De copo em copo: o alcoolismo também é papo de mulher

No Dia Internacional de Combate às Drogas, é comum encontrar matérias e campanhas sobre os males causados por diversas substâncias, mas raramente se fala sobre o consumo de bebidas alcoólicas.

26|06|2023

- Alterado em 27|06|2023

Por Larissa Darc

Quando falamos de alguém que tem problemas com o álcool, logo pensam no homem de meia-idade sentado à mesa de um bar às 8h, tomando uma dose de cachaça pura em um copo americano.

A figura do bêbado é frequentemente associada àquele que não sabe se comportar. Que grita. Faz escândalo. Constrange. Agride. Se descontrola. Nunca param para pensar que aquela pessoa que fica bem após alguns copos já tenha desenvolvido tolerância ao álcool e praticado o suficiente para cumprir com a etiqueta social.

Ninguém lembra da publicitária descolada que abre uma long neck no meio do expediente para ajudar na criatividade, ou da advogada elegante que bebe vinho todas as noites ao chegar em casa. Quem ostenta uma taça de um drinque colorido está apenas experimentando mais uma criação gastronômica.

Apesar de ser impensável comercializar alimentos feitos à base de cocaína em restaurantes, a droga mais consumida do mundo é combinada em diferentes taças com frutas, aromas, especiarias e sabores.

Nas periferias, onde as opções de lazer são limitadas, adegas se espalham pelas esquinas vendendo líquidos coloridos a preço baixo, disputando espaço com os botecos que antes só competiam com as igrejas.

Apesar do imaginário coletivo associar o consumo de álcool a uma imagem de “cabra macho”, em 2020, cerca de duas mulheres morreram a cada hora devido ao uso nocivo do álcool. Ao todo, 15.490 mulheres brasileiras perderam a vida naquele ano por razões relacionadas ao álcool, segundo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).

No Dia Internacional de Combate às Drogas, é comum encontrar matérias e campanhas sobre os males causados por diversas substâncias, mas raramente se fala sobre o consumo de bebidas alcoólicas.

Afinal, o álcool é a única droga para a qual é preciso justificar o motivo que não se deseja consumi-la.

A droga vendida na mesma prateleira que o arroz e feijão

Ao contrário de substâncias ilícitas, os recipientes cintilantes estão à disposição em mercados, bares e restaurantes. Qualquer pessoa maior de idade pode adquirir legalmente entorpecentes na quantidade e frequência que achar adequada.

Se você quiser literalmente “beber o seu salário”, não tem nenhuma lei, força ou barreira moral que o impeçam, exceto, é claro, o limite do saldo bancário. Talvez isso justifique a razão pela qual é tão difícil perceber um comportamento problemático antes que seja tarde demais.

Uma pessoa que bebe com frequência e não deixa de trabalhar, pagar as contas, cumprir com as obrigações e manter um temperamento aceitável dificilmente vai encontrar razões para pensar que tem um problema.

Um prato cheio para os transtornos alimentares

Álcool tem muitas calorias e a solução é compensar na alimentação e na academia. Por isso, não são raros os casos de alcoolismo associados a transtornos alimentares. Ainda existe uma incidência significativa de pessoas que passam a beber em maior quantidade após a realização de cirurgias bariátricas.

Uma pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP (Universidade de São Paulo) com 50 mulheres, entre 18 e 59 anos, que estavam em tratamento para transtornos alimentares em serviços de assistência do Estado de São Paulo, revelou que 38% delas apresentavam consumo problemático de bebida alcoólica e tinham uma alimentação de baixa qualidade, com pouca ingestão de vegetais e frutas.

Esse percentual é quase três vezes maior do que a média registrada entre as mulheres brasileiras na época. O levantamento indicou que a bulimia nervosa e a compulsão alimentar ocorrem simultaneamente com transtornos relacionados ao consumo de álcool.

Não é falta de caráter

Historicamente, o estigma e o julgamento moral têm impedido que as pessoas identifiquem o problema e busquem ajuda. Ninguém quer ser rotulado como alguém “sem vergonha na cara” que continua bebendo mesmo sabendo que a bebida está fazendo mal.

Além das questões psicológicas, sociais e emocionais que podem levar ao consumo de substâncias que alteram a consciência, como o álcool, o vício é uma condição real que ocorre por meio de mudanças significativas na forma como o cérebro funciona. Ao contrário das decisões lógicas, a escolha de tomar mais um gole é processada por uma parte primitiva e inconsciente da mente.

A dopamina é um dos neurotransmissores produzidos pelo cérebro, responsável pela liberação de sensações prazerosas quando realizamos tarefas essenciais para a sobrevivência e reprodução, como comer, fazer sexo ou praticar atividades físicas.

Algumas drogas, como álcool, cocaína e opióides, geram uma grande quantidade dessa reação. No entanto, a estimulação contínua de dopamina dessensibiliza os sistemas de recompensa, fazendo com que eles deixem de responder aos estímulos cotidianos. Quando isso acontece, a única coisa que se torna gratificante é a droga.

Mesmo que uma pessoa com transtorno pelo uso de álcool escolha conscientemente não beber, o corpo continuará pedindo álcool, como se essa fosse uma necessidade fisiológica essencial para a sobrevivência.

Estou de saideira, onde fecho a conta?

O transtorno por uso de álcool pode se manifestar de diferentes formas, no entanto, em diversos casos, é dividido entre os “bebedores diários” e os “bebedores compulsivos”.

O primeiro grupo bebe praticamente todos os dias e não consegue passar um longo período sem ir ao primeiro gole. Já a outra parte é composta por quem consome sazonalmente, como aos finais de semana, e quando bebe a primeira cerveja não consegue mais parar até apagar.

Se você se identifica com um desses cenários ou conhece alguém nessa situação, saiba que isso é mais comum do que parece, e existem diferentes abordagens para lidar com o consumo excessivo de álcool.

Médicos e sites especializados recomendam fortemente a cessação completa do uso. Existem grupos conhecidos, como as irmandades, clínicas de reabilitação e os Alcoólicos Anônimos, que defendem a abstinência total como tratamento mais comum ao longo das últimas oito décadas.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) Álcool e Drogas são instituições do sistema público de saúde voltadas para o cuidado de pessoas com dependência química. No entanto, enfrentam diversas dificuldades para oferecer atendimento médico, o que pode levar meses até que o paciente consiga uma receita de medicamentos indicados para tratar a abstinência.

Felizmente, organizações da sociedade civil estão disponíveis para auxiliar pessoas que precisam de suporte ao optar pelo encerramento do uso de álcool. A Associação Alcoolismo Feminino é uma delas, oferecendo reuniões virtuais gratuitas e parcerias com profissionais de saúde especializados no tratamento da dependência química, que atendem a preços reduzidos.

A medicina é uma grande aliada do tratamento. As pessoas que optam pela abstinência podem (e devem) utilizar medicamentos que aliviam os sintomas da fissura, tornando o processo seguro e menos doloroso.

Em alguns países ao redor do mundo, como os que compõem o Reino Unido, uma abordagem conhecida como um meio de redução de danos tem ganhado adeptos e ajudado a tratar a questão física do vício.

Na extinção farmacológica, a pessoa toma um comprimido bloqueador de receptor de opióide uma hora antes de beber (o mais famoso é a naltrexona, substância liberada pela Anvisa). O medicamento inibe as sensações prazerosas do álcool, diminuindo a vontade de beber até que o indivíduo não sinta mais desejo físico pela bebida. Esse tratamento é longo e requer receita médica para ser realizado.

Independentemente da forma escolhida para encerrar a conta do bar, é importante saber que você não está sozinho. Não é necessário estar no bar às 8h tomando cachaça pura para perceber que já é hora de parar de beber.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.