houve redução de clientes.
Mas depois dos meses iniciais, a coisa mudou e as fases de flexibilidade na cidade permitiram que alguns lugares reabrissem. “Várias festas, vários encontros. A rotina voltou a ser como era antes, por mais que estivesse nas fases mais graves. Os clientes vinham, a gente fechava o lugar e pronto”, lembra.
Luana comenta que, no dia a dia, os cuidados são poucos. Banho sempre tem, antes e depois dos atos sexuais, mas uso de máscaras e álcool em gel são excessões, apesar do alto número de mortalidade da pandemia no país.
Após perder a mãe quando tinha 8 anos, Luana passou a ser criada pela avó, uma senhora de 83 anos, na cidade de Suzano, na Grande São Paulo. Desde criança, precisava arrumar dinheiro para ajudar em casa, pois o valor da aposentadoria da avó não era suficiente para o sustento da família.
Vendeu alho na feira, atendeu em pequenos comércios e fez outros bicos que “são comuns para quem mora em bairro pobre", diz.
Uma amiga da avó era prostituta no centro de São Paulo. “Ela me levava, às vezes, para onde ela trabalhava. Lembro que era escuro e sempre tinha muita gente. Dormi lá várias vezes”, lembra Luana, que chamava essa mulher de “mãe”.
Com cerca de 14 anos e conhecendo o que era aquele local e o que a “mãe” fazia, começou a fazer os primeiros programas.
“Encarava com naturalidade porque aquilo era meu universo. Não achava estranho, por mais que hoje, pensando nisso, fico achando um absurdo uma criança ali”.
Hoje, 16 anos depois, Luana continua na prostituição. Não tem escolha. Em casa, sustenta mais três pessoas, sendo duas crianças. Garantir a sobrevivência da família é o que faz muitas dessas mulheres seguirem.
"A gente não tem muita oportunidade. Se a gente não tiver foco, e estiver próxima da prostituição, irá para esse caminho, porque está muito mais disponível. Cada vez mais mulheres jovens estão nessa vida"
Vanessa, trabalhadora do sexo, atende em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo
Vanessa, quando mais nova, já atuou em boates e casas noturnas em bairros considerados nobres. Entre os 17 e 25 anos, conseguiu lucrar, em uma semana, quase R$10 mil. Hoje em dia, fatura no máximo R$1.500 no mesmo período em regiões mais distantes.
Longe do centro, nas cidades de Carapicuíba e Osasco, na região metropolitana, Vanessa prefere essas localidades mais afastadas para o trabalho em casas de prostitução.
“Nos bairros mais afastados, trabalhando de dia, ganho menos e dou mais, mas prefiro. Coisa rápida. Não é aquela coisa específica, de estar representando”, explica. “Na boate, à noite, você tem que chegar, estar toda montada e fazer toda uma encenação.”
“Também tem a questão de investimento. Para você alcançar esse patamar de ir para lugares considerados mais nobres, você tem que se montar, colocar silicone, fazer tratamentos estéticos”, compara.
Além disso, ser mãe foi o começo para que ela reduzisse o ritmo, mas também não largou a profissão.
Mesmo grávida, ela continuou fazendo programas. Usou drogas durante cinco meses de gestação, mas decidiu parar quando ficou com a saúde debilitada. Descobriu, durante a gravidez, que estava com sífilis. Por conta disso, ela, o marido e o filho tiveram que fazer um tratamento.
A dor de saber que o filho podia ter adquirido alguma deformidade devido a complicações da doença fez com que ela desacelerasse a vida na prostituição. Não abandonou o ofício, mas hoje não vira as noites como antes. Também não usa mais drogas. “A noite é horrível. É muita droga, tem cliente que fala que só vai se você usar.”
O marido dela, que trabalha como vendedor no semáforo, aceitou a profissão de Vanessa, após idas e vindas do relacionamento e a chegada da filha.
“Quando disse que tinha uma coisa para falar sobre minha vida, ele disse que já sabia. Aí, ele falou assim:‘ó, gosto muito de você, eu vou ficar do jeito que você é’. Mas não converso com ele sobre a prostituição. Chego, tomo banho, tenho meu tempo com ele, como qualquer outro casal”, conta.
Porém, ela confessa que poucos sabem no que ela trabalha. “Hoje a minha família sabe, mas fui contando aos poucos. Minha mãe, quando soube, chorou. Só que na mente dela, antes puta do que traficante, presa”, argumenta.
"Várias festas, vários encontros. A rotina voltou a ser como era antes, por mais que estivesse nas fases mais graves. Os clientes vinham, a gente fechava o lugar e pronto"
Luana, trabalhadora do sexo, atende na região central da cidade de São Paulo
Em 2010, o Brasil tinha 1,5 milhão de pessoas, entre homens e mulheres, em situação de prostituição. Os dados da Fumec (Fundação Mineira de Educação e Cultura), são os únicos disponíveis sobre esse segmento, o que mostra a dificuldade de avaliar a situação da categoria e a criação de políticas públicas.
Na época, entre os motivos para a prostituição, 28% das mulheres estavam desempregadas e 55% necessitavam ganhar mais para ajudar no sustento da família.
De todos os entrevistados, 59% eram chefes de família e sustentavam sozinhos os filhos, sendo que 45% não tinham o primeiro grau de estudos e 24% não concluíram o ensino médio.
Na falta de dados mais recentes e ações de apoio, alguns grupos têm buscado meios de lutar por ações que ajudem as trabalhadoras sexuais.
Fundado em maio de 2018, o coletivo Coisa de Puta + atua no estado do Pará com o objetivo de sensibilizar mulheres trabalhadoras sexuais que vivem com o vírus HIV a se reconhecerem dentro das políticas públicas de assistência e de cuidados com essa população.
Sócia fundadora e trabalhadora sexual, María Elias Silveira, 43, diz que é importante frisar que o trabalho sexual, independente do local, foi um dos únicos que não parou na pandemia, apesar da baixa que ela percebeu no movimento dos clientes.
“Vimos de perto o que é ser vulnerável e a violação de direitos junto aos órgãos de assistência. As trabalhadoras sexuais e familiares foram pouco ouvidas e assistidas”, afirma Maria.
“Nós também nos reinventamos diante do agravo da Covid-19”, ressalta. “Colocamos itens a mais em nossas bolsas como álcool gel, máscaras e mudança de comportamento.”
Entre as dificuldades, uma das mais comuns foi a ausência de comida, que atingiu boa parte da população em situação de prostituição. Na rede do coletivo, várias mulheres morreram em decorrência da pandemia e suas consequências, inclusive por falta de atendimento médico. Até o dia 16 de junho, tinham sido 12 notificadas.
Em abril do ano passado, a Rede Global de Projetos de Trabalho Sexual (NSWP na sigla em inglês) e o UNAIDS, entidade da ONU (Organização das Nações Unidas) com a função de criar soluções e ajudar nações no apoio à pessoas soropositivas, publicaram uma declaração conjunta em que pedem que os países garantam o respeito, a proteção e o cumprimento dos direitos humanos das profissionais do sexo.
A carta reforça que a pandemia expôs as desigualdades existentes e afeta desproporcionalmente as pessoas já criminalizadas, marginalizadas e vivendo em situações financeiramente precárias.
“Como as trabalhadoras do sexo e seus clientes se auto-isolam, elas ficam desprotegidas, cada vez mais vulneráveis e incapazes de sustentar a si mesmas e suas famílias”, diz um dos trechos.
O documento aponta que organizações lideradas por profissionais do sexo relatam falta de acesso a planos nacionais de proteção social e exclusão de medidas emergenciais de proteção social.
Entre os apelos feitos, estão um apoio financeiro de emergência e a inclusão das organizações lideradas por profissionais do sexo em grupos emergenciais de planejamento de saúde pública durante a crise sanitária.
Apesar de não terem deixado de trabalhar na pandemia, Maria acrescenta que as prostitutas são, em geral, moradoras da periferia, mães, avós e esteio de casa, responsáveis pelo sustento da família. “A prostituição sempre soou como carne podre e um caminho marginalizando”, aponta.
“Mesmo com nossa força de vontade e reconhecimento do trabalho sexual como trabalho por nós, ainda somos poucas dentro de uma sociedade conservadora e hipócrita, alimentando preconceitos e nos matando socialmente. Nunca nos viram como geradoras de renda e fonte de desejos, e sim como lixo”.
"Não tinha muita expectativa. Não tinha muito pra onde ir. Não podia voltar pra casa da minha mãe. Não tive muitos sonhos e tentava sair de uma realidade"
Nicole, trabalhadora do sexo, atende em Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo.
Ex-trabalhadora do sexo, Cleone Santos, 63, está à frente do projeto Mulheres da Luz, que presta apoio a prostitutas no centro de São Paulo há 20 anos. Mãe de três filhos, ela viveu na pele o contexto da prostituição e tenta acolher mulheres que vivem as mesmas circunstâncias.
O projeto se propõe a pensar, junto às mulheres em situação de prostituição, políticas públicas para esse segmento e atende pessoas de todas as idades, com ampliação desse escopo para travestis e trans, que tem suas especificidades.
Na pandemia, também abordaram os protocolos para que possam se proteger, mas nem sempre é possível. “Quando elas estão na rua, às vezes aparece aquele cliente que quer que ela tire a máscara, tem algumas que não tiram, mas tem outras que, dependendo da necessidade, acabam fazendo isso.”
Cleone defende que as mulheres em situação de prostituição chegam a esse caminho, pois são escolhidas em um momentod e vulnerabilidade. Ela mesmo teve um começo assim.
Trabalhadora na faxina, ela sofreu as primeiras abordagens de homens no ponto de ônibus, quando voltava para casa em Diadema.
Após negar nas primeiras vezes, as dificuldades econômicas a fizeram aceitar. “Estava com um problema seríssimo de dívida para pagar, e ele me ofereceu exatamente o dinheiro que valeria o meu dia de faxina para que eu pudesse pagar a dívida”, conta.
Trabalhou no ramo por cerca de 16 anos e a mudança em sua vida aconteceu quando um grupo da Pastoral da Mulher Marginalizada, da Igreja Católica, a convidou para visitar o espaço.
“Eu era rebelde e não entendia muito bem porque as mulheres na mesma situação que eu não ocupavam aquele espaço destinado às trocas de experiências, e fui convidando minhas colegas de trabalho”, relembra.
A partir dessa ação conjunta veio a organização da primeira Marcha de Mulheres da cidade de São Paulo, no ano 2000. Após isso Cleone passou a atuar em defesa das mulheres que vivem da prostituição.
Cleone abraçou o projeto e saiu da profissão. Junto a uma freira, começou a fazer o trabalho sentada nos bancos do Parque da Luz, ensinando as mulheres a escrever, a ler, e falando de política pública.
“A procura pelo projeto aumentou nesse período de pandemia, em que a situação está difícil pelo fato das mulheres estarem economicamente mais vulneráveis, acabam escolhendo a profissão”.
Cleone argumenta que é preciso políticas públicas que devem ser pensadas por todas as mulheres em todos os contextos. “Não devemos condenar a prostituição, devemos, juntas, buscar uma solução, porque são todas mulheres. E essa solução tem que ser construída por todas e todos”, conclui.
"Mesmo com nossa força de vontade e reconhecimento do trabalho sexual como trabalho por nós, ainda somos poucas dentro de uma sociedade conservadora e hipócrita, alimentando preconceitos e nos matando socialmente. Nunca nos viram como geradoras de renda e fonte de desejos, e sim como lixo"
María Elias Silveira, sócia fundadora do coletivo Coisa de Puta+ e trabalhadora do sexo
Fonte: Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) na cartilha que pode ser lida aqui.
Os nomes foram modificados a pedido das fontes
Reportagem de Bianca Pedrina em parceria com Lucas Veloso, da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
Arte de Magno Borges