Eleições no Paraguai: o futuro da esquerda está nas mulheres

Dentro do campo progressista e da oposição, a presença e a liderança das mulheres nessa campanha eleitoral foram evidentes. Isso não significa que foram valorizadas pelas lideranças masculinas

05|06|2023

- Alterado em 06|06|2023

Por Jazmín Acuña e Carolina Thiede

O Paraguai tem estado nas manchetes nos últimos meses devido às sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos contra o ex-presidente Horacio Cartes, empresário do setor de tabaco e líder da Associação Nacional Republicana (ANR), de direita. Os EUA acusam Cartes de corrupção e ligações com o terrorismo por atos cometidos antes, durante e depois de seu mandato, entre 2013 e 2018.

E foi justamente Santiago Peña, ex-ministro da Fazenda de Horacio Cartes, fiel a ele, quem venceu as eleições gerais com 43% dos votos de um total de 4.782.940 pessoas aptas a eleger a dupla presidencial e 125 congressistas, 17 governadores e 257 membros das assembleias legislativas.

Contrariando as previsões otimistas que apontavam que a Concertación Nacional teria chance, ela obteve apenas 27% dos votos. Essa coalizão que reúne vários partidos de direita, centro e esquerda, junto com a força de oposição mais importante do país, o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), apresentou como candidato o ex-senador e ex-ministro de Obras Públicas, Efraín Alegre, que perdeu a presidência do país pela terceira vez.

O Paraguai, um país que raramente é notícia internacional, realizou eleições gerais no dia 30 de abril, após uma campanha marcada por desinformação e pouco debate sobre igualdade de gênero e direitos humanos. Como resultado, o Partido Colorado permanecerá no poder, desta vez com maioria parlamentar própria, graças a uma oposição dividida.

A aliança de partidos de esquerda, Frente Guasu, passou a ser a terceira força no Senado após ser desbancada pelo partido do polêmico ex-presidente Paraguayo Cubas, que surpreendeu ao conquistar cinco cadeiras no Congresso. O segundo candidato mais votado do Partido da Cruzada Nacional é réu por abusar sexualmente de uma adolescente. Se não for condenado a tempo, ele poderá tomar posse em 15 de agosto e se tornar senador da República.

Esperanza Martínez, ex-ministra da Saúde do governo de Fernando Lugo, é hoje a principal figura da esquerda no Paraguai. Ela foi a única mulher eleita para o Senado pela Frente Guasu, superando, no voto preferencial, os homens que lideravam a lista. Na Câmara dos Deputados, Johanna Ortega foi a política de esquerda mais votada, após anos de ativismo no Partido País Solidário. Ambas são reconhecidamente feministas.

Desinformação e discurso de ódio como protagonistas

O Paraguai é marcado por recordes históricos pouco elogiosos — foi o último país latino-americano a garantir o voto feminino e viveu a ditadura mais longa da região — e quase 25% de sua população vive abaixo da linha da pobreza. O país também é, há muito tempo, um laboratório para o discurso e as ações do movimento conservador, estreitamente ligado à direita do continente. Por exemplo, um ministro da Educação ameaçou queimar livros em praça pública e censurou a palavra “gênero” no currículo educacional em 2017.

A proibição do aborto no país, segundo a Human Rights Watch, é “draconiana”— só é permitido quando a vida da pessoa que engravida está em risco. Em média, aproximadamente duas meninas de 10 a 14 anos dão à luz todos os dias, e 80% dos abusos sexuais infantis ocorrem no ambiente familiar. Cerca de 36 feminicídios são cometidos por ano, segundo dados dos últimos quatro anos. Mais de 90% dos agressores eram conhecidos, como parceiros ou ex-parceiros, da

Com a eleição em abril de 2023, o mandado de Santiago Peña irá até 2028

Embora o futuro das mulheres, meninas e diversidades esteja em jogo em todas as eleições, esse processo se destacou pelo uso da desinformação nas questões de gênero, por mensagens de ódio contra as candidatas e pouquíssimos projetos promissores para o exercício pleno dos direitos dessas populações. As principais forças que disputaram a presidência mostraram seu conservadorismo nos debates sobre igualdade de gênero que surgiram durante a campanha.

A ANR, conhecida como Partido Colorado, que governa o país há quase 70 anos, tem em suas fileiras vários expoentes de grupos contrários à igualdade de direitos para mulheres e pessoas LGBTQ. A influência deles é notória no discurso do Partido Colorado nos últimos anos.

O presidente eleito, Santiago Peña, mudou de posição sobre o casamento igualitário; em 2017, quando era ministro da Fazenda, manifestou-se a favor, agora seu atual compromisso eleitoral é ser “contra o aborto e o casamento igualitário”.

Embora o programa de governo da Concertación Nacional incluísse mais demandas por igualdade, esse setor tentou se esquivar do debate sobre questões fundamentais e proteladas, como a interrupção voluntária da gravidez. Esse silêncio não impediu que o partido governista tentasse desacreditar as principais figuras da Concertación, associando-as à “ideologia de gênero”, à “Agenda 2030” da ONU e outros lugares-comuns dos grupos fundamentalistas.

O Paraguai não possui procedimentos de reconhecimento da identidade de gênero das pessoas. Até o momento, não há nenhuma legislação local de proteção contra a discriminação. A sociedade civil contabiliza 60 assassinatos de pessoas trans por crimes de ódio desde que a democracia foi restaurada em 1989. A impunidade é a regra. A primeira condenação pelo assassinato de uma pessoa trans no país aconteceu só em 2019.

Nas eleições internas do Partido Colorado, no ano passado, a desinformação sobre gênero aumentou com a instrumentalização promovida pelo movimento autodenominado “pró-vida” na ala liderada pelo ex-presidente Cartes contra o plano de reforma educacional do governo por supostamente conter “ideologia de gênero”.

Ao analisar 211 frases proferidas durante uma audiência pública no Congresso sobre o plano, foi demonstrado que há uma narrativa construída de que o Paraguai tem um “inimigo interno” que é feminista, defende os direitos humanos e a comunidade LGBTQ, é estrangeiro e responde a uma agenda global oculta.

Como resultado dessa campanha, abraçada de forma oportunista por políticos e repercutida nos meios de comunicação que são propriedade de Cartes, a Câmara dos Deputados revogou um acordo de financiamento firmado com a União Europeia para a reforma educacional, colocando em risco uma doação de 38 milhões de euros.

Segundo a Direção-Geral de Estatísticas, Pesquisas e Censos (DGEEC), em 2019 havia 50,4% de homens e 49,6% de mulheres no país, e um total de 35,6% dos lares paraguaios era chefiado por mulheres

Diálogo eleitoral sem propostas

No mês passado, a imagem de uma mulher dando à luz no chão de um hospital por não ter recebido atendimento médico a tempo foi amplamente divulgada na imprensa, gerando uma grande indignação. A imagem sintetizava as condições precárias da saúde pública, especialmente na área da saúde da mulher, o resultado mais palpável de quase 70 anos de governo colorado.

Mas o episódio não conseguiu trazer para o debate público propostas concretas para superar essa precariedade. Na verdade, durante quase todo o processo eleitoral, poucas questões relacionadas à qualidade de vida de metade da população do país receberam atenção.

Uma dessas questões foi a promessa dos candidatos da ANR e da Concertación de oferecer “creches” às mães trabalhadoras. O portal El Surtidor analisou essa promessa e constatou que os espaços para bebês com menos de dois anos de idade “são um direito já contemplado no Código Trabalhista”. Só falta aplicá-lo. As candidatas da Concertación apresentaram algumas propostas de avanço, como o acompanhamento dos esforços já em andamento para criar um sistema nacional de cuidados.

Mas nenhuma proposta ganhou tanto espaço na campanha eleitoral quanto a proposta delirante de impor o parto natural (em oposição à cesárea) e a amamentação obrigatória para crianças de até dois anos, lançada pelo ex-candidato a presidência Paraguayo Cubas.

Esse ex-senador valentão e machista — que conquistou grande parte dos votos contra a ANR nessas eleições — conseguiu dialogar com milhares de pessoas e mobilizar a raiva de grande parte da população contra a classe dominante. Ele fez isso principalmente através do populismo digital, uma forma de fazer política que, de acordo com a jornalista brasileira Natalia Viana, consiste em proferir os discursos mais estridentes para ganhar repercussão nas redes sociais. Cubas parece ter entendido isso perfeitamente, assim como Trump, Bolsonaro e Bukele, para mencionar alguns.

Há esperança para os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQ?

Como ressalta a pesquisadora e política feminista Lilian Soto, a organização das mulheres e do feminismo foi fundamental para que o país elegesse nove congressistas mulheres a mais do que em 2018. Também é a primeira vez, desde a criação do cargo de governador em 1994, que duas mulheres são eleitas governadoras.

No início de 2022, Esperanza Martínez foi eleita como pré-candidata à presidência pela grande maioria dos partidos e movimentos políticos de esquerda e setores representativos do movimento camponês. Mesmo assim, acabou ficando em quarto lugar na lista de candidatos da Frente Guasu ao Senado. Atualmente, ela é a única representante da esquerda no Senado, tendo recebido mais votos do que o ex-presidente Fernando Lugo.

Esperanza é reconhecida por ter contribuído para a democratização do acesso à saúde no Paraguai

Na Câmara dos Deputados, Johanna Ortega se tornou a política de esquerda mais votada aos 35 anos de idade. Kattya González, primeira candidata da lista do Partido Encontro Nacional, que integra a Concertación, foi a segunda senadora mais votada do país.

Dentro do campo progressista e da oposição, a presença e a liderança das mulheres nessa campanha eleitoral foram evidentes. Todas elas trabalharam incansavelmente para unificar a oposição. Isso não significa que foram valorizadas pelas lideranças masculinas. Essas mulheres entenderam que há outras formas de fazer política, distante da liderança personalista e do machismo que ainda persiste na esquerda, analisa a jornalista Juliana Quintana.

Em meio a uma crise de desinformação e dominado por um projeto profundamente conservador, corrupto e extrativista, o Paraguai tem pela frente cinco anos muito difíceis. Precisamos urgentemente de um campo progressista à altura do desafio.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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