Do Elisa Maria para Dublin “Não é aceitável sofrer preconceito por causa do lugar onde nascemos” , por Giliane Lima

Giliane Lima, 24, saiu do Elisa Maria, bairro da zona norte de São Paulo e partiu para Dublin, onde trabalha como au pair. Leia seu relato na íntegra.  Demorei muito tempo para falar sobre esse tema abertamente sem medo e sem ter vergonha de me expor. Há uns dois meses decidi escrever um blog, que ainda está em […]

Por Redação

02|03|2016

Alterado em 02|03|2016

Giliane Lima, 24, saiu do Elisa Maria, bairro da zona norte de São Paulo e partiu para Dublin, onde trabalha como au pair. Leia seu relato na íntegra. 
Demorei muito tempo para falar sobre esse tema abertamente sem medo e sem ter vergonha de me expor. Há uns dois meses decidi escrever um blog, que ainda está em construção, mas foi onde consegui, pela primeira vez, expor algumas coisas que penso a respeito da periferia e o indivíduo.
giliane
Quando vi o post da Jéssica Moreira nos classificados, em busca de depoimentos de mulheres da periferia que trabalham como aupair, achei que seria uma ótima oportunidade para ampliar o alcance desse tema.
Nasci em Juazeiro do Norte, mas fui criada em São Paulo. Meus pais são muito simples, estudaram até a quarta série, escrevem e leem com muita dificuldade. Sou a segunda filha de 8 e, sim, sempre ouço a seguinte piada: “na sua casa não tinha TV?”.  Sim, tinha. Mas era canal aberto, nada de muito interessante. (Risos)
Meu pai sempre trabalhou duro. Foi metalúrgico por muitos anos e quando a empresa não precisou mais dele o demitiu por justa causa, injustamente. Ele processou a empresa, mas demorou anos para ser julgado e, enquanto a solução não vinha, ele teve que se ‘virar nos trinta’ para conseguir dinheiro e nos sustentar. Minha mãe sempre trabalhou duro em casa, cuidar de tantas crianças com pouco dinheiro é missão para mulher maravilha e, como diria minha grande amiga Jade, uma missão solitária.
Inicialmente, quando migramos para São Paulo, morávamos de aluguel no bairro Elisa Maria. Eu não me lembro muito, era muito nova. Depois nos mudamos para a Vila Brasilândia. Sim, de onde a Negra Li veio, e não, eu não a conhecia.
Quando eu tinha uns 7 anos, mais ou menos, meu pai conseguiu fazer negócio com um amigo dele e comprou um ‘pedaço de chão’ na Brasilândia. Me lembro de descermos o barranco, minha família e eu, carregando blocos e me lembro que meu pai construiu tudo. O banheiro ficava do lado de fora e a nossa casa era de telha. Ali fomos criados, meu pai sempre foi sério, mas sempre fez tudo por nós. Minha mãe também sempre foi calada, mas cuidava da gente com todas a ferramentas que tinha. Ambos sempre fizeram todo esse trabalho com muito amor. Eles diziam sempre: “minha fia, você tem que estudar, não tive a chance, você tem.”
Cito isto neste depoimento porque esta é a parte fundamental da minha história hoje, meu alicerce.
Eu sempre quis fazer faculdade, mas achava que era algo distante. E era mesmo, na época ainda não tinha Prouni, financiamentos e bolsas não eram muito divulgados, pelo menos eu não tive muito acesso a essa informação. Mas eu sempre fui sonhadora, ainda sou e isso me fez insistir.
No primeiro trabalho fui Jovem Cidadã, depois recepcionista e lá tive uma tímida, mas essencial, oportunidade de crescer profissionalmente: se eu entrasse na faculdade de comunicação seria promovida ao departamento de marketing.
Fiz cursinho da poli e queria entrar na Usp em relações públicas. Eu mesma pagava o cursinho, não me sobrava muito dinheiro, mas foi uma das minhas pequenas vitórias. Também não me sobrava muito tempo porque trabalhava das 8h às 18h, de segunda a sexta e levava, no mínimo,  uma hora para ir e outra para voltar de ônibus para/do trabalho. Eram muitas disciplinas para estudar e eu sentia que havia uma lacuna muito grande deixada pela minha educação escolar de base que me prejudicava. Havia muitas matérias que nunca tinha visto na escola. Eu sentia que estava sempre um passo atrás. Ainda sinto às vezes.
Não passei na Fuvest. Tenho dor de estômago só de lembrar o dia da prova, foi frustrante.
Eu queria ser promovida, o tempo ia passando e eu tinha medo de perder a oportunidade. Então, decidi entrar em  uma faculdade particular. Meu critério para escolher a faculdade  foi o preço, não era o que eu queria, mas naquela época eu acreditava que era a melhor decisão a tomar.
Enfim, com muito esforço, consegui terminar a faculdade. Em 2009 trabalhei em um evento internacional chamado CONFITEA, em Belém do Pará. Na época, eu trabalhava em uma editora que publicava livros do educador homenageado do Evento, Paulo Freire, então muita gente parava no estande para me fazer perguntas e eu não sabia nada em inglês, tive ajuda de tradutora que hoje é minha amiga, Ana Paula. Uma moça árabe que estava em um estande em frente ao meu, me deu um livro em inglês, era sobre a história das mulheres árabes. Eu agradeci e disse que pediria a Ana Paula para ler para mim. Ela respondeu : “não. Você aprenderá inglês e lerá você mesma”.
Quando voltei, me inscrevi no curso de inglês e foi o que despertou a minha vontade de sair e estudar fora. Comecei a pesquisar o programa de aupair nos Estados Unidos, mas eu não preenchia todos os requisitos e, para fazê-lo, eu precisaria de mais tempo, que eu não dispunha, já que havia idade limite para o programa.
Uma amiga que estava na Irlanda me deu muitas dicas de como fazer intercâmbio, gastando o mínimo  possível. A ajuda que ela me deu foi fundamental para meu planejamento. Economizava o máximo que podia, trocava as saídas a noite por uma sessão cinema em casa mesmo, evitava comer fora. Saia para beber com menos frequência e, quando saia, bebia menos.
Fechei com a escola e fui pagando em parcelas, não era o ideal porque, de acordo com o câmbio, o valor aumentava. Mas se eu não tivesse feito assim, talvez não tivesse conseguido, afinal, eu não tinha todo dinheiro e juntar o montante parecia ser impossível. Tirei passaporte, comprei os euros, malas prontas e parti. Cheguei na Irlanda com o nível de inglês intermediário, mas não entendia quase nada, pois o sotaque aqui é bem peculiar. A minha adaptação não foi difícil, como da maioria das pessoas que conheci, mas como falei, minha amiga que estava aqui me ajudou muito, tanto no planejamento, quanto quando eu cheguei.
Comecei a trabalhar como aupair no primeiro mês. A família era ucraniana e bem simples, eu cuidava de duas crianças e ajudava com serviços leves de casa. Eles me pagavam muito menos que o mínimo estipulado por lei e eu trabalhava muitas horas. Eu não me apeguei ao fato de ganhar pouco e também não me senti explorada, porque, com essa família, tive a oportunidade de melhorar o meu inglês e por também serem imigrantes. Eles me ajudaram a enxergar as diferenças culturais e a me adaptar.
Depois trabalhei para outra família, mãe australiana, pai irlandês. Meu inglês deu um baita salto. Eram quatro crianças com idades diferentes.
Eles tinham melhores condições financeiras que a primeira família e as crianças tinham muitas atividades. Aulas de piano, francês, futebol e tênis. Aprendi mais uma lição sobre como educar, disciplinar sem deixar de dar amor. Eles também me pagavam pouco, melhor que a primeira família, mas ainda assim abaixo do mínimo. No início isso não me incomodava, mas depois fui ficando um pouco decepcionada, porque comecei a perceber que o meu trabalho não era valorizado. Mas eu gostava, gosto ainda, da família e precisava do dinheiro, então fiquei por bastante tempo.
Morei com esta família por alguns meses, antes deixar de trabalhar para eles. A experiência foi interessante, porque estive imersa na cultura irlandesa. Conheci um pouco dos hábitos alimentares, higiênicos, a relação deles com a vida e com trabalho e pude ver como tudo isso é diferente de como eu estava acostumada. Tinha um quarto só meu, conforto, aquecedor ligado no inverno, não tinha que me preocupar em pagar aluguel, contas ou fazer supermercado.  Por outro lado, havia alguns aspectos desconfortáveis. Por mais que a família me tratasse bem, ainda me tratam pois ainda tenho contato com eles, eu não me sentia a vontade para comer, porque sempre comi bastante e eles comiam pouco e também porque eles comem sanduíches no almoço e eu comia refeições completas. Eu evitava transitar na casa fora do meu horário de trabalho porque eu não queria incomodar. Valeu a experiência, mas que só poderia ser temporária, pois não é exatamente confortável. Pelo menos não na minha opinião.
Dentre as vantagens que posso pontuar em ser aupair em um intercambio estão a facilidade de conseguir uma vaga comparado a outros tipos de trabalhos, a oportunidade de imergir na cultura local, trabalhar com crianças (para quem gosta, como eu), e melhorar o inglês.
Dentre as desvantagens estão a informalidade do trabalho que muitas vezes gera exploração, o apego com a família e as crianças que dificulta a decisão de sair, o choque cultural e quando você mora com a família, a falta de liberdade.
Sobre o intercambio em si, posso dizer que a maioria das pessoas vem para estudar inglês, mas o inglês é o menor dos aprendizados que adquirimos vivendo no exterior. Ao sair da nossa zona de conforto, temos que aprender a abrir os olhos e enxergar o outro e a nós mesmos aprendendo a lidar com as frustrações , controlar as emoções e manter o equilíbrio. Ainda, temos que lidar com a diferenças culturais, observar nosso comportamento e adaptá-lo as situações diversas que ocorrem. Passamos por um processo de autoconhecimento e autoavaliação.
Acredito que o aprendizado seja particular, até porque cada um tem uma história de base particular. Entre meus aprendizados posso apontar que hoje valorizo muito mais os momentos com a minha família quando posso estar com ela, pois sinto a dor de estar tão longe por tanto tempo, hoje enxergo o Brasil de uma maneira diferente, mais real menos carregada de pessimismo e falácias, consigo ver as coisas boas que o Brasil tem e que eu não valorizava, assim como vejo que a europa não é o mar de rosas que eu sempre ouvi dizer que era.
Aprendi que fazer piadas sobre imigrantes (chineses, bolivianos etc) só é engraçado quando você não é o foco da piada, sofrer preconceito por ter nascido onde nasceu e ter escolhido viver em outro lugar, definitivamente não é aceitavel.
Também me dei conta de que além das barreiras, que foram muitas diga-se de passagem, os meus medos também me impediram de fazer muitas coisas,  que o outro continente é logo ali, que se antes eu duvidava quando algo, sim digo algo e não alguém porque ‘alguéns’ não assumem que estão te negando ou impendindo você de fazer, comer ou vestir algo que você queira, essa proibição está nas entrelinhas que é para ninguém ter coragem de reclamar, me dizia: você não pode isso ou aquilo, agora eu devo duvidar o dobro, pois eu vejo que mundo está cheio de possibilidades.
A experiência que estou tendo está sendo incrível. Não juntei riquezas, juntei experiências e histórias para contar, memórias de lugares e pessoas que conheci e me apaixonei.
Acredito que todas as pessoas deveriam viver experiência do intercâmbio e eu gostaria muito de ver mais pessoas nascidas na periferia recebendo oportunidades reais de viver essa experiência.
Como disse sou sonhadora e espero que o meu depoimento sirva com incentivo para outras pessoas. : )