Projeto incentiva criação de roupas por meio de parceria entre marcas independentes e grandes ateliês de moda
A jornalista Mariana Oliveira acompanhou os encontros do projeto Entrelinhas a convite do Instituto C&A.
Atualizado em 11|11|2022
O projeto Entrelinhas, do Instituto C&A, promoveu encontros entre pequenas marcas independentes e ateliês de renome no mercado. A premissa dos matchs é conectar essas marcas no desenvolvimento de três looks, que poderão ser comercializadas ou não. A união desses trabalhos e diferentes realidades tem o objetivo de valorizar empreendedores locais que desenvolvem moda com propósito e geram impacto social em suas comunidades, resultando em um “intercâmbio de conhecimento” e visibilidade. O Nós, mulheres da periferia vivenciou de perto todas as trocas.
O primeiro encontro aconteceu em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo (SP). As Rendeiras da Aldeia são um grupo de mulheres que fizeram da Renda Renascença seu ofício. O estilista e fundador do Apartamento 03, Luiz Claudio, saiu de Belo Horizonte (MG) para conhecê-las e contar sua relação com a costura.
O segundo encontro aconteceu no nordeste brasileiro. O match foi entre Quilombolas de São Lourenço, produtoras de joias com o que há de mais rico na região: conchas de mariscos e a estilista Isaac Silva. Na conexão, perceberam a riqueza do trabalho artesanal a partir da transformação de objetos naturais em adornos que promovem renda extra às famílias.
De volta a São Paulo, na zona leste, o foco foi a representatividade de crianças negras. A marca baiana Dendezeiro, foi até a Patriarca conhecer e criar com a Kioo Moda, um casal afro-empreendedor que entrou no mercado da moda inspirados por seu filho, Murilo, de seis anos.
Há 15 anos, o grupo de mães “Rendeiras da Aldeia'', localizado na Aldeia Jesuítica de Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, desenvolve trabalhos com mulheres da comunidade. A princípio, o grupo foi formado para alfabetização, mas ao longo do tempo, passaram a produzir artesanatos.
A Renda Renascença é uma técnica criada no século XVI, em Veneza (Itália) e introduzida no Brasil por freiras europeias. Chegou na comunidade em 2009, através de Wilma da Silva, que aprendeu o ofício aos nove anos.
Arara com o trabalho das Rendeiras da Aldeia
©Mariana Oliveira
Em 2013, Wilma recebeu o título de Mestra da Renda Renascença, no prêmio Mestres da Cultura Popular pelo Ministério da Cultura.
Uma das participantes é Márcia Mesquita. Ela é rendeira há dois anos e começou na renda por curiosidade durante uma crise de depressão. “Ainda tenho minhas crises depressivas, mas tenho uma cura aqui. Hoje falo que sou rendeira e amo”, descreve.
Com gosto pela costura herdado da mãe, Luiz Claudio entrou no mundo da moda costurando em casa, em Belo Horizonte (MG). Começou trabalhando para algumas marcas da região, mas desejava ir além e assim, há 15 anos, nasceu Apartamento 03. “Quando eu comecei na moda não tinha uma imagem que se parecia comigo, por isso achava que não era possível”.
Em 2015, Luiz ficou conhecido como o primeiro estilista negro no São Paulo Fashion Week, a maior semana de moda da América Latina. Em 2018, Apartamento 03 foi a primeira marca a desfilar com elenco completamente negro.
Rendeiras da Aldeia e Apartamento 03
©Fernando Mendes
Costurar com paciência, delicadeza, união e força feminina foi o que marcou a relação entre as marcas. O flerte entre elas começou antes do encontro. As Rendeiras apreciavam o trabalho de Luiz, que por sua vez enxergou a sofisticação da Renda Renascença. “Eu queria muito trabalhar com elas, pensando em fazer uma peça conceitual e criar uma boa imagem, juntando meu expertise de alfaiataria e modelagem”, explica Luiz.
A união permitiu eternizar as histórias das matriarcas que, diretamente ou não, influenciaram no que cada marca é hoje.
Conhecida pelo protagonismo feminino na economia local, o quilombo de São Lourenço, em Goianinha (PE) é uma comunidade composta por mais de 500 famílias, sua origem remonta ao século XIX, com a chegada de famílias negras alforriadas na região.
Em 2009 nascem as “Quilombolas de São Lourenço'', as artesãs e marisqueiras que produzem joias com conchas de mariscos recolhidas no rio e praias do entorno. Em 2016, criaram uma pequena coleção e venderam em uma feira de artesanatos em Recife. “Vendemos quase R$1.000 e percebemos que podíamos fazer coisas bonitas”, conta Cecília Gouveia, artesã e responsável pelas “Quilombolas de São Lourenço”.
Colares de conchas expostos
©Mariana Oliveira
Desanimadas por quase dois anos, durante a pandemia se reinventaram para gerar dinheiro e repassar o ofício para as novas gerações. O grupo já conta com seis coleções de joias no mercado e um desfile no São Paulo Fashion Week.
Natural de Barreiras (BA), a estilista descobriu sua paixão pela costura ainda na infância, relembra do passado de discriminação na cidade do oeste da Bahia. “Eu era uma criança muito afeminada. Ao brincar com os meninos, eles me batiam. Quando tentava brincar de boneca com as meninas, elas não deixavam, então eu ia me refugiar nesse ateliê”.
Aos doze anos foi morar em Salvador com a mãe e a irmã. Lá se reconheceu como uma pessoa negra e queer. Começou a estudar moda aproveitando de todas as oportunidades gratuitas na região. “Fiz meu o primeiro curso de corte, costura e modelagem em uma igreja evangélica”. Realizou um curso superior de design de moda e, ao se mudar para São Paulo, formou-se em produção de vestuário.
Isaac Silva experimenta joias das Quilombolas
©Mariana Oliveira
Com a experiência universitária, resolveu buscar por "brasilidades" e mapear o trabalho autoral de mulheres no país. Em 2015 montou sua marca em uma região nobre de São Paulo, hoje conhecida por desenvolver roupas sem gênero.
A história contada através das roupas desenvolvidas na parceria foi inspirada na luta das quilombolas. O grupo demonstrou muita euforia em ter alguém de renome no mercado criando com elas e contando a história do grupo pela arte expressa pela moda. Uma reunião que para Cecília estava há “anos luz” de concretizar.
Isaac Silva mostra processos de criação que otimozam tempo
©Mariana Oliveira
Além da criação dos três looks, Isaac sentiu a necessidade de aproximar as marisqueiras a um olhar empreendedor para o negócio. “Vocês já fazem um trabalho lindo, agora falta ganhar o dinheiro”. A estilista promoveu uma espécie de mentoria durante o encontro, ajudando-as a obterem lucro. As artesãs revelaram que as vendas são prejudicadas normalmente pelo racismo e a superstição, relacionando as conchas ao “azar e mal olhado”, por isso consideram primordial o contato físico com seus clientes.
O mercado de trabalho não quis me absorver, então fiz uma base - que é a marca - para ser a minha verdade. Uma marca antirracista, que abraça todo mundo e fala sobre Brasil
Isaac Silva, estilista
Um pijama mudou a vida de Izabela Matias e Glauber Marques, e a concepção do casal sobre o que o mercado oferece para crianças negras.
Moradores da Guilhermina Esperança, zona leste de São Paulo (SP), Izabela e Glauber entraram no mercado da moda há seis anos, durante a construção do enxoval do filho Murilo. “Não encontrava nada com crianças pretinhas”, desabafa Iza.
Logo da Kioo com foto do Murilo no ateliê
©Mariana Oliveira
Kioo, que do suaíli (idioma banto) significa espelho, a proposta era que o filho se enxergasse nas estampas. Antes da estreia no mercado, o casal fez um “teste drive” na edição de 2019 da Feira Preta, o maior evento de cultura e empreendedorismo negro da América Latina. "A gente chegou lá com roupa infantil, modelagem contemporânea e vendemos tudo”, revela Glauber.
Nas etiquetas há um conto africano com curadoria feita pelo próprio casal. “Nossa ideia é levar esse conhecimento não só para as crianças pretas, mas para as brancas também. A história que nossa roupa conta é um tipo de cultura que ela terá acesso”, explica Izabela. O protagonismo também está presente na escolha dos modelos para as fotos do site e redes sociais, que além do Murilo, conta com a participação de familiares.
Diretamente de Salvador, na Bahia, e com apenas três anos de existência, a Dendezeiro desenvolve peças com materiais de baixo impacto ambiental e proposta de design sem gênero, focada em desconstruir valores racistas e sexistas.
A dupla de criadores, o casal Pedro Batalha e Hisan Silva, percebeu que o mercado de moda não contemplava identidades próximas às deles. “Não conseguimos identificar nossos corpos, pessoas negras ou indígenas no spotlight da moda. Entendemos desde cedo que do P ao XG, há uma infinidade de corpos. Então pensamos em criar uma modelagem com técnicas de amarração para abraçar mais corpos”, explica Pedro.
Para o futuro, a expectativa é globalizar a marca. "Enxergamos a moda como ativismo político. Dentro desse contexto, queremos que as pessoas saibam, onde quer que estejam, que é uma marca baiana”, conta Pedro.
O que pareciam duas marcas opostas, culminaram em um match focando em estilo, abrangência de corpos, cortes sem gênero e design moderno e urbano.
Kioo Moda e Dendezeiro durante processo criativo
©Fernado Mendes
Inspirados por Murilo, a combinação de referências entre três gerações são combinadas pela responsabilidade de levar representatividade para as crianças mantendo o espírito infantil. Um equilíbrio entre o fashion e a liberdade do brincar. “É importante proteger, dar autonomia e liberdade para as crianças pretas, não brancas e indígenas por meio das escolhas que poderão fazer sobre o que vestir”, diz Pedro. Além da chance de abrir portas para outras marcas menores. “São pouquíssimas marcas dentro da moda infantil que tem preocupação com a cultura preta, e em acolher essas crianças pretas”, reflete Izabela.
Enxergamos a moda como ativismo político. Dentro desse contexto, queremos que as pessoas saibam, onde quer que estejam, que é uma marca baiana
Pedro Batalha, fundador da Dendezeiro