Foto mostra mulher indígena com seu bebê em manifestação

Dia dos Povos Indígenas: como devemos celebrar essa data?

Confira nossa conversa com Poliene Soares, doutora em História Social, para saber mais sobre a origem dessa data e a importância da mudança do nome da celebração

Por Amanda Stabile

18|04|2023

Alterado em 19|04|2023

Esse ano, pela primeira vez, celebramos o dia 19 de abril como o Dia dos Povos Indígenas. Até 2022, nessa data era comemorado o Dia do Índio, um termo considerado preconceituoso e reducionista por não representar a diversidade dos povos originários do país que, hoje, somam 305 etnias.

Além disso, as tradições de “celebração” deste dia por pessoas não-indígenas muitas vezes foram e são apontadas como racistas, por reproduzirem estereótipos e reduzir os indígenas como povos ignorantes e “selvagens”.

“Não é possível romper estereótipos e preconceitos, e também com a ignorância em relação aos povos indígenas, em apenas um dia”, alerta Poliene Soares dos Santos Bicalho, professora do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás e do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado. “O 19 de abril precisa ser apenas mais um dia para se falar e retratar essa diversidade de povos e culturas, dentro e fora da escola. Caso contrário, continuaremos perpetuando o desconhecimento, a violência e o desrespeito”, aponta.

Para saber mais sobre a origem dessa data, a importância da mudança do nome da celebração e como comemorar este dia, conversamos com a especialista, que também é doutora em História Social e líder do Grupo de Pesquisa CNPq Saberes, Sociedade e Natureza no Cerrado. Confira:

Nós, mulheres da periferia: Como surgiu o Dia do “Índio”?

Poliene Soares: O famoso Dia do Índio foi criado em 1943, durante o governo ditatorial do presidente Getúlio Vargas, sob as orientações estabelecidas para as políticas indigenistas dos estados nacionais latino-americanos no I Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México, em 1940. Tratavam-se de deliberações que previam políticas  de Estado, acadêmicas e de foro religioso mais humanistas e respeitosas, porém, não menos complexas e em vários aspectos ainda agressivas, para os povos indígenas das Américas.

Embora se falasse mais em  respeito à cultura e a vida das populações indígenas, a lógica, principalmente das ações dos governos, pouco mudaram e mantiveram-se práticas e discursos repletos de violências físicas e culturais nas relações com os povos originários no Brasil.

E o Dia do Índio pouco ou quase nada contribuiu para mudar esta história, já que serviu muito mais para reforçar preconceitos e perpetuar o desconhecido sobre a realidade destes povos em território nacional.

Nós: Em 2022, essa data foi substituída pelo “Dia dos Povos Indígenas”. Qual a importância dessa mudança?

Poliene: Trata-se de uma mudança importante, pois retoma uma discussão antiga do Movimento Indígena, representado por centenas de organizações indígenas espalhadas por todo Brasil. A simples mudança na nomenclatura carrega muito mais significado do que parece, afinal, “índio” é uma categoria que surge de um erro geográfico (de Colombo em 1492, que acredita ter chegado às Índias quando pisou na América) que pouco ou nada representa a multiplicidade étnica dos povos originários.

Por isso o termo “Indígena” (algo similar a originário do lugar) é mais adequado do que “Índio”, embora não seja o mais correto, afinal, o ideal seria se conseguíssemos nos referirmos povos indígenas a partir de suas próprias autodenominações. 

Na atualidade, o Brasil tem cerca de 305 etnias distintas sobreviventes; antes da chegada do colonizador esse número era superior a 1000. O modo como geralmente nos referimos a um povo indígena não é a maneira como ele se autodenomina. Vou exemplificar: Karajá não é o modo como está etnia se autodenomina, esse nome  foi-lhe dado pelos não indígenas durante os primeiros contatos ainda no século 16. O modo como eles se autodenominam é Iny (nós mesmos), e assim é com a maioria dos outros 304 povos.

Os nomes dados pelos não indígenas aos indígenas são, recorrentemente, pejorativos e não retratam a complexidade (linguística, cultural, social etc.) desses povos, por isso é tão importante começarmos a rever esses termos e conceitos, e substituir o “índio” por “indígena” já é um começo.

Nós: Você escreveu um artigo em que aponta que a comemoração do “Dia do Índio” nas escolas não indígenas é uma tradição que deve ser desinventada. Pode nos explicar o porquê?

Poliene: Sim, a tradição inventada pelo Estado brasileiro ao criar o Dia do Índio precisa ser “desinventada” por duas razões fulcrais: a primeira, porque infelizmente a história tem provado que a criação desse dia não tem contribuído para que haja mais conhecimento e reconhecimento em relação ao nossos indígenas. Reconhecer é respeitar, admirar, conviver com outro diferente de mim/nós, porém, sem que haja qualquer tipo de hierarquização e/ou desqualificação desta outra cultura/povo. Infelizmente não é isso que vemos se repetir ano a ano. Ao contrário, a cultura e os povos indígenas no Brasil ainda são tratados como inferiores, quando não como bárbaros e incultos. Ora, há mais de oitenta anos o Dia do Índio existe e não consegue cumprir o importante papel de romper com estereótipos e preconceitos contra povos e culturas tão ricas e essenciais para a nossa história passada e presente.

Segundo, não é possível romper estereótipos e preconceitos, e também com a ignorância em relação aos povos indígenas, em apenas um dia. O 19 de abril precisa ser apenas mais um dia para se falar e retratar essa diversidade de povos e culturas, dentro e fora da escola. Caso contrário, continuaremos perpetuando o desconhecimento, a violência e o desrespeito.

Nós: As Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabelecem no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, mudou de alguma forma a celebração dessa data nas salas de aula?

Poliene: Há pesquisas que apresentam alguns avanços nesse sentido, ainda estamos no início de uma longa caminhada, mas estas leis simbolizam importantes marcos, pois a obrigatoriedade do ensino da cultura e história indígenas e afro-brasileiras nas escolas é necessária para que as populações indígenas passem a compor efetivamente as páginas da nossa história. Claro que a lei por si só não vai resolver o problema, é preciso que haja incentivos, esforços e meios para que ela se cumpra. E isso é algo que se realiza no longo prazo, a partir de iniciativas diversas: vontade política, ações coletivas, iniciativas pessoais, investimentos em formação docente etc., mas o fato de a lei existir é uma maneira de impulsionar estas práticas.

Nós: Hoje em dia, o dia 19 de abril é uma data que deve ser celebrada dentro e fora das salas de aula? Se sim, de que forma?

Poliene: Sim, acho que deve ser uma data lembrada, comemorada e festejada dentro e fora da sala de aula, pelos mais diversos coletivos, as instituições, as associações etc. Mas é necessário falar, estudar e se informar sobre os povos indígenas no Brasil todos os dias, situá-los nas nossas relações, nas nossas vivências, nas nossas expressões culturais, na nossa música, na nossa arte, na nossa dança, na nossa diversidade linguística e religiosa, nas nossas cores e ritmos; na política, no mercado de trabalho, na formação básica e acadêmica, enfim, é preciso e necessário “presencializar” as vivências e lutas indígenas, pois eles não são e não estão apenas no nosso passado (tão violento e genocida), mas são e estão vivos e ativos no nosso presente!