Como o ambiente afeta o desenvolvimento infantil e o direito do brincar na comunidade de Córrego do Sargento, no Recife
Reportagem: Martihene Oliveira, Ana Roberta Amorim e Eduarda Nunes
Esta reportagem integra o edital para a Bolsa de reportagem “O papel do jornalismo antirracista na proteção de crianças negras e periféricas, ação do Nós, mulheres da periferia, em parceria com Marco Zero Conteúdo e Alma Preta Jornalismo - apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
Atualizado em 12|06|2024
Nos últimos cinco anos, Pernambuco ficou em primeiro lugar no número de buscas por deslizamentos de barreira, sendo Recife a cidade mais preocupada. Abaixo dele, Rio de Janeiro e São Paulo.
– Ô tiaaaa… Tira minha foto!
Falou Andrezinho, sete anos, irmão de Arielle, de dois, e de Ayla que ainda está na barriga. Andrezinho é o menino mais serelepe que o Coletivo Sargento Perifa já conheceu. Vizinho à sede do veículo de jornalismo independente da comunidade do Córrego do Sargento, em Linha do Tiro, zona norte do Recife (PE), ele está presente em todos os 20 projetos oferecidos à comunidade. Quando ele não está, há sua mãe, Raquel, ou sua avó, Neide.
Passeando com ele de Uber, enquanto nos dirigíamos para o local onde seria a gravação do podcast desta reportagem, a gente foi observando a rua. Saímos de Linha do Tiro, bairro com quase 15 mil habitantes, e cruzamos Casa Amarela, depois Casa Forte, Torre, Madalena, Caxangá, até chegarmos no Cordeiro. Do subúrbio para os bairros chiques, muita conversa rolou:
— Tu gosta do Córrego, André?
— Gosto.
— O que tu mais gosta de fazer lá?
— Brincar. Brinco de um bocado de coisa. De pega se esconder, pega congelou, jogar bola, depois eu saio com meus amigos.
— Tua mãe deixa tu brincar na rua, né?
—Deixa. Ela só diz pra eu ter cuidado pra não ser atropelado pela moto.
Comunidade do Córrego do Sargento, Linha do Tiro
O Córrego do Sargento é uma comunidade com mais de 250 famílias, cheia de becos estreitos, canais de esgoto e gente preta: no bairro, 70% da população é negra. Há boatos de que já foi um quilombo. Eu não sei ao certo se essa história é verdade, mas não duvido muito não. Que o bairro já foi o engenho de um tal de Major Antunes, isso eu já sei, mas sempre tive curiosidade sobre o percurso e nome da Subida da Medalha Milagrosa, por exemplo. Uma outra questão que me pega é a quantidade de morros e escadarias. Tem escada pra tudo quanto é gosto, que levam a lugares muito altos.
Nas partes baixas de Linha do Tiro, há constantes alagamentos. Quem mora nos altos corre o risco de ver suas casas despencarem. Durante a tempestade que assolou o Recife e sua região metropolitana em 2022, a última morte foi em nosso bairro. A estreita rua Professor José Amarino dos Reis, que corta pelo Córrego do Tiro, foi interditada, permitindo apenas a passagem da Defesa Civil e da imprensa. Nessa ocasião, Lucas, um menino negro de 13 anos, foi assassinado pelo Estado. A barreira que segurava a casa onde morava sua família cedeu, levando-os junto. Dona Neide, mãe de Lucas, conseguiu salvar o filho mais novo. De lá pra cá, a prefeitura pavimentou o local. Do outro lado, lonas abafam o medo e o descaso até se derreterem novamente e em meio ao mato que cresce no barro, serem cobertas de novo. É assim desde que o bairro de Linha do Tiro é feito por gente, e os moradores são uma mostra das mais de 1 milhão de pessoas de Pernambuco que vivem em áreas vulneráveis em relação às mudanças climáticas, segundo um levantamento realizado pela Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento, vinculada ao Ministério da Casa Civil em relação aos anos de 2021 e 2022.
Dias após a morte de Lucas, a família que mora na barreira em frente à tragédia estampou um banner amarelo com um pedido de socorro: “Prefeitura do Recife, será que também vamos ter que morrer pra que a barreira daqui seja feita?” Pouco mais de 1 ano, 8 famílias recriam um cartaz maior. Por coincidência ou não, o amarelo e vermelho, cores do PSB, partido da gestão municipal atual, estampam os gritos silenciados pelo povo.
O racismo ambiental é isso: um descaso coberto com lona, onde todo mundo vê mas não vê, e a gente sabe que ele só mata quem geme. No ano da tragédia, a Prefeitura do Recife havia executado em 9 anos apenas 17% do que era previsto para a prevenção de danos nas chuvas.
Coisa que me faz refletir sobre o tempo em que a gente não é visto. Desde 1970, há registros de mortes por deslizamentos narrados pelos moradores. Desde 1891 o Recife tem prefeito, desde 1887 Linha do Tiro já existia. O Córrego do Sargento não está nos relatos oficiais da história. Por muitos anos, moradores de comunidades vizinhas chamavam a comunidade de “Córrego do Cocô” por causa da quantidade de fezes e de esgoto a céu aberto, com meninos magrinhos e descalços que andavam carregando uma barriga enorme.
Dizem que por lá já houve uma fábrica de sapatos e também um campo gigante, com o pé de manga que não se podia comer porque Dona Carmelita, dona do terreiro que ficava ao lado, dizia que a manga era do santo. Hoje, a comunidade não tem nada. Apenas uma igreja evangélica e a sede do Coletivo Sargento Perifa. As mais de 300 crianças do território acessam parques, escolas e creches em outras localidades e isso também acontece com o posto de saúde.
A ausência de um espaço para as crianças de hoje brincarem é a saudade das crianças de ontem e de antes de ontem também. O que Andrezinho e sua irmã não desfrutam no presente, sua avó desfrutou no passado. Para ela, o único ponto de respiro acabou e o lamento é o mesmo do Seu Djalma, que também já jogou bola no campo. Sumiu o campo, a bola, a mãe de santo, o pé de manga e as gargalhadas.
Não por acaso, o campo que falta para o idoso de 70 anos, o homem de 38 e a criança de 7 deu espaço a perguntas sem resposta e se replicam em milhares de brasileiros, sobretudo em época de chuvas, quando acionam as plataformas de busca e procuram por deslizamentos de barreiras.
O que hoje há no Córrego do Sargento
©Lucas Delmas
Primeira infância e o cenário das crianças periféricas
É chamada de primeira infância a fase entre 0 e 6 anos da criança, o período onde tudo começa. Segundo a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, “é a janela em que experiências, descobertas e afetos são levados para o resto da vida”. Por outro lado, o racismo ambiental pode impedir o desenvolvimento saudável, ele refere-se à discriminação sistêmica imposta pelo Estado aos territórios periféricos, privando seus habitantes de acesso a serviços básicos essenciais, como água potável, saneamento, eletricidade e habitação adequada, bem como ao direito a um ambiente saudável. Essas comunidades muitas vezes são alvo de decisões deliberadas, como a localização de lixões, e, como resultado, enfrentam uma série de adversidades, incluindo altas taxas de violência urbana que impactam de maneira desproporcional pessoas negras e residentes dessas áreas marginalizadas, que são frequentemente colocadas em situações de risco extremo, seja por ações diretas da humanidade ou por desastres ambientais induzidos pelo homem.
Se tratando da primeira infância, o Observatório da Criança e do Adolescente apontou que no ano de 2023, 46,5% das crianças dessa faixa etária no Brasil viviam em situação de baixa renda; em Pernambuco, que possui mais de 1 milhão de pessoas em situação de vulnerabilidade, o percentual foi de 55%.
Segundo o Censo do IBGE, em relação ao ano de 2022, pessoas pretas, pardas e indígenas foram as mais atingidas pelas privações de recursos e direitos no Brasil, entendendo que quanto menor a renda maior a vulnerabilidade, sobretudo em relação aos efeitos das mudanças climáticas. Os dados do Observatório da Criança e do Adolescente também apontaram que para cada 100 mil habitantes do país, 4,7 crianças entre 0 e 4 anos de idade foram a óbito relacionados a fontes de água, saneamento inadequados e falta de higiene, segundo grupos etários e limites geográficos. Pernambuco, de novo, ocupou uma taxa maior que a nacional, com 5,7 crianças mortas por direitos básicos negados antes de chegarem aos 5 anos de idade.
Esses e outros problemas acontecem em territórios periféricos, quilombolas, ribeirinhos e indígenas. No Córrego do Sargento, por exemplo, um total de 300 crianças entre 0 e 11 anos de idade estão em território vulnerável. Foi por causa disso que eu, Martihene Oliveira, jornalista de favela, como gosto de me apresentar, diante de alguns deslizamentos de barro e autoestima já presenciados na comunidade, dividi a construção dessa reportagem com as jornalistas Ana Roberta Amorim e Eduarda Nunes.
O Sargento Perifa noticiou os relatos das comunidades vizinhas. Na Vila Vintém, comunidade que fica às margens do Rio Beberibe, localizada também na Linha do Tiro, a água passou do pescoço de muita gente. Na comunidade do Rio Morno, onde o mesmo rio transbordou, mais de 250 famílias, entre elas gestantes e crianças, ocuparam a Escola Municipal Paulo VI depois de uma resistência nada igual à nossa, apresentada pela então recém chegada diretora, que não autorizava a abertura dos portões com medo de sofrer alguma rebordosa. No bairro de Santo Amaro, localizado na área central do Recife, a comunidade do Canal da Vovozinha estava em desespero: ao menor sinal de chuva, ele transborda, alcança o piso de madeira das palafitas que apodrecem aos poucos e as pessoas correm o risco dentro da água podre a qualquer momento, caso ele ceda. O mesmo problema era encontrado na Favela do Condor, que fica entre Recife e Olinda, onde Maria, mãe solo, junto a outras mulheres organizou os moradores para se salvarem da grande cheia que arrastou seus animais de estimação, casas e enxovais de bebê. A estratégia dos moradores dessa comunidade foi a de colocar uma escada por baixo da Ponte do Cimento, única saída do local, e subir primeiro as crianças, idosos e gestantes, depois as mulheres e os homens. A comunidade da Av.Sul, localizada no bairro de São José, manteve os moradores e suas casas restritos à linha do trem, até que a água baixasse.
Seu Djalma e a lembrança do desastre na comunidade
Seu Djalma, de 70 anos, não tem tempo para entender o que é racismo. Para ele, é uma coisa ruim. Com metade da idade dele, eu sei que há muitas coisas ruins no mundo, mas hoje entendo que o racismo é a pior delas.Talvez seu Djalma tente colocar todas as dores em um único recipiente e deixá-lo no cantinho de seu quintal, junto com a caixa de ferramentas e todas as coisas que aparecem na sua rotina, mas que não precisam ser usadas agora porque talvez só sejam úteis depois.
Ele testemunhou o primeiro deslizamento de barreira do Córrego do Sargento na década de 1970, que matou 8 pessoas. Em 2010, outra tragédia climática ocorreu e o aposentado foi quem liderou os moradores na busca pelos corpos de Laodicéia, seu companheiro e suas três filhas de 2, 9 e 12 anos, à noite, no meio do barro e sem eletricidade.
Cinco lençóis cobriram as vítimas do descaso e do racismo. Eu sempre lembro das meninas magrinhas que corriam por aqui. A dúvida se era só apenas elas das cinco filhas de Laodicéia que estavam no meio do barro. O silêncio dos moradores para ouvir os gritos, as lanternas ligadas, o choro, o barro, a chuva, a lama, o amontoado de gente emudecida, a tristeza. Carol, filha mais velha que estava com 13 anos e grávida de seu segundo filho, ouviu o barulho da morte de sua casa.
Em breve vou comprar um carro para poder socorrer o povo a tempo. Já socorri muita gente, vítima de bala e de tudo quanto é coisa. Às vezes é a maior agonia pra fazer isso porque não tem carro. Até no carro de mão a gente já socorreu gente aqui
O direito ao brincar das crianças negras deve ser respeitado
©Lucas Delmas
A primeira infância dos netos de Seu Djalma, Andrezinho, Arielle e Ayla que ainda está para nascer, passa longe de ser a ideal. Segundo a jornalista e pesquisadora Mayara Penina, “uma criança tem direito a brincar quando ela consegue brincar livremente sem barreiras e obstáculos. Acho que tem alguns obstáculos que as crianças brasileiras enfrentam nas grandes cidades, por exemplo, muitas crianças têm um problema da violência urbana, então, na maioria das vezes os espaços não são seguros para que as crianças saiam de casa e brinquem livremente ou quando sai tem uma questão de zeladoria, de conservação dos equipamentos públicos em algumas áreas de algumas cidades. E aí muitas vezes, nem tem uma pracinha, uma área verde, espaços naturais que as crianças possam brincar”.
A morte de Lucas, em 2022, ecoa as tragédias enfrentadas por famílias nos anos 70, no Córrego do Sargento, e em 2010, no mesmo território. A pergunta persistente é: por que somente em 2023, quase 60 anos depois, a barreira de Rosa, a mesma que causou fatalidades nos anos 70, matando 8 pessoas e destruindo diversas casas, está sendo pavimentada?
— Eu queria morar aqui, tia.
— Por que? Aqui tem prédios, tu gosta de rua. Nem vai poder brincar na rua.
— Mas eu vou ter uma sala massa e poder brincar bem muito na sala porque ela vai ser muito grandeeeee.
Jozilene e seus filhos
©Lucas Delmas
A família desta reportagem mora no início da rua Frei Jorge, localizada comunidade do Córrego do Sargento, zona norte do Recife, capital de Pernambuco. A casa se divide em duas partes, conectadas por escada de pedras e musgos escorregadia durante as chuvas. No início da escada, fica a sala de estar e no final da subida, um espaço aberto, onde aconteceu a entrevista. Ao lado, há um galpão, com materiais de consertos de roupas e sapatos, área onde o marido de Jozilene trabalha.
Jozilene Sobral, uma mulher negra, de baixa estatura vestida com uma blusa azul florida e um short preto, me recebeu no espaço aberto ao final da escada. Falante e sorridente, ela estava sempre rodeada pelos filhos. Moisés, o mais novo ainda na primeira infância, subia e descia do seu colo enquanto ela me contava sua história, que começou no Maranhão e recomeçou em Pernambuco, onde fugiu de um ex-marido abusivo.
O cenário que apresento aqui é o início de uma história onde o racismo – mais especificamente o racismo ambiental – destaca-se em dois aspectos principais: a falta de segurança pela exposição de uma mãe e de seus filhos diante das ameaças constantes do marido, pai e padrasto deles; e como essa situação que torna mais vulnerável a vida de uma mulher negra na busca pela paz tão citada durante a entrevista não traz o sossego em um ambiente que preserve de forma plena a sua existência no mundo.
A partir de seu relato, consigo entender como se dá a sua relação com os seus filhos, da criação no dia a dia à brincadeira esporádica, quando ela consegue ter um contato maior com as crianças para além do que a rotina de trabalhadora doméstica, dona de casa e mãe solo permite.
Aos 39 anos e mãe de seis filhos, Jozilene valoriza sua presença constante na vida dos pequenos, algo que ela mesma não teve: contou com a convivência de adultos responsáveis quando ainda não conseguia se defender sozinha.
– Eu fui adotada. Minha mãe me pegou com dois anos, mas era uma pessoa muito doente, tinha pneumonia, fumava muito. Desde os 10 anos, tava levando ela pro hospital. Não queria ficar só.
Anos depois, ela não estava sozinha. Bianca, 12 anos, a mais velha das filhas que moram com Jozilene, carregava no colo Vitoria (8), a atleta da família, praticante de Jiu Jitsu; Davi (9) estava sempre ao redor; Moisés (4) se revezava entre o colo da mãe, o chão do espaço aberto e área do galpão, onde estavam os seus brinquedos.
Quando pergunto a ela sobre como essa (falta de) infância afetou a sua maneira de criar os seus filhos e ela me diz que algumas pessoas comentam que ela “prende” as crianças.
– Eu não crio os meus filhos presos. Mas foi o que eu tive.
Essa declaração me lembrou muito outra frase que ouvi da psicóloga Ana Amélia Prevatto, especialista entrevistada para esta reportagem, sobre a importância da presença do adulto no ato da brincadeira. “É importante a criança brincar sozinha, mas isso não quer dizer brincar abandonada”.
Jozilene não teve nenhuma das duas opções. Nas palavras dela,
– Uma coisa que eu não tive foi infância.
A pedagoga, doutora em educação, com ênfase em Educação Infantil, com foco em estudos de relações étnico-raciais e antirracismo, Mighian Danae define o ato de brincar como uma
“ação social organizada por crianças e adultos com o fim de promover a diversão, a brincadeira, a ludicidade, estimular a socialização”, diz. “O resultado do brincar está sempre relacionado a uma satisfação, um prazer e uma relação com o mundo, com as outras pessoas, os objetos e os eventos que não tenha uma obrigação com o resultado. Mas guarda o resultado na sua própria ação. Eu brinco porque, ao brincar, eu existo no mundo”, resume.
Jozilene Sobral
A casa ideal
Moisés, seus brinquedos e universos de brincadeiras
O filho mais novo de Jozilene, Moisés, tem universos inteiros de brincadeiras no pequeno espaço do galpão onde o pai trabalha. Após a entrevista com sua mãe, eu encontro o menino abrindo um saco plástico e tirando cuidadosamente de dentro cada um dos seus bonecos e carrinhos para, então, começar a criar diferentes histórias e situações para cada um deles.
O galpão é um pouco maior do que a casa onde a família mora. No local, apenas uma mesa com alguns instrumentos, como uma máquina de costura, ocupa o ambiente.
Mas Moisés, de quatro anos, só precisa de um pequeno espaço no chão para montar suas narrativas. Ele me mostra o Hulk e o Homem de Pedra (O Coisa do filme “Quarteto Fantástico”) e os carros de diferentes personagens que se movimentam em manobras emocionantes – ele gosta de esportes radicais. Me conta sobre as relações de cada boneco, que vão de inimigos que se enfrentam diretamente a amigos improváveis por virem de histórias completamente diferentes, mas que para a criança faz todo o sentido, claro.
A psicóloga Ana Amélia comenta um pouco o fenômeno que são crianças se divertindo em seus próprios mundos. Para a especialista, “o nascimento é o ponto de partida para virarmos humanos e sujeitos”. A partir disso, “quando a criança não está brincando, ela está sempre no mundo e interagindo”.
Isso significa, portanto, que a participação ativa dos adultos responsáveis pela criança é essencial nesse processo.
Mas e quando a pessoa adulta é uma mãe sobrecarregada, que trabalha fora para sustentar a família e dar possibilidades aos filhos que ela mesma não teve acesso quando tinha a idade deles?
Pergunto a Jozilene se ela tem tempo de brincar com as suas crianças. Ela dá um suspiro.
– Eu brinco com eles o máximo que eu posso. Eles têm os brinquedos deles, mas eles são mais de escrever e desenhar. Eu queria brincar mais com eles, mostrar minha presença. Porque eu sou mãe e pai.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2023 identificam o perfil da trabalhadora doméstica (ocupação exercida por 91,1% por mulheres), no Brasil, como sendo uma mulher negra, com em média 49 anos. Um perfil muito próximo ao de Jozilene – que, coincidentemente ou não, também é trabalhadora doméstica.
Mas, para além do trabalho doméstico, seja com carteira assinada ou não, é preciso olhar com muita atenção para a atividade que envolve o acúmulo de tarefas, todas as pessoas da família (em especial, as mais vulneráveis, como crianças e idosos) e que, em tese, nunca tem um horário final de expediente: o trabalho de cuidado.
Essencialmente realizado por mulheres – em números, isso significa 75% de todas as pessoas do mundo inteiro (dados do Global Plataform for the Right to the City, 2023) – esse trabalho é invisibilizado socialmente ao mesmo tempo em que está em todos os momentos da rotina das famílias.
Na família de Jozilene, assim como na de inúmeras outras no Córrego do Sargento, no Recife, Pernambuco ou em outras tantas partes do Brasil, o racismo se mostra por diferentes ângulos e com variações de nomenclaturas que, no fim das contas, se referem a um único sistema de opressão.
O racismo ambiental, portanto, não se mostra apenas na falta de acesso ao básico ou na negação de um ambiente digno de moradia, mas também no medo de uma mãe sobre o entorno onde a família vive e os filhos brincam.
Quando Jozilene me conta da preocupação constante que sente ao estar fora de casa, trabalhando para limpar e cuidar das casas de outras pessoas enquanto os seus filhos estão na escola ou com o marido dela no lar onde a família vive, ela fala também, mesmo sem saber, do peso que o trabalho do cuidado traz para a mulher, sobretudo para a mulher negra. Porque o cuidar não se refere (ou não deveria se referir) somente às tarefas de manutenção da vida com boa qualidade: alimentar, colocar para dormir, vestir a roupa etc. Ele também fala sobre a atenção constante ao bem-estar do outro.
Ana Amélia Prevatto afirma que “o adulto deve investir nas relações de cuidar” das crianças com o objetivo não somente de mantê-la viva e saudável, mas feliz – o que se relaciona diretamente com o estímulo e as condições para o brincar necessárias para o desenvolvimento da criança.
No entanto, esse direito não tem a ver somente com a disponibilidade de tempo e disposição da pessoa responsável pela criança – na maioria das vezes a mãe. A casa onde a família mora precisa de espaço que permita isso.
Como dito no início do texto, a casa de Jozilene se divide em duas partes, a residencial de fato e outra como um espaço para o trabalho. O local onde a família convive diariamente tem apenas dois quartos, onde em um dorme o casal e no outro os quatro filhos.
O advogado do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), Luís Emmanuel, explica que o sistema de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Organização das Nações Unidas (ONU) pensam no direito à cidade interligado aos direitos à propriedade e à moradia. Ou seja, a presença e a luta por uma cidade digna e acessível para todas as populações passa também pelo entendimento de que esse direito começa no espaço doméstico.
Ele também salienta que a luta pelo direito à cidade, ainda que tenha a regularização fundiária como porta de entrada do direito à moradia adequada, a discussão vai além e chega na estrutura arquitetônica da casa, que visa, sobretudo, o bem-estar das pessoas que ali moram. Ou seja, é “a construção arquitetonicamente adequada, acessível para quem precisa de acessibilidade; em termos de temperatura, que seja agradável”, frisa o advogado.
Quando pensamos nos momentos de brincadeira, alguns requisitos também são importantes. A pedagoga Mighian Danae comenta que “espaços pensados, organizados para realizar brincadeiras também as qualificam. Mas não significa que espaços que não tenham essa qualificação ou não sejam pensados para estimular brincadeiras não possam ser transformados em espaços de brincar”, pontua. Ela acrescenta que o local interfere na brincadeira, mas não impede que a criança aja sobre ele porque “a gente entende que as crianças vão brincar sempre, seja num espaço grande ou pequeno. O que a gente defende na educação é que esses espaços sejam intencionalmente pensados para promover a brincadeira – não necessariamente a aprendizagem”, frisa.
Essa explicação faz todo o sentido quando observo Moisés: não importa o lugar nem mesmo o que ele tem a disposição para realizar as suas brincadeiras, o que interessa é como ele interage e, mais ainda, como as pessoas ao redor interagem com ele e participam das histórias que ele cria com os brinquedos.
É por isso que, uma vez me vendo de cócoras para conversar com Moisés e tentar extrair algumas palavras, mesmo que pronunciadas pela metade e sem muitas conexões umas com as outras, natural da idade, ele me captura de tal forma que me vejo minutos infinitos ao seu lado entendendo e contribuindo com as narrativas que ele constrói a cada vez que retira um boneco da sacolinha cheia.
Brincar de pipa: a infância na periferia do Recife
Até chegar a ser jornalista, fui muitas coisas. Dentre elas, fui uma criança que cresceu numa periferia horizontal na zona oeste do Recife. No bairro da Mangueira, tive a oportunidade de brincar bastante, tanto dentro quanto fora de casa, mas mainha sempre “regulou” muito tanto a mim eu quanto meu irmão para que não passássemos tanto tempo fora de casa – mesmo que fosse brincando com as outras crianças vizinhas. Como “a infância é um chão que a gente pisa a vida inteira”, como a escritora Lya Luft escreveu, não poder ter acesso pleno ao ambiente externo de casa impacta a infância de toda criança periférica, mesmo que a razão por trás disso seja infelizmente plausível. Além do ambiente urbano ser desfavorável para as infâncias, no ambiente da periferia todo mundo é alvo – independente de idade, sexo e religião.
Ao contrário do que muita gente que conheceu o termo racismo ambiental recentemente, esse não é um problema que surge com as emergências climáticas e diz mais do que “somente” o meio ambiente natural. Cunhado pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr, em 1980, no contexto do Movimento do Direitos Civis dos Negros nos Estados Unidos, essa expressão surgiu durante uma discussão sobre um projeto que pretendia transformar a cidade de Warren, com maioria negra, em depósito de resíduos tóxicos. Refere-se à maior vulnerabilidade social e ambiental de comunidades de etnias e populações marginalizadas.
O Córrego do Sargento
Carolina Andrade da Costa, ou Carol, tem 29 anos, é mãe de quatro filhos e mora no Córrego do Sargento, comunidade na zona norte do Recife (PE). Se viva, Elisabete Nunes, Bete, minha mãe, teria hoje 55 anos, sendo mãe de dois e cria da Mustardinha – também subúrbio, mas na zona oeste da cidade. Apesar de viverem em tempos e locais diferentes, ambas nutrem uma preocupação em comum: o receio de ter os filhos brincando na rua. Atualmente, há uma enorme preocupação com o uso excessivo de telas por crianças, sobretudo na primeira infância. No entanto, nas favelas e periferias, existe um medo anterior relacionado à segurança das crianças nas ruas.
Mães periféricas terem medo das suas crianças brincarem na rua é completamente compreensível, visto que gente pobre e preta não precisa de muito para se tornar alvo de violências ou mesmo ser achada por uma bala perdida. Nesse mesmo Recife, em 2016, no bairro do Ibura (zona sul), Mário Andrade, um jovem de 14 anos, esbarrou na moto de um policial militar e foi assassinado a tiros. Sua mãe, Joelma Andrade, conseguiu que o assassino fosse responsabilizado em 2018, mas a maior parte das mães pretas enlutadas não conseguem justiça para seus filhos.
Carol e seus filhos
©Eduarda Nunes
“Era tão bom antigamente. Eu brincava tanto aí embaixo. Antigamente o canal era tudo aberto, a gente começava a pular de um lado pro outro, junto com as minhas irmãs que eu tinha, né? antigamente, que deus levou junto com a minha mãe. Era bom, hoje em dia que não tá prestando mais. Por isso que às vezes eu gosto de trancar eles dentro de casa. Às vezes os bicho tá tudo por aqui, metendo bala e eu vou atrás deles e aí fico doida atrás dele e ele ainda fica achando ruim que eu chamo ele na rua. Por isso que às vezes eu não deixo ele sair, eu deixo ele trancado. Porque eu to dentro de casa, ele na rua, o que acontecer com ele eu vou pra cadeia”
Carolina Costa
Esse papo de “na minha época era melhor” é muito interessante. Talvez nem fosse exatamente bom, mas há uma sensação nostálgica. O Córrego do Sargento que Carol viveu quando era criança, por exemplo, era um local ainda mais esquecido pelo poder público. A falta de saneamento adequado e o difícil acesso a serviços essenciais como saúde, educação e transporte são vivências de um racismo ambiental que é anterior às emergências climáticas. Sendo área de morro, em uma “chuvada” mais forte que aconteceu em 2010, Carol perdeu a mãe, o padrasto e três irmãs mais novas num deslizamento de barreira. Hoje mora com o companheiro e os dois filhos mais novos a menos de 1 km do local do deslizamento – que foi o segundo mais impactante no bairro. O primeiro data da década de 70.
O ambiente onde a gente cresce é crucial para nosso desenvolvimento. Seja pelas marcas positivas ou negativas. Em 2021, uma pesquisa do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI) destacou como o bairro influencia no desenvolvimento integral infantil, ou seja, no desenvolvimento físico, psicológico, intelectual, social, cognitivo e na autonomia. O documento trouxe importantes análises socioeconômicas e também contribuições para que as crianças possam ter suas infâncias preservadas e vividas longe das mais diversas formas de violência.
Quanto melhores as condições de moradias, mais saudável o desenvolvimento integral infantil. No entanto, em 2019, 13,6 milhões de pessoas viviam em favelas e periferias no Brasil, segundo o IBGE. Uma pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal revelou que a maioria das famílias com crianças de até 6 anos no Cadastro Único (CadÚnico) estão no Nordeste – uma região que está sobre representada nesse quesito.
Entre essas famílias, três a cada quatro são chefiadas por mães solo, e 81% das crianças vivem em situação de pobreza. Sendo as cidades ambientes pouco propícios para as infâncias, as famílias que estão em situação de vulnerabilidade extrema, têm muito menos possibilidades de oferecer uma primeira infância com estímulos positivos para o desenvolvimento integral saudável de suas crianças.
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Através do CadÚnico é possível entender o perfil das famílias de baixa renda no país e elaborar políticas públicas que viabilizem uma melhora econômica e social para elas através de programas como o Bolsa Família, a Prestação de Benefício Continuado (BPC) e outros. Esses benefícios possibilitam uma sobrevida para essas famílias e têm uma função importante na amortização do impacto do racismo ambiental e institucional que restringe direitos e negligencia o cuidado dessas pessoas. Não só delas, como do espaço onde elas vivem.
Nessas famílias, esses programas são parte essencial da renda, assim como é na família de Carol. Hoje ela vive com os dois filhos mais novos numa casa com o companheiro – que não é o pai das crianças. Esse foi assassinado e até hoje eles não sabem sequer o paradeiro do corpo dele.
Carol, David (10) e Isabele (13) fazem parte de um Brasil que tem seu acesso aos direitos mais básicos, fundamentais e humanos muito dificultados. Direito à saúde básica, à educação de qualidade, à alimentação plena e também o direito de ser criança e adolescente. Nessa série de reportagem o nosso foco é entender como o Direito de Brincar, assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é viabilizado para crianças negras e periféricas.
Muito antes dos perigos das telas, mães periféricas se preocupavam com a segurança dos filhos. Afinal, não é de hoje que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado nesse país. No Córrego do Sargento, o que deveria trazer a sensação de segurança, faz o contrário. Carol me contou como fica aflita quando a polícia chega ao território pelas escadarias com o intuito de intimidação do tráfico da área e seus filhos estão na rua. E, embora o tráfico também seja uma questão na comunidade, a Polícia também tira a paz dos moradores.
“Antigamente a gente brincava até tarde na rua, a gente podia tá conversando até tarde nas portas. [Hoje] A gente tá no portão aqui, os ‘homem’ desce [perguntam]: -Tá fazendo o quê aí? -Eu moro aqui. -Entra. Ás vezes a pessoa leva um tapa na cara de graça, sentada.”
Carolina Costa
Espaço ao ar livre pra brincar pelo Córrego do Sargento
A Pracinha do Sargento
©Lucas Delmas
Brincar na rua, atualmente, parece até vintage. No geral, a cultura de brincar de pega-pegou, amarelinha, pular corda, jogar pião ou bola de gude na rua ficou bem esquecida. Na minha época, uma das brincadeiras mais desafiadoras era pular elástico, que nada mais era do que pouco mais de 1,20m de elástico que se coloca nas roupas, amarrado ponta a ponta e sendo segurado por duas pessoas enquanto outras iam pulando com o cuidado de não tocar nele. No nível um, cada uma segurava pelo tornozelo, no mais difícil, na ponta do dedo com os braços esticados pra cima. Hoje, chamar uma criança de 10 anos para essa brincadeira pode parecer antiquado.
Muito da cultura de brincar na rua que foi desestimulada se deve à sofisticação do racismo ambiental e institucional, que transformou o espaço público ao redor de nossas casas em um local perigoso ou, ao menos, desconfiado. No Córrego do Sargento, hoje, o que “sobrou” pras crianças é o espaço de uma praça que foi inaugurada recentemente, em 2023, que fica na entrada da comunidade. Morando longe ou perto, é lá que as crianças se encontram para brincar enquanto podem. Sendo interrompidas ou pelas mães chamando pra casa ou pela polícia que “visita” o Córrego semanalmente sem muita pretensão de respeitar a dignidade dos moradores da área.
“A gente tá brincando na rua, aí quando vê, do nada, uma correria”, conta Isabele, enquanto sua mãe, Carol, reforça mais uma vez o risco de levarem uma bala perdida. Eles, hoje, moram nas escadarias há mais de 100 degraus acima e uns 400 metros de onde fica a Praça do Córrego. Antes, brincavam numa barreira que hoje em dia dá ainda menos segurança para eles empinarem pipa e ficarem inventando brincadeira por lá.
Muito antes dessa barreira em questão, as crianças tinham por perto também uma quadra em um campo de várzea próximo dessa praça. E mesmo sem ter a melhor estrutura para um ambiente de prática de esportes, a quadra acolhia as crianças do Córrego do Sargento e outras periferias próximas nas décadas de 70 a 90. Crianças de todas as idades, que viviam a primeira infância ali também. Agora, o ambiente não é mais o mesmo e há uma obra interminável, que os moradores nem sabem ao certo o que será, mas que, pelo menos agora, é mais um ponto de uso e comercialização de drogas do que um espaço de lazer. A falta de espaços seguros para brincar é um problema sério nas periferias do Recife.
O artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente define o “brincar, praticar esportes e se divertir” enquanto um dos aspectos do direito à liberdade. Pedagoga e pesquisadora da Sociologia da Infância, Míghian Danae afirma que é no brincar que uma criança se compreende em casa, na família, no ambiente onde está inserida. E é uma atividade que não precisa ter muita pretensão: o principal objetivo é o entretenimento e, além disso, o direito de brincar é uma das garantias do Marco Legal da Primeira Infância aprovado em 2016.
A pesquisa do NCPI sobre o bairro e o desenvolvimento integral das crianças cita que as grandes cidades, no geral, são ambientes que são menos favoráveis para a primeira infância e que nas favelas as crianças contam com adversidades negativas a mais como a dificuldade no acesso ao saneamento e a água potável. Mesmo Recife tendo um Marco Legal de Primeira Infância próprio aprovado desde 2018 e um Plano Decenal de Políticas para a Primeira Infância aprovado desde 2020, as crianças de 0 a 6 anos que vivem no Córrego do Sargento não têm tido acesso a uma primeira infância mais bem cuidada.
A cidade hoje conta com quatro Praças da Primeira Infância, que é um espaço dedicado e desenvolvido para receber crianças nessa faixa de idade, mas a que fica mais próxima do Córrego está a cerca de 4 km, no bairro da Encruzilhada. A construção desses equipamentos é mais recente que as dos demais parques que existem na cidade.
No geral, os morros e altos não são os locais onde as gestões municipais e estaduais direcionam espaços verdes e de convivência. Nesse contexto, o que mais aproxima as mães e crianças do Córrego para o Parque da Jaqueira, por exemplo, é o micro-ônibus que faz o transporte complementar do sistema público de transporte e que possibilita esse traslado. Pela distância e custo, esse se torna um passeio esporádico e as crianças têm que se bastar com o parque do bairro que não tem tantos equipamentos, a barreira ou qualquer outra alternativa que elas irão criar. Como se o direito de brincar não fosse digno de ser viabilizado enquanto política pública.
Racismo ambiental e os movimentos de direito à cidade
Embora seja um termo que mais recentemente tenha voltado a ser popularizado, o tema racismo ambiental é abordado cotidianamente por quem trabalha pelo amplo Direito à Cidade. Aqui no Brasil, somos alertados recorrentemente pelos povos indígenas sobre os riscos e as violências que as comunidades indígenas sofrem todos os dias pelo avanço do agronegócio e da mineração ilegal e negligência do Estado. O Movimento Negro também nos alerta o tempo todo sobre a vulnerabilidade de quem vive nas favelas e em outras áreas periféricas longe das capitais – sobretudo em relação às forças de segurança pública.
No Recife, uma organização que trabalha há mais de 30 anos nesse tema é o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec). Luís Emannuel é o coordenador do programa de Direito à Cidade da ONG e entende que a luta por terra e moradia é o primeiro passo em relação a outros acessos que nos dão pleno usufruto do espaço onde a gente vive.
O racismo ambiental, além de dificultar o acesso a serviços públicos básicos e essenciais, como o saneamento básico, creche e posto de saúde, também impõe a quem mora nas favelas uma aproximação ainda maior com os desequilíbrios ambientais. “as casas de periferia não vivem só no risco de inundação durante o inverno, mas também agora no verão, o impacto das altas temperaturas e principalmente quem passa por isso são as mulheres, que são aquelas a quem a gente relega o trabalho doméstico. Não só cuidando da casa, mas ali cuidando das crianças.”, afirma Luís.
O advogado faz uma comparação entre o local onde o Cendhec é sediado, no bairro da Madalena, na zona norte nobre do Recife, e o bairro de Nova Descoberta, onde eles realizam Assessoria Técnica para Habitação de Interesse Social. Lá também é zona norte, mas é na parte periférica da cidade e são quase seis graus de diferença.
“Hoje a gente consegue identificar dentro da cidade essa segregação muito claramente. Você tem um sol que recai sobre uma cidade cujas consequências e efeitos são muito mais sérias e degradantes para uma parte da cidade que dificilmente tem acesso às políticas públicas, são casas construídas às revelias do acompanhamento das autoridades. as autoridades não chegam lá para regularizar, trazer acesso à água potável, nada. Essas comunidades só tem acesso ao estado através da polícia e do sistema prisional. Da Defesa Civil, só quando tem um desastre. É o que o pessoal chama de inclusão na exclusão” Luís Emanuel
Luís ressalta que o acesso à terra e moradia é a base para reivindicar outros direitos. A experiência no Cendhec mostra que enquanto os mais velhos lutavam pelo acesso à terra, os jovens enfrentam privação de direitos dentro e fora dos territórios onde vivem. Além dos problemas de transporte público no Recife e Região Metropolitana, o endereço em um currículo pode interferir na busca por empregos melhores.
De todo modo, é preciso relembrar sempre que o acesso à cidadania não é não pode ser por meritocracia. O racismo institucional e ambiental mina a humanidade das pessoas que vivem nas periferias e acaba criando um ranking de quem merece ter seus direitos respeitados ou não. E “quando a gente fala de sujeito de direitos, a gente fala de dignidade humana enquanto um princípio do Direito e não como um simples merecimento. É enquanto uma efetivação de direitos fundamentais. A gente percebe muito essa dificuldade das pessoas se perceberem enquanto cidadãos e cidadãs”, afirma o advogado Luís Emmanuel.
Essa é uma problemática que não começa hoje, mas lá na Lei de Terras de 1950, que impediu pessoas negras (ex-escravizadas ou não) de terem seus cantinhos e produções, relegando-os à venda da sua força de trabalho, tempo, saúde e afetividade.