Conheça as histórias de autoras que encontraram na prisão uma expressão poética e cultural. Nessa série destacamos a resiliência dessas mulheres e o poder transformador da literatura
Texto: Amanda Stabile
Edição: Mayara Penina e Semayat Oliveira
Ilustrações: Gabi Lucena
Atualizado em 24|01|2024
Luciana Vinhas estuda assuntos relacionados às mulheres em privação de liberdade desde 2011, quando iniciou seu doutorado em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Durante sua pesquisa, conduziu entrevistas no Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre (RS), para entender a relação das mulheres com o próprio corpo e a construção de suas subjetividades.
“Uma das entrevistadas, por exemplo, tinha uma tatuagem de uma aranha no pulso e, após ser reconhecida em um assalto, tatuou uma borboleta por cima. Essa inscrição influencia como ela se reconhece como mulher, assumindo a responsabilidade por um crime”, explica. “Portanto, quando falamos em subjetivação, nos referimos à maneira como elas atribuem significado ao mundo”.
Em 2019, a pesquisadora concretizou uma segunda etapa de seu processo de relação às mulheres encarceradas: a implementação de um projeto de remição de pena pela leitura, no Presídio Regional de Pelotas (RS). “Na época, eu era professora da Universidade Federal de Pelotas e consegui criar, desenvolver e institucionalizar o projeto em parceria com a equipe do presídio, que foi muito receptiva”.
O projeto consistia em rodas de leitura mensais, em que um livro era lido, seguido pela redação de um relatório de leitura que, após avaliação, permitia a redução de quatro dias da pena.
“O contato com a escrita e leitura pode provocar uma interpretação alternativa do mundo, distante da repetibilidade do regime de encarceramento. Mesmo não sendo algo fácil, algumas resistem, presas na rotina, enquanto outras encontram um grande esforço para se colocar em outro lugar”
Assim como Luciana, profissionais com graduação em licenciatura podem atuar em ambientes prisionais, ação que promove a ressocialização dos detentos por meio do acesso à educação. Em sala de aula, a pesquisadora busca instigar os estudantes a refletirem sobre a possibilidade desse espaço como um ambiente propício à leitura.
Ela também destaca a necessidade de levar a universidade para o presídio, assim como o contexto prisional para a academia, com o objetivo de conscientizar sobre uma instituição muitas vezes negligenciada e esquecida pela estrutura social.
Durante a pandemia, Luciana iniciou seu segundo doutorado na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), visando a análise de textos escritos por pessoas em situação de privação de liberdade, especialmente mulheres. Dentre suas descobertas está que muitas delas expressam a sensação de perda de tempo e de que a vida segue lá fora, enquanto dentro do presídio tudo permanece inalterado.
Também constatou que a prisão é inegavelmente um elemento motivador para a produção textual.
“É importante conhecer e reconhecer essas histórias. Ao ler esses textos, percebemos que existe um projeto de Estado para que determinadas pessoas sejam aprisionadas e outras não”
Em seu itinerário entre universidade e presídios, Luciana também observou uma relação muito próxima entre as duas instituições. “O Estado funciona de modo a diminuir a educação e aumentar o policiamento e o aprisionamento.
E há uma responsabilidade coletiva: toda a população é responsável quando um Estado doente prefere enclausurar do que educar”
Por isso, a pesquisadora acredita que conhecer as histórias das pessoas que passaram pelo cárcere é fundamental. “Isso nos ajuda a entender que é necessário um maior investimento em projetos que sejam efetivamente voltados para a humanização de quaisquer sujeitos e não somente dos que estão em camadas privilegiadas na nossa sociedade”, conclui.
Sabendo da importância de apoiar e disseminar a palavra de mulheres que passaram pelo cárcere e transformaram essa experiência em uma expressão poética e cultural, o Nós, mulheres da periferia conversou com três autoras. Com esses perfis desejamos destacar a resiliência dessas mulheres e o poder transformador da literatura. Confira:
©Gabi Lucena
[AVISO DE GATILHO: violência doméstica e sexual]
Amanda nasceu em 27 de novembro de 1992, em Natal, no Rio Grande do Norte. “Aos 12 anos de idade, conheci Rômulo, a quem imaginei que seria o pai dos meus filhos e companheiro para toda a vida. Mas aquele conto de fadas foi se desfazendo ao longo de meses e anos de convivência”, relata.
Desde os 13 anos, o homem, apelidado de Rominho, que era primo do pai de Amanda, insistia em manter um relacionamento em segredo com a menina. Logo ele a abusou sexualmente sob o pretexto de ser uma prova de amor. Do contrário, a deixaria. Amanda manteve silêncio sobre isso por quase um ano até seus pais descobrirem.
Aos 15 anos de idade, a adolescente foi obrigada a morar com Rominho e as agressões começaram logo no primeiro dia juntos na nova casa alugada. As violências foram escalonando. Dos gritos, Amanda começou a ser agredida fisicamente, era constantemente ameaçada e foi proibida de frequentar a escola.
Aos 17 anos, Amanda foi levada pelo marido à Tambaba pela primeira vez. Localizada em João Pessoa (PB), na praia é permitido ficar nu em áreas demarcadas da orla. Foi nesse cenário que uma parte importante da história que levou a escritora ao cárcere aconteceu.
Lá ela foi obrigada pelo marido a transar com outros homens. Também começou a ser ameaçada de morte. Cansada das violências, em 2016 ela resolveu seguir o conselho de uma amiga da academia que a viu cheia de hematomas: “por que você não manda matar ele?”. Em 18 de agosto, Rominho foi baleado e morreu no hospital.
Amanda foi presa em 13 de dezembro de 2016, aos 24 anos, acusada de ser a mandante do assassinato de seu marido. No presídio, retomou os estudos e decidiu vencer a vergonha, colocando sua própria história no papel. Concluiu a escrita em 2020 e descreve a experiência como algo libertador, uma forma terapia quando ainda estava em cárcere.
Em 2021, “De Tambaba à prisão: uma trama real de violências e abusos no paraíso do nudismo brasileiro” (Unilivreira) foi publicado. “Eu falo coisas no livro que eu jamais imaginei revelar. Ele tem uma linguagem simples e bem objetiva porque eu acredito que a violência não pode ser romantizada. Ela tem que ser mostrada da forma como acontece”, pontua a autora.
©Gabi Lucena
Filha de migrantes nordestinos, Gih nasceu em Suzano (SP). Seu gosto por literatura surgiu frequentando uma biblioteca local. “Foi ali que eu cometi o meu primeiro furto. Eu literalmente era a menina que roubava livros”, ri.
Após a morte do pai, Gih teve contato com a criminalidade e conheceu o cárcere. Lá, foi aconselhada por um guarda a procurar a biblioteca da unidade, onde poderia acessar o Código Penal e solicitar análise do seu processo.
“E assim a literatura penal entrou na minha vida e me libertou de fato. Eu escrevi um Habeas Corpus de 30 páginas apontando as falhas no meu processo”. A resposta foi positiva e Gih foi libertada. Porém, voltou ao cárcere em 2014, após seu processo sofrer um revés.
Foi quando conheceu o Sarau Asas Abertas, projeto realizado pelo Coletivo Poetas do Tietê desde 2013, coordenado por Jaime Queiroga. A iniciativa oferece oficinas semanais de leitura e escrita criativa às participantes. Lá, Gih começou criar e recitar poesias. Desde então, nunca mais parou.
Hoje, Gih é autora de dois livros “Quem saberia perder” (Selin Trovoar) volume I e volume II. Lançados em 2021 e 2023 respectivamente, as obras falam sobre suas vivências e memórias, dentro e fora do sistema carcerário, misturadas à ficção. “Seus escritos são ligeiros e focados, não tem meio termo; porrada na realidade”, definiu o músico e poeta Marcelo Lemos na orelha do primeiro volume.
©Gabi Lucena
Marcionila Mendes de Almeida é a quinta de sete filhos. Produtora cultural com mais de 20 anos de experiência, iniciou no ramo da produção de projetos culturais na Ilha de Marajó, no Pará, onde nasceu.
Marcia, como gosta de ser chamada, começou a trabalhar aos 15 anos em inúmeras ocupações. A vontade inicial era de se tornar artista plástica, mas foi vencida pela necessidade de contribuir para o sustento da casa. “Logo eu percebi que não dava para viver apenas disso. Mudei meu foco para produção de eventos e elaboração de projetos”, explica.
Após a morte de sua mãe, em 2018, mudou-se para Florianópolis, em Santa Catarina, com seus filhos, buscando uma vida melhor. Em uma das viagens entre Pará e Santa Catarina, foi presa pela posse de entorpecentes. ”Eu fiz a besteira de viajar trazendo o meu potinho de cannabis. E acabei sendo pega”, explica.
Durante o tempo que passou no Centro de Reeducação Feminino (CRF), em Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, ela começou a transformar a experiência da privação de liberdade em algo poético e cultural. No dia a dia do cárcere, era comum a contação de histórias de sexo, romance e paixão.
Marcia as reuniu no livro “Borboletas Enjauladas” (Harpa Produções), que conseguiu publicar em 2021 com o incentivo da Lei Audir Blanc de fomento à cultura. O título foi baseado no verbo “borboletear”, usado para descrever de mulheres que se relacionavam intimamente e passavam por uma “metamorfose” relacionada à própria sexualidade.
Todas as personagens do livro são reais, apesar de terem nomes fictícios. Contar essas histórias foi, para Marcia, uma forma de protesto. Sua grande constatação sobre o tempo encarcerada é que uma pessoa considerada marginal já foi marginalizada primeiro.