Dias Toffoli, Justiça de transição e a democracia

Confira a reflexão de Juliana Maia sobre a fala do ministro do STF durante a conferência Lide Brazil Conference, em Nova Iorque.

05|12|2022

- Alterado em 05|12|2022

Por Redação

“Nós não podemos deixar que o ódio entre no nosso país. Nós não podemos viver só nos extremismos. Nós não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu a Argentina, que a síntese é aquele filme do [Ricardo] Darín: ‘O segredo dos seus olhos’ — uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, no retrovisor, sem conseguir se superar. O Brasil é muito maior do que isso. O Brasil é muito mais forte do que isso e nós não vamos cair nesta situação que infelizmente alguns vizinhos nossos caíram”.

Esta foi a reflexão do ministro José Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, durante sua fala na conferência Lide Brazil Conference, que aconteceu nos dias 14 e 15 de novembro, na cidade de Nova Iorque. A fala do magistrado se referia à decisão recente da Justiça Argentina, que condenou em 6 de julho 19 ex-membros das Forças Armadas do país por crimes bárbaros de violação de direitos humanos cometidos contra 350 pessoas, no Campo de Mayo, maior complexo do Exército Argentino, a 30 quilômetros de Buenos Aires. Dez foram sentenciados à prisão perpétua e outros nove receberam penas que variam de 4 a 22 anos de prisão. Também foram condenados à prisão perpétua militares acusados de executarem os chamados “voos da morte”, quando atiravam ao mar, do alto de um avião, prisioneiros políticos, vivos ou mortos.

A fala de Toffoli repercutiu mal entre os defensores da justiça restaurativa e a justiça de transição. A fala de Toffoli, obviamente, teve o endosso daqueles e daquelas que querem manter as coisas como estão, e acham que o Brasil não tem nada a dizer, enfrentar ou reparar seja sobre os atos de violência cometidos por militares durante a ditadura, seja sobre as consequências do regime escravocrata que ainda tem reflexos na organização da sociedade brasileira. Ainda, a fala soou como um aceno ao Presidente Jair Bolsonaro que insiste em não reconhecer a derrota para o Lula e a sua base de apoiadores que seguem nas ruas numa série de atos antidemocráticos.

Além de mostrar ignorância sobre o assunto, ao usar um filme argentino que não tem absolutamente nada a ver com o que define justiça restaurativa ou de transição para ilustrar sua fala, Toffoli também desinforma. Desinforma na medida em que sua comparação rasa, superficial e primária, fala platitudes sobre um sofisticado programa de acertos de conta com a história de um país.

O que ele chama de “sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, no retrovisor, sem conseguir se superar”, é na verdade um poderoso mecanismo político, fundamental como instrumento de fortalecimento da democracia no campo da justiça e parte necessária do processo de transição para regimes democráticos em países marcados por ditaduras (como Brasil, Argentina ou Chile), guerra civil (como Colômbia ou Guatemala) ou regimes racistas-autoritários (como África do Sul). A justiça de transição ou restaurativa, são partes importantes do ensino sobre ética e democracia na academia em cursos das relações internacionais ao direito.

Chega a ser constrangedor que um magistrado tenha esse nível de leitura contextual sobre o papel da justiça restaurativa. E é quase inadmissível que Toffoli não tenha uma noção mínima do trabalho referencial do arcebispo anglicano sulafricano Desmond Tutu sobre isso. Se conhecesse minimamente a contribuição de Tutu para as justiças restaurativas formuladas em toda a América Latina, saberia que só com muita desonestidade ou ignorância alguém poderia interpretar como ódio um método que foi formulado com base no perdão. 

A Comissão da Verdade e da Reconciliação da África do Sul foi nomeada em dezembro de 1995, com o objetivo central de promover a reconciliação e o perdão entre os perpetradores e vítimas do apartheid. A Comissão visava basicamente três tarefas específicas: descobrir as causas e a natureza das violações dos direitos humanos na África do Sul entre 1960 e 1994; identificar as vítimas com vistas ao pagamento de reparações; e conceder anistia àqueles que assumissem plenamente seu envolvimento nas violações de direitos humanos por motivos políticos. No caso desta última tarefa, a Comissão recomendou a condenação dos que tinham ingerência direta nas violações, e se negaram a reconhecer suas responsabilidades. Além disso, a anistia impedia longas condenações, mas não permitia participação política novamente (inelegibilidade) ou assumir liderança de tropas e operações (no caso de militares). A Comissão recolheu o testemunho de cerca de 21.000 vítimas; 2.000 destes apareceram em audições públicas.

Outro ponto importante da Comissão liderada por Tutu é que ela realmente buscava a dialogar com o país. Por isso o resumo seminal e testemunhos de algumas vítimas eram transmitidos ao vivo. Era uma proposital exposição pública sobre o que aconteceu no país. Entre 1996 e 1998, alguns dos dias mais sombrios da repressão do apartheid foram revividos em uma espécie de teatro público em uma série de audiências que Tutu realizou em todo o país. Os sul-africanos se reuniam em torno de seus aparelhos de TV e rádios todos os domingos à noite para ouvir resumos semanais dos testemunhos. Muitos aprenderam pela primeira vez sobre a brutalidade de seu ex-governo rígido e de direita, através das palavras de vítimas de tortura ou familiares de ativistas desaparecidos.

Mas, ao contrário do que infantilmente (ou de forma desonesta) o ministro Toffoli vê esse tipo de trabalho, Tutu sempre pautou seu trabalho pelo “perdão”. E aqui é importante que o próprio arcebispo diga sua definição de perdão: 

“Perdoar não significa fingir que as coisas não são como realmente são. O perdão é o reconhecimento de que algo horrível aconteceu. E o perdão não significa tentar esconder as rachaduras, que é o que as pessoas fazem quando dizem: “Deixe o passado para o passado”. Porque eles não vão. Eles têm uma capacidade incrível de sempre voltar para assombrá-lo. O perdão significa que os injustiçados e os culpados desses erros reconhecem que algo aconteceu. E há necessariamente uma medida de confronto.”

É isto que inspira as justiças restaurativas em todo o mundo, notadamente na América Latina. E é isto que o Brasil foi incapaz de fazer. O Brasil nunca olhou para o retrovisor. Somos uma sociedade ferida pelo legado colonial-escravocrata, cujo racismo e efeitos de nossa segregação e desigualdade racial salta aos olhos, em todos os espaços e em todos os lugares. O próprio ministro disse sua reflexão infeliz num evento de elite, caro, em que era impossível ver a presença de uma única pessoa negra entre todos e todas participantes. Toffoli integra uma corte que em toda a sua história, com mais de cem anos de existência, só teve um integrante negro (Joaquim Barbosa). Provavelmente, Toffoli deve considerar que isso é uma casualidade.

O Brasil foi incapaz de julgar e (muito menos) punir qualquer militar envolvido nas perseguições, assassinatos e torturas durante a ditadura militar. Este ambiente confortável para torturadores é o tipo de ambiente que torna plenamente razoável que um deputado que faz elogio público a um torturador em pleno parlamento brasileiro seja não apenas ovacionado como também apto para se tornar candidato a presidência da república. O clima de radicalização, endossado por apoiadores bolsonaristas residentes em Nova Iorque, que fez os próprios ministros do STF presentes no evento alvos de hostilidade e ataques verbais sérios, é consequência direta da ascensão de uma extrema direita que cresceu na incubadora de um passado nunca visto nem tratado. 

Ao falar de “extremismos”, Toffoli corrobora a versão de “polarização”, tão equivocadamente posta em evidência em muitos debates e análises jornalísticas durante as eleições, e parece que ainda permanece. Muitos ainda preferem chamar de “extremos” a correlações de forças totalmente assimétricas entre um governo que fomenta a violência, a violação de direitos humanos, o extremismo, a intolerância, a supremacia cristã ultraconservadora e negação de direitos de minorias sociais, e todos aqueles e aquelas que dentro do campo democrático tem tentado sobreviver e reverter as agressões do outro. Típico de quem prefere chamar o golpe civil-militar de 64 de “movimento”, enfatizando “excesso” de ambos os lados. 

Para concluir, além de não entender o papel da justiça restaurativa, Toffoli demonstra uma ignorância simplista na equiparação entre os que lutam pela liberdade, democracia, equidade e justiça, e aqueles que a impedem, transformando direitos e dignidade em privilégios. Mas é definitivamente ainda mais doloroso saber que Toffoli não está sozinho na sua negligência quanto ao não reconhecimento de instrumentos jurídicos e políticos sérios que permitissem ao Brasil neutralizar ou isolar o avanço ou do verdadeiro extremismo (de direita) que paira sobre o país e ameaça o nosso futuro democrático, ou sobre o legado de escravidão e ditadura, que permanecem silenciados e intocáveis no nosso passado.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.