Entendendo o desejo feminino para além do que os filmes mostram

A colunista Maria Chantal fala sobre a sexualidade feminina à luz da ciência e como ela é representada nas obras audiovisuais

19|01|2024

- Alterado em 19|01|2024

Por Redação

Você decidiu encerrar sua noite assistindo a uma série ou filme. Está em busca de algo romântico, sem a necessidade de pensar muito, apenas quer relaxar a mente. Então, ao explorar o catálogo de opções, depara-se com os chamados romances sensuais, filmes românticos com cenas de sexo mais explícitas e frequentes. Você assiste a um, dois e três filmes desse gênero e começa a perceber um padrão na personagem feminina: ela está constantemente interessada em envolvimentos íntimos, independentemente da situação, desejando seu parceiro na trama o tempo todo, mesmo que ele represente a fonte de seus problemas.

Mencionei “romances sensuais”, mas mesmo os tradicionais “água com açúcar” e os filmes de ação transmitem a mesma percepção sobre a sexualidade heterossexual-cisgênero feminina (mulheres com vulva que se relacionam com homens). Essas narrativas apresentam uma figura feminina com uma libido imbatível, que nem o medo iminente de morrer ou a responsabilidade do cuidado de todos na trama é capaz de abalar. Existe um desejo ardente pelo parceiro tão intenso que, em filmes de ação, pode se manifestar na cena de beijo, especialmente após uma situação de perigo extremo. Por exemplo, quando o casal escapa de um acidente de helicóptero, moto, avião ou carro. É evidente que, depois de uma perseguição em que o veículo capota e explode logo após você e seu parceiro escaparem, a primeira coisa que você pensa em fazer é dar um beijo apaixonado ou até mesmo se envolver intimamente. Ligar para os bombeiros ou para a polícia? Quem precisa disso?

Calma, ao assistir esse tipo de produção, seja no sofá ou na cama, muitas vezes exausta fisicamente após longas horas de trabalho, seja como CLT, autônoma ou no trabalho doméstico, é natural pensar incrédula: “É sério que ninguém vai chamar a polícia ou os bombeiros, e vocês vão se beijar agora?”. Apesar de parecer totalmente sem sentido, não é que seja uma representação irreal. Em certa medida, algumas mulheres de fato podem sentir mais desejo em situações perigosas, mas isso é apenas uma parcela da população (cerca de 8%). Parece contraditório, não é? Quando a maioria dos filmes e séries retratam personagens com esse tipo de desejo, cria-se a impressão de que o cansaço decorrente do trabalho remunerado e do trabalho invisível é pura bobagem. Você se torna a exceção, sendo vista como frígida, porque, na realidade, a mulher “verdadeira” teria a libido sempre elevada. Isso ressalta o perigo da história única, conforme bem destacado pela escritora Chimamanda Ngozi em seu TED Talk de 2009, que se transformou em um livro em 2019.

As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada

Por isso, acho justo que a gente saiba que existem outras formas de desejar, que a sexualidade é mais plural do que a maioria dessas produções nos contam. Bora lá.

Pra começo de conversa

É importante destacar que a ciência muitas vezes é permeada por uma perspectiva branca, masculina, cis-heteronormativa, na qual a maioria das pesquisas sobre prazer se concentra no hemisfério norte. No entanto, essas informações são relevantes para coletar dados, obter conhecimento e até mesmo questionar as normas estabelecidas.

No contexto da sexualidade feminina, diversos modelos foram desenvolvidos para facilitar a compreensão. Em 1964, os sexólogos norte-americanos William Master e Virginia Johnson apresentaram o modelo de quatro estágios, que compreende:

Estimulação: caracterizada por aumento da frequência cardíaca e irrigação sanguínea, incluindo nos genitais;

Platô: marcado por suor, contrações musculares e respiração ofegante;

Orgasmo: envolve contrações no ânus, uretra e vagina, além de movimentos corporais abruptos;

Resolução: caracterizado pela redução da pressão e pelo retorno do tamanho dos genitais ao estado natural.

Já em 1970, a psicoterapeuta Helen Kaplan introduziu o elemento do desejo ao debate, apresentando o modelo trifásico, composto por:

Desejo: interesse inicial;

Excitação: fase de estimulação e platô;

Orgasmo: caracterizado por contrações corporais e liberação de tensão.

Na década de 1990, Erick Janssen e John Bancroft desenvolveram o modelo dual, baseado nos sistemas nervosos simpático e parassimpático. Esses sistemas são responsáveis, respectivamente, por estimular o desejo sexual ou inibi-lo completamente. Introduziram o conceito de Sistema de Excitação Sexual (SES) e Sistema de Inibição Sexual (SIS), reconhecendo a importância do contexto ao discutir o prazer.

Por fim, em 2000, Rosemary Basson trouxe a ideia do desejo responsivo e do desejo espontâneo, destacando que o desejo é influenciado por fatores sociais, psicológicos e biológicos. Ela ressaltou a importância do autoconhecimento nesse processo.

O que tudo isso quer dizer

Em outras palavras, o que estou destacando é que a representação feminina predominante na maioria dos filmes provavelmente possui um Sistema de Excitação Sexual médio a alto. Mesmo quando o personagem masculino é a fonte do perigo constante, como visto em produções como “365 Dias” ou na série “Sex/Life”, a percepção do corpo e mente da personagem feminina é interpretada de maneira diferente. Nesses casos, o personagem masculino se torna uma fonte de segurança, apesar de ser visualizado como o responsável pelos perigos enfrentados pela personagem.

Ao desenvolverem o modelo dual, Janssen e Bancroft enfatizam a importância de levar em consideração o contexto. Eles propõem a ideia de uma balança customizada, na qual os elementos que são sexualmente relevantes e as ameaças são avaliados de maneira individualizada. Para cada grupo de indivíduos, o sistema de excitação sexual (SES) e o sistema de inibição sexual (SIS) pesarão de acordo com seu repertório único. A partir dessa avaliação, o corpo e mente de cada pessoa decidem se vão inclinar para o lado da excitação ou da inibição, levando em consideração o contexto específico em que se encontram.

De acordo com a sexóloga Emily Nagoski, em seu questionário sobre temperamento sexual, o Sistema de Inibição Sexual (SIS) caracteriza-se pela necessidade de um ambiente perfeito e confiança no parceiro para que ocorra excitação; no entanto, perde facilmente o interesse diante de qualquer preocupação, timidez ou distrações aleatórias. O SIS pode ser subdividido em três categorias: baixo, representando as 15% de mulheres que, quando sexualmente engajadas, não se distraem facilmente; médio, indicando que um contexto seguro e familiar (já conhecido) é excitante, mas estresse, exaustão e ansiedade podem levar à perda de interesse sexual; por fim, alto, abrangendo os 25% das mulheres que pertencem ao grupo de indivíduos com SIS em nível elevado, ou seja, necessitam de um ambiente confiável e relaxado, se distraem facilmente e perdem completamente o interesse caso se sintam pressionadas.

Falando especificamente do Sistema de Excitação Sexual (SES), mulheres que pertencem a esse grupo se destacam por experimentarem excitação devido a vários fatores. Alguns desses elementos incluem sentir tesão apenas com o cheiro de alguém ou ao perceberem a inteligência e articulação do parceiro. Além disso, a excitação pode aumentar significativamente ao se envolverem em atividades sexuais em lugares diferentes, ao pensarem em alguém que consideram sexualmente atraente e, por último, as mudanças hormonais ao longo do ciclo podem contribuir de forma moderada ou intensa para o aumento da excitação sexual.

Ao subdividir em subgrupos, mulheres com Sistema de Excitação Sexual (SES) baixo, representando 8%, caracterizam-se por “não serem tão sensíveis aos estímulos sexualmente relevantes e precisam fazer um esforço deliberado para direcionar sua atenção para eles”. Aquelas com SES médio, abrangendo 70%, encontram-se “bem no meio”, sendo que a sensibilidade aos estímulos sexuais provavelmente depende do contexto. Por fim, os 16% de indivíduos com SES alto “são bastante sensíveis aos estímulos sexualmente relevantes, talvez até a coisas que não afetam a maioria das pessoas, como cheiros e gostos”.

Todos possuem tanto o Sistema de Inibição Sexual (SIS) quanto o Sistema de Excitação Sexual (SES); a diferença está na identificação, pois algumas mulheres se reconhecem nos subgrupos baixo, médio ou alto de cada sistema.

O questionário de Emily Nagoski, baseado no modelo dual, é uma ferramenta valiosa não para fornecer um diagnóstico, mas para auxiliar na autoconsciência e reflexão sobre encontros sexuais passados, contribuindo para a construção de experiências sexuais mais satisfatórias no futuro. Você pode fazer o download aqui. É importante observar que o questionário está em inglês, mas nada que um aplicativo de tradução não resolva.

Para reforçar a ideia de que a representação em filmes e séries não reflete a realidade, é válido explorar os diferentes tipos de desejo. Compreender esses tipos naturaliza entendê-los e naturaliza o ato de marcar para transar.

Em resumo, os tipos de desejo podem ser classificados em duas formas: desejo espontâneo e desejo responsivo. O desejo sexual espontâneo é aquela vontade de ter relações sexuais que surge mesmo fora de um contexto sexual específico. Por outro lado, o desejo responsivo é exatamente o oposto, sendo a vontade que se manifesta ao se envolver em conversas sobre assuntos excitantes, ao ver algo provocante ou ao sentir cheiros que remetem ao sexo, ou seja, estar em um contexto sexualmente relevante para a pessoa.

Embora muitos acreditem que o desejo espontâneo seja o ideal, acho que o mais importante é o tipo de desejo que funciona para cada indivíduo. Especialmente para você, uma adulta sobrecarregada, não acredite que o capitalismo pode não proporcionar tempo livre para dedicar uma hora ao prazer sem culpa. Portanto, se acostume a ideia de separar tempo para se conhecer sexualmente, seja sozinha ou acompanhada, caso se acredite que o prazer sexual é importante na vida.

Lembre-se: as pessoas são plurais, os filmes nem tanto. Muitas vezes, o que vemos nas telas é uma idealização da sexualidade feminina moldada pelo ponto de vista masculino, daí o enfoque no desejo espontâneo. Observa-se que nas cenas de sexo, raramente há conflitos e a mulher frequentemente não expressa suas preferências. Ambos os parceiros, nos filmes, desejam ter relações sexuais no mesmo momento, e os gestos físicos são realizados sem uma conversa prévia ou durante o ato.

Aliás, são as produções mais recentes começaram a incluir o sexo oral vulvar como parte do repertório sexual, ao passo que em produções mais antigas, o casal frequentemente se limitava a relações sexuais na posição tradicional, com o homem por cima. Vale ressaltar que, como discutido anteriormente, a maior parte das mulheres cis sente prazer fora da vagina, algo que muitas vezes é negligenciado ou mal representado na mídia.

Conclusão

Essa sincronia de uma transa sem conversa ou marcação prévia cria a aparência de que o sexo normal e prazeroso ocorre naturalmente dessa forma, sugerindo que quem planeja ou agenda pra transar é chato, não transa gostoso. No entanto, meu convite aqui é para que cada pessoa construa sua própria abordagem com base em seu corpo, relacionamento e dinâmicas diárias.

O autoconhecimento é essencial para uma vida sexual mais gostosa, tanto consigo mesma quanto com os outros. Este é um dos temas que mais amo abordar em minhas aulas, pois proporciona paz às participantes, retirando o peso de não se encaixarem na narrativa do filme com desejo espontâneo, SIS baixo e SES alto. Em outras palavras, torne-se sua própria referência sexual. Se você precisa usar meias, use; se precisa trancar a porta, tranque; se precisa colocar um som para disfarçar os barulhos sexuais ou ir para um motel, vá. Personalize o ambiente conforme suas preferências. O importante é não inibir seu desejo. Acredite, está tudo bem precisar criar um contexto sexualmente positivo para você. Isso é autocuidado e autoconhecimento.

Atenção: este texto não é um diagnóstico que você deve usar para definir sua vida com base nas informações compartilhadas aqui. Ele também não tem o propósito de fazer com que você sinta culpa pela forma como seu corpo e mente estão organizados. O objetivo é mostrar que há uma pluralidade que tem sido ignorada, e a história única influencia negativamente a forma como você percebe seu corpo.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.