As mulheres que abortam não são números. Elas têm nome, rosto e endereço. Colhemos relatos de mulheres que interromperam voluntariamente a gravidez
Texto: Amanda Stabile
Edição: Mayara Penina e Semayat Oliveira
Ilustração: Gabi Lucena
Atualizado em 25|09|2023
Compartilhar experiências de aborto salva vidas. Não apenas por seu caráter instrucional, do que fazer ou evitar, mas por romper o silenciamento que permeia essa pauta. Sabemos que uma em cada sete mulheres brasileiras já realizaram uma interrupção voluntária da gestação, segundo a edição de 2021 da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA). Provavelmente você conhece, ama, ou se relaciona com alguém que já abortou. Mas quem são e onde estão essas mulheres?
A criminalização contribui para que essa seja uma temática conversada na surdina. Nunca nas mesas de debate ou jantar. Isso favorece um cenário de distanciamento do tema e do desconhecimento de que, na própria família, a avó, a mãe ou a irmã, já podem ter interrompido voluntariamente uma gestação.
No Brasil, o aborto é permitido apenas em três casos: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto.
Ser contrário às políticas que garantem segurança à vida dessas mulheres fica fácil quando as enxergamos apenas como números, sem nome, rosto ou endereço. Por isso, propagar essas histórias e colocá-las em um contexto humanizado, cotidiano e comum a todas é tão fundamental.
Além disso, nem toda história de aborto voluntário é de sofrimento. É a criminalização que perpetua itinerários de dor física, emocional e social. Quando realizado de forma segura, o aborto não deixa marcas e traumas. Esses relatos também precisam ser difundidos para que não haja uma história única de um procedimento tão singular.
Para contribuir com o debate, o Nós, mulheres da periferia ouviu seis relatos de abortos feitos fora das situações legalmente permitidas no Brasil. Nenhuma das entrevistadas sentiu culpa ao interromper voluntariamente a gestação. O sentimento citado por elas é de alívio.
Ao longo do texto, você também acompanhará comentários de Nathália Diórgenes, assistente social, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora adjunta da UNILAB e pesquisadora dos temas saúde da mulher, direitos sexuais e reprodutivos, saúde pública e gestão de políticas públicas.
Bárbara, uma mulher branca, hoje com 39 anos, realizou um aborto em setembro de 2015, quando tinha 31. Após voltar para o Brasil depois de quatro anos morando na França, onde o aborto é legalizado há quase 50 anos, descobriu que estava grávida. “Há muito tempo decidi não ter filhos e também estava em um momento sem estrutura: sem trabalho, morando na casa da minha mãe.Não fazia sentido ter uma criança com aquela pessoa”, lembra.
A moradora do Itaim Paulista, bairro da zona leste de São Paulo (SP), conta que considera ter vivenciado um procedimento de aborto “ideal”, realizado de forma tranquila. “Só não foi mais ideal porque é crime e, por isso, gastei quase 5 mil reais”, aponta. “Talvez a minha história seja interessante no sentido de normalização do aborto e de contar uma história feliz”.
Diferente de muitas mulheres que passam sozinhas pela interrupção da gestação, Bárbara contou com uma rede de apoio muito sólida. “Eu sou rodeada de pessoas progressistas e feministas, então, pude contar para praticamente todas as minhas amigas e as pessoas ao meu redor, com exceção dos meus pais que são pessoas complexas”.
Não tinha muita informação sobre os métodos na época, mas, entre o aborto medicamentoso e o realizado em uma clínica, usou suas reservas financeiras para fazer o procedimento em uma clínica indicada por pessoas que confiava.
“Liguei para lá e marquei uma consulta normal de ginecologia em um bairro de classe alta em São Paulo”, recorda. “Entrei em um prédio comercial de muitos andares, apresentei o documento na recepção e, quando cheguei na clínica, fiquei na sala de espera”.
Acompanhada por uma amiga, o primeiro espanto foi ser um local “muito normal”, suas expectativas eram diferentes. Até o momento de estar frente a frente com o médico no consultório, em nenhum momento falaram sobre o procedimento que Bárbara faria ali.
“A consulta foi ótima, o médico foi super acolhedor e respeitador, em nenhum momento me perguntou sobre os meus motivos”, lembra. “A gente agendou o procedimento para a semana seguinte, uma aspiração intrauterina, e ele me disse que seria bem rápido e que duraria no máximo 15 minutos”.
Ela pôde ir embora no mesmo dia, assim que a anestesia passou. “Eu esperava que fosse uma coisa tão extraordinariamente sofrida que no dia seguinte eu fiquei me perguntando se tinha acontecido mesmo”, ri.
“A primeira vez que eu realizei um aborto foi em 2000, eu tinha 22 anos”, conta Marcela*, mulher negra, hoje com 46 anos. Após algum tempo de atraso da menstruação e de sentir muita dor nos seios, decidiu marcar uma consulta com a ginecologista. Descobriu que estava grávida.
Marcela então contou para o namorado e, depois de alguns dias esperando algum posicionamento dele, decidiu que não queria ter a criança. Conversando com as amigas, soube que uma pessoa próxima de uma delas já havia feito alguns abortos com a mesma mulher.
“Eu vou em uma mulher que atende em uma favela lá em Santo André. O nome dela é Maria e trabalhou mais de 30 anos como enfermeira”, contou a amiga. O procedimento iria custar R$ 200, um valor alto para Marcela, que trabalhava como auxiliar administrativa. Também não podia contar com seu namorado, já que ele estava desempregado.
“Então conversei com outro amigo, era Conselheiro Tutelar e ele me emprestou 100 reais. Com a dona Maria eu combinei de dar um cheque de 30 dias para pagar o restante. O cheque era da minha mãe, inclusive”, lembra.
No dia marcado, um sábado, Marcela não quis a companhia do namorado, mas de uma amiga. Depois de pedir informações para algumas moradoras, encontraram a casa da Dona Maria. “Era um barraco. Antes de chegar, tinha feito um combinado com a minha amiga: ‘você fica olhando pra ver o que ela faz’”, lembra.
Dona Maria pediu para que Marcela deitasse em uma cama, pegou água da torneira e ferveu em uma panela. “Minha amiga falou: ‘Marcela, ela não colocou nada na água, só esquentou, só se já tinha alguma coisa dentro da panela”. Maria, então, aplicou o líquido no útero da paciente com uma sonda e orientou: “vai dar cólica, é para você se movimentar bastante, não pode ficar parada”.
Após nada além da cólica acontecer, Marcela voltou à favela na terça-feira pela manhã. Logo que chegou ao trabalho, começou a sentir muita dor e decidiu procurar ajuda médica. “Já no ônibus, eu estava com uma dor insuportável”, lembra.
No hospital, foi colocada no mesmo quarto que uma mulher que tinha tido um aborto espontâneo e estava aos prantos. “Me deixaram horas no quarto, sem medicamentos para dor. Eu falei pra enfermeira: ‘se vocês não me atenderem, vou fazer um escândalo’”, conta. A médica então foi chamada. “Ela enfiou os dois dedos em mim para fazer um exame de toque. Quando tirou, saiu tudo, até a placenta”.
No outro dia, na hora de receber alta, o médico disse que eles tinham colhido o material e iam mandar analisar para saber o que causou o aborto. A ideia era amedrontar Marcela. “Hoje eu sei que isso não acontece, que é um exame muito difícil de fazer e que ninguém pede. Então, considero que ali eu vivi uma violência”, defende.
Anos mais tarde, uma amiga de Marcela teve uma complicação grave realizando o procedimento na casa da dona Maria e quase morreu. Elas então descobriram o que a ex-enfermeira colocava na sonda.
Aos 28 anos, em 2006, quando já estava na universidade, Marcela realizou seu segundo aborto. Logo após acabar um relacionamento, descobriu que estava grávida. Mas o pai desapareceu. Ela conversou sobre isso com uma amiga do trabalho, que a indicou buscar informações em uma organização específica. Lá, foi orientada sobre o aborto medicamentoso e o valor: os comprimidos iriam custar R$ 800.
Em contato com a orientadora da organização por telefone, Marcela realizou o aborto no sábado de manhã e sentiu cólica o dia todo. Nos dias seguintes, a dor amenizou, até que na terça ligou para a orientadora. “Ela me falou para ir a um hospital específico e procurar determinada assistente social que iria me encaminhar a um certo médico”, recorda.
Mais uma vez acompanhada por uma amiga, seguiu as instruções. “Ficamos esperando o médico, mas ele faltou. Então a assistente me aconselhou a passar com outro só para ver se estava tudo bem”, conta. Porém, antes disso acontecer, Marcela foi ao banheiro e sentiu uma sensação diferente, era o resultado do procedimento. Viu muito sangue no vaso e a dor passou na hora.
Em 2016, Verônica, uma mulher branca, hoje com 33 anos, realizou um aborto na mesma clínica que Bárbara. Ela já era mãe de uma criança de três anos de idade e tomava anticoncepcional para evitar uma nova gestação. Então, estranhou quando sua menstruação atrasou.
“Eu já fiz o teste de gravidez sabendo que em nenhuma circunstância eu teria outro filho naquele momento”, recorda a moradora do Butantã, bairro na zona oeste de São Paulo (SP).
Assim que viu as linhas no teste confirmando sua gestação, mandou mensagem para duas amigas pedindo ajuda para acessar os caminhos para realizar um aborto. “Eu fui em um lugar em que me informaram como funcionava o aborto por medicamento e eu também consegui o contato do médico que faz isso em um consultório de ginecologia. Na época, tive a condição de decidir e paguei um pouco mais caro pelo procedimento cirúrgico”.
Ela considera que foi mãe muito jovem, aos 22 anos, e conta que teve de abdicar de muitas coisas, mesmo com uma rede de apoio. “Ter filho é lindo, mas é muita entrega. E eu também não tinha dinheiro para criar outra criança”, conta. “Eu tinha tido um parto tão bonito e tão recente. Foi transformador para a minha vida e importante para a minha família e eu queria preservar essa memória”.
A segunda gestação foi descoberta em uma segunda-feira e, na quinta, já realizou o aborto. “Fui recebida com muito cuidado para tomar o sedativo e me trataram super bem. Foi bem rápido, o procedimento durou 15 minutos”, recorda. “Então eu fui para uma outra salinha até acordar e ver o médico e o meu companheiro que me acompanhou. Eu saí andando de lá, sem nenhuma dor, até comi um McDonald’s e viajei no dia seguinte”.
Verônica não sofreu durante o aborto, mas psicologicamente sentiu muito medo, insegurança e ansiedade por, a princípio, não saber quem procurar, como os métodos funcionariam em seu corpo e por estar fazendo algo considerado ilegal. “Apesar das leis brasileiras me dizerem que eu fiz algo errado, eu sei que eu não fiz. Foi com muita certeza. Eu faria de novo, inclusive. Hoje eu tenho o DIU, mas os métodos também falham”, aponta.
“Eu já fiz cinco abortos durante a minha vida. A primeira vez eu tinha 21 anos, os outros quatro eu realizei entre os 32 e os 37”, conta Jacqueline*. Quando se descobriu grávida pela primeira vez, tinha acabado de passar no vestibular para estudar em uma universidade pública em Bauru, no interior de São Paulo (SP).
Vinda de uma família interracial, periférica, numerosa e muito humilde financeiramente, seria a primeira pessoa a cursar o ensino superior, tanto por parte de pai quanto de mãe. “Apesar da explicação racional para o aborto ter sido a faculdade, quando eu soube da gestação não senti nem um milésimo da alegria de ter passado no vestibular”, desabafa.
Jacqueline realizou a interrupção da gestação em casa, usando um medicamento comprado do Paraguai, com a ajuda de uma colega com quem dividia apartamento. Ela explica que, naquele momento, o que ela sentia em relação ao procedimento recém realizado se misturava-se ao que ela sabia que a sociedade pensava sobre as mulheres que abortam.
Nos outros procedimentos, não considera ter sofrido psicologicamente. Porém, no último, foi vítima de violência obstétrica. Alguns dias após realizar o aborto medicamentoso em casa, começou a sentir uma dor muita forte. Chamou o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e, junto com o companheiro, foi levada até a Santa Casa mais próxima.
“Me deixaram internada por mais de uma semana para realizar uma curetagem. Fui passando de ala em ala e ouvi sermão das equipes médicas. Também me deixaram três dias na sala onde chegam as gestantes para parir”, lembra. “Na época eu não me senti violentada, eu achava que ficar internada todos esses dias era algo normal. Eu só fui entender depois, quando me contaram que a curetagem era um procedimento muito simples”.
Hoje com 48 anos e morando em João Pessoa (PB), Jacqueline conta que, olhando para trás, consegue ressignificar cada aborto que viveu. A cada situação, foi tendo mais certeza de que não queria ser mãe. “Tive um período de abortos recorrentes. Hoje vejo que não estava sabendo me cuidar. Eu também tinha um relacionamento com traços de abuso e só soube reconhecer depois”, conta.
Em seus últimos procedimentos, contou com a rede de apoio de suas amigas e aponta que nunca teve medo de conversar sobre isso. “Eu não perco a chance de falar, porque é um serviço. Compartilhar as nossas experiências e vivências é algo que nos salva”, defende Jacqueline.
Em artigo para o Portal Catarinas, Melania Amorim, que é médica, pesquisadora e professora de Ginecologia e Obstetrícia, aponta que a educação sexual nas escolas impacta na prevenção de gestações não planejadas e “assume especial relevância porque permite a prevenção do risco de abortamentos clandestinos”.
Nicole Aun, é diretora de teatro, ativista feminista e uma das fundadoras do Movimento Atreva-se que, desde 2016, se dedica a criar ferramentas e estratégias para nomear e combater o machismo cotidiano. “Pensamos em várias ações, mas chegamos à conclusão de que o lugar que mais gostaríamos de estar eram as escolas”, conta.
O movimento então criou alguns jogos para conversar sobre problemas estruturais com os estudantes. Um deles é o “nomear para combater”. “Nele, os adolescentes criam narrativas do cotidiano a partir de personagens, ambientes e situações. Eles escolhem cinco cartinhas e, em grupo, criam uma história que revele o machismo. Feito isso, a gente debate as histórias. Depois, eles criam uma história que combata o problema, aí conseguimos falar de coisas estruturais”, explica Nicole.
Durante as dinâmicas, apesar do movimento não abordar questões relacionadas à educação sexual ou gravidez na adolescência, esses temas frequentemente são citados pelos adolescentes, assim como o aborto. “Aparece como ‘é muito caro’, ‘dá muito medo’, ‘uma amiga tomou um chá’. Eu ouvi algumas histórias, mas é um assunto muito velado. É sempre colocado no lugar do perigoso, do errado. A gente ouve meio de orelhada”, aponta.
Denise* é professora de geografia há 28 anos e leciona em uma das escolas pelas quais o Movimento Atreva-se passou. Ela atua na rede pública estadual de São Paulo desde 2008, mas já lecionou em escolas particulares, na capital, no interior do estado e em diversas etapas da educação. Atualmente leciona em uma escola de período integral em Taboão da Serra, município na zona metropolitana de São Paulo.
Apesar de um tema tabu, durante sua trajetória, a professora presenciou muitos pedidos de alunos para falar sobre educação sexual e interrupção da gravidez. “Eles querem muito saber sobre aborto porque é algo que mexe diretamente com a opinião e o corpo deles”, explica. Denise conta que pelos menos dois casos relacionados ao tema a marcaram profundamente.
“Em uma das escolas particulares, um garoto de 16 anos engravidou uma menina de 14 anos. Ele chorava muito porque estava apaixonado e queria muito assumir a criança, mas os pais terminantemente não permitiram. Eles se juntaram e pagaram um aborto para a menina”, recorda.
Quando Denise era diretora de uma escola pública, um casal de 17 anos a procurou para pedir ajuda. Eles estavam decididos a realizar um aborto, mas estavam com medo e muito inseguros. Os pais não sabiam de nada, com a ajuda da internet eles pesquisaram tudo sobre o assunto e escolheram uma clínica para realizar o procedimento.
“A menina parecia estar determinada e muito consciente. Ela dizia ‘eu não tenho condições de ter essa criança. Agora vai estragar todos os meus planos’. Ele, por sua vez, estava um pouco balançado naquela questão ‘estou matando um ser humano’, mas falou ‘é o corpo dela, eu não posso interferir na decisão’”, lembra a professora.
Ela então conversou com os adolescentes sobre a importância de envolver os pais nessa conversa. Eles foram chamados e bateram um longo papo. Por fim, o procedimento foi realizado e, depois de um tempo, o namoro dos adolescentes acabou.
*Todos os nomes citados nos relatos são fictícios.