De Jaraguá a Parelheiros: mulheres indígenas de SP na proteção de seu povo

De norte a sul da periferia de São Paulo, mulheres indígenas falam sobre os esforços de suas aldeias para evitar a entrada do coronavírus no território

Por Jéssica Moreira

24|04|2020

Alterado em 24|04|2020

Este conteúdo integra o especial “Racismo Ambiental: mulheres indígenas e quilombolas na proteção de seus povos contra a Covid-19

Do muro da minha casa, em Perus, região noroeste de São Paulo, vejo nitidamente o Pico do Jaraguá — a terra sagrada dos indígenas. Na beirada das antenas, está uma das seis aldeias presentes no território, a Tekoa Ytakupe (aldeia na língua guarani). 

Quem me leva para dentro da terra, por meio de sua voz, é a liderança indígena Tamikuã Txihi, 27. Ela contou que o maior desafio nesse momento “é não perder nenhum indígena da aldeia para a Covid-19”. Pelo menos 700 pessoas vivem no local. 

“A gente já perdeu  parentes. Não na terra do Jaraguá, mas em outros territórios do Brasil. Essa proteção não é só com nós, humanos, mas com a nossa mãe terra, e as nossas irmãs, que é a natureza”.  

Diferente de outros tempos, em que eu levaria 10 minutos para chegar de carro, o distanciamento mudou de proporções. Assim como eu, a aldeia também está em confinamento. Formada por casas de madeira e muito próximas umas das outras, o local é propício a um rápido alastramento da doença. 

Por isso, o espaço está fechado para os juruá (não-indígenas). O intuito é frear a chegada do coronavírus nas aldeias e proteger, principalmente, as maiores fontes de saber: os xeramõi (mais velhos, em guarani). 

Do outro lado da cidade, extremo da zona sul, a indígena Marisa Kerethú, 49, me chama a conhecer a Aldeia Tenondé Porã, através de áudios de Whatsapp. Explica que a união de todas as terras indígenas da região – incluindo o conjunto de diferentes aldeias – reúne cerca de 300 famílias.

“Para nós, essa doença também é assustadora”, diz Marisa, que agora também está confinada. Ela nasceu na aldeia, teve seus filhos e netos lá. “A gente não pode sair para a cidade, andar na cidade”. 

Tradições em risco 

Para os povos indígenas, a Covid-19 não é um risco à vida apenas, mas também às principais tradições. Tamikuã é artesã e, para ela, cada arte produzida carrega um valor único e intransponível. 

“Também venho usando a arte como luta e defesa dos territórios e dos povos originários. Acredito que as artes são os novos arcos e flechas que irão lançar os sonhos na humanidade”. 

“Sem os nossos mais velhos, que são a nossa memória, como a gente vai conseguir dar continuidade?”

Agora, no entanto, a saída para a venda de artesanatos está pausada, principalmente para não colocar em risco a vida dos anciões. Alguns chegam a ter até 104 anos, conta. Para ela, eles são os pontos mais altos das aldeias. 

“Sem os nossos mais velhos, que são a nossa memória, como a gente vai conseguir dar continuidade?”, questiona. “A gente só consegue dar continuidade mantendo os nossos mais velhos, passando a sabedoria de geração a geração”.

Em Parelheiros, a importância dos idosos também aparece nas falas de Marisa. Na Tenondã Porã, eles optaram em evitar as visitas, para poupar seus anciãos. “Nossos avós e mais velhos estão tranquilos. A gente também evita visitar os nossos idosos”.

“Estamos pedindo a Nhanderu que tudo se acalme”

Para além disso, os povos guarani mbya possuem diversos ritos e costumes que são compartilhados entre todos, como, por exemplo, o uso do petygua, um cachimbo sagrado usado para mentalizar Nhanderú (Deus na língua indígena). 

“Não tem esse negócio de ‘é meu’. O cachimbo é de todos, a erva mate é de todos e todos compartilham”, explica Tamikuã. 

A ida à casa de reza também é um ritual que não abrem mão, já que é ali que resgatam forças e energias para seguir. 

Antes de qualquer tomada de decisão, por exemplo, os indígenas rezam e pedem a Nhanderú para fazer suas escolhas. 

“É uma coisa que faz parte da comunidade, num é essa coisa da religião ser separada. Quando perguntam ‘vocês têm religião’, a gente diz ‘tem o nosso modo de vida’, porque faz parte, toda cultura é passada aos jovens e crianças independente de estar em uma escola”. 

A tradição é sentida também pelas aldeias de Parelheiros. Crianças, adolescentes, adultos e idosos se reúnem para o momento de espiritualidade. Para Marisa, embora tranquilos, agora é hora de se prevenir e de rezar. 

“A gente faz a nossa reza todas as noites pedindo para Nhanderú, usando nossos cachimbos. Através dele que a gente faz as nossas rezas, a gente pede muito pra Nhanderu fortalecer nossos parentes, toda  a comunidade indígena de todo o Brasil. A gente está rezando muito, pedindo muito a Nhanderu que isso se acalme, que a gente tem nossas crianças, a gente tem nossos idosos, que a gente precisa proteger”. 

“Estamos pedindo a Nhanderu que tudo se acalme”

Para além disso, os povos guarani mbya possuem diversos ritos e costumes que são compartilhados entre todos, como, por exemplo, o uso do petygua, um cachimbo sagrado usado para mentalizar Nhanderú (Deus na língua indígena). 

“Não tem esse negócio de ‘é meu’. O cachimbo é de todos, a erva mate é de todos e todos compartilham”, explica Tamikuã. 

A ida à casa de reza também é um ritual que não abrem mão, já que é ali que resgatam forças e energias para seguir. Antes de qualquer tomada de decisão, por exemplo, os indígenas rezam e pedem a Nhanderú para fazer suas escolhas. 

“É uma coisa que faz parte da comunidade, num é essa coisa da religião ser separada. Quando perguntam ‘vocês têm religião’, a gente diz ‘tem o nosso modo de vida’, porque faz parte, toda cultura é passada aos jovens e crianças independente de estar em uma escola”. 

A tradição é sentida também pelas aldeias de Parelheiros. Crianças, adolescentes, adultos e idosos se reúnem para o momento de espiritualidade. Para Marisa, embora tranquilos, agora é hora de se prevenir e de rezar. 

“A gente faz a nossa reza todas as noites pedindo para Nhanderú, usando nossos cachimbos. Através dele que a gente faz as nossas rezas, a gente pede muito pra Nhanderu fortalecer nossos parentes, toda  a comunidade indígena de todo o Brasil. A gente está rezando muito, pedindo muito a Nhanderu que isso se acalme, que a gente tem nossas crianças, a gente tem nossos idosos, que a gente precisa proteger”.

Desafios estruturais 

No Jaraguá, embora estejam seguindo as medidas sugeridas pelo Ministério da Saúde, como lavar as mãos, os desafios da aldeia são anteriores a isso. 

“Acontece que a gente não tem um saneamento básico de qualidade, isso afeta de alguma forma e a gente fica preocupado”, pontua Tamikuã. 

Mesmo tomando todos esses cuidados, algumas das aldeias ficam dentro da cidade, atravessadas pela Estrada Turística e também da Rodovia Anhanguera, na região norte de SP, sendo uma via de acesso para muita gente ir e vir para o centro da cidade. 

“É passagem, a gente tem um pouco de receio, não por sair da comunidade, mas sim das pessoas que estão passando ali por perto e que podem transferir de certo modo, porque as comunidades ficam muito próximas da pista”. 

Por isso, o modo de sobrevivência tem dependido das doações de cestas básicas e das próprias plantações. 

O mesmo se repete em Parelheiros. As cestas básicas recebidas são divididas pelas próprias mulheres, líderes locais. 

“A gente está dividindo essas doações para oito aldeias, com os outros parentes que estão mais afastados. Na semana passada recebemos 300 cestas básicas”, conta Marisa. 

Dias antes da quarentena iniciar em São Paulo, a escola que existe em uma das aldeias recebeu um montante de merenda para as crianças. Com o cancelamento das aulas, a comida continua sendo distribuída aos pequenos na Casa de Liderança Comunitária. 

“Estamos aproveitando essas merendas para fazer a comida comunitária pra todo mundo, desde os idosos, crianças, adolescentes. Todo mundo. É um mutirão todos os dias. A comunidade é grande, então a gente está se revezando”, diz Marisa. 

Acesso à saúde e auxílio emergencial 

Dentro de uma das aldeias do Jaraguá há uma UBS (Unidade Básica de Saúde) de atendimento exclusivo aos moradores e moradoras. Segundo a liderança, o espaço ainda é muito precário e precisa ser ampliado para atender todas as pessoas.

“Mas ainda é muito básico, não tem o atendimento emergencial que a nossa comunidade necessita, porque o índice de mortalidade infantil é um dos maiores. Mas tem tido um atendimento, mesmo que seja limitado”, diz Tamikuã. 

Com a impossibilidade de sair da aldeia e vender artesanatos, o auxílio emergencial aprovado em 7 de abril se faz importante. Mas um desafio anterior ao acesso à renda pode ser um empecilho aos indígenas. Nem todo mundo possui celular na aldeia e nem todos falam português. 

“Esse auxílio emergencial, às vezes, é fácil para quem está na cidade. Mas para quem não tem conhecimento dessa tecnologia ou até mesmo tem, é difícil. Fizemos cadastro, mas não tivemos uma resposta imediata, porque nem todos estão inscritos no Bolsa Família”, diz a artesã. 

“Nem todo mundo tem celular, nem todo mundo tem internet. A gente não tem como divulgar a nossa arte para conseguir dinheiro para poder comprar pacotes de dados, fica bem difícil”, diz. 

Nós não comercializamos nossa Mãe Terra 

Para Tamikuã, a pandemia da Covid-19 é um sinal da natureza diante do maltrato constante do ser humano. “ A relação que eu vejo da Covid-19 é que a sociedade gananciosa já vem degradando, já vem utilizando a terra como compra e venda. 

Nós não comercializamos a nossa mãe terra. Já podemos perceber como há muito tempo, antes de 1500 e até hoje, a sociedade que se diz civilizada trata a mãe dela, que é a própria terra”. 

“Nós, os povos indígenas conseguimos viver nesse ambiente e respeitamos a natureza e a natureza também está junto de nós. Porque somos parte. Somos a Terra. Não que a Terra seja nossa, mas nós fazemos parte da nossa mãe, que é a nossa Mãe Terra, tudo que está na natureza é parte nossa. Cada árvore é considerada nossa irmã. Cada animal é como da nossa família. Nós não dividimos o que é natureza, ou mata, como é chamado, de Meio Ambiente, dividindo a gente, porque pra gente não tem esse meio. Nós somos a própria natureza”. 

Para Tamikuã, há uma contradição muito grande entre os homens que se dizem cristãos e acreditam, segundo a bíblia, que que Deus fez o homem da terra, mas não respeitam a Mãe Natureza. 

Os povos indígenas consideram o país como um grande território sagrado. Brasil é só um apelido, pois o nome é Pindorama, assim como a América Latina se chama Abbayala.

Para além da simbologia que a língua carrega, são os povos indígenas que denunciam a forma como “essa dita sociedade civilizada, como cita Tamikuã, está negociando a própria terra. 

“A mãe terra está gritando. Gritando muito forte e não vem gritando desde agora, mas de muito antes”

“Com essa ganância avassaladora da civilização dita civilizada, a humanidade vem degradando e não respeitando o aquecimento global, ao qual muitos acham que é uma bobagem. Acham que estão guardando dinheiro pra ir pra outro planeta. Então, isso [Covid-19] é uma resposta da degradação e destruição”, afirma. 

“A mãe terra está gritando. Gritando muito forte e não vem gritando desde agora, mas de muito antes. A gente tem que se atentar ao que a Mãe Terra está pedindo para nós. Não degradar. O que vai acabar a humanidade, a humanidade vai acabar sobre isso, não importa quem tem dinheiro, quem não tem, vai acabar nessas várias doenças, por conta da ganância mesmo, de tratar a terra como comércio, como lucro”, conclui.