Eu, feminista, (con)vivo com um homem machista
Eu vivo com um homem machista. Meu pai. É um homem idoso, apesar de bem ativo, e foi educado em um tempo em que homens não faziam NUNCA os serviços domésticos.
Por Lívia Lima
10|05|2017
Alterado em 10|05|2017
Segunda para terça-feira. São 0h14 da noite e eu acabei de lavar a louça. E não é uma louça de um copo de leite e um prato de quem, no auge de sua imaturidade de 30 anos, moraria sozinho. Lavei pratos, garfos, copos, que alimentaram, no mínimo, 4 pessoas. Esfreguei a frigideira que estava encardida – sabe arear panelas? Uma tarefa bem cansativa e desgastante – além de lavar uma panela de pressão. Esse é o preço para que alguém cozinhe para mim quando eu chego tarde.
Voltei do último dia de um curso de jornalismo cultural, com diversas ideias e orientações para escrita criativa, e sobre como o tédio é importante para a produção de textos mais inteligentes e inovadores. Mas eu não tenho tempo para ficar entediada. Estou lavando louças à meia noite.
Créditos: Eurritimia (Flickr/Creative Commons)
Toda essa introdução caótica – e um pouco mal humorada – é pra dizer que eu vivo com um homem machista. Meu pai. Ele vai fazer 66 anos neste fim de semana. É um homem idoso, apesar de bem ativo, e foi educado em um tempo em que homens não faziam NUNCA os serviços domésticos. Além disso, é do signo de Touro, e isso significa que ele tem muita dificuldade com mudanças e é muito teimoso (sou a louca dos signos, sim!).
Entre ler sobre horóscopo e discutir novos formatos de jornalismo, eu posso afirmar hoje que sou uma mulher feminista. E isso tem sido uma construção, algo que nunca foi tão óbvio quanto parece. Me considero feminista porque sou uma das fundadoras coletivo Nós, mulheres da periferia e por meio dele reflito e compartilho informações sobre os problemas derivados das desigualdades de gênero.
Não sou uma feminista que, necessariamente, cumpre os estereótipos de participar de marchas, ou de ser acadêmica e discutir as teorias do campo (e estereótipos são sempre problemáticos), mas acredito que sendo eu mesma, enquanto dona de casa, profissional, companheira e amiga, posso influenciar discursos e narrativas, defendendo que nós mulheres não precisamos aceitar aquilo que a sociedade nos impõe.
Mas acontece que eu convivo com meu pai machista. E ele é um homem idoso. E, muitas vezes, nosso feminismo tem limites.
Desde pequena eu me indignava quando meu pai não enxugava o banheiro após o banho, e minha mãe pedia para que nós, eu e minha irmã, fossemos enxugá-lo. Mas, mesmo resmungando, éramos nós que tínhamos que fazer o trabalho que ele deixava para nós, meninas, crianças.
Não posso nominar anacronicamente que essa minha atitude era feminista. Mas eu sempre me incomodei com os privilégios do meu pai em casa. Mas ele era o grande provedor da nossa família, e cada um devia cumprir seu papel em nosso lar.
Já faz onze meses que minha mãe faleceu, e, desde então, a maioria das atividades domésticas da casa são de minha responsabilidade. Hoje eu vejo melhor o quanto eu também, exercendo meu papel de filha, estudante, profissional que trabalha fora, de jovem que viaja, sai com os amigos no fim de semana, também tinha privilégios em relação a ela (mas esse é assunto para outro texto, talvez).
Quando cheguei do curso, meu pai, solidário à minha tarefa, ainda comentou: “Eu ia lavar a louça, mas fiquei com preguiça. Comecei a assistir ‘Bem amigos’…”. “Tudo bem, eu lavo”, respondi, como em todas as outras vezes. Ele sempre diz que ia lavar, mas sempre deixa a tarefa para mim.
Quando falamos de machismo, muitos homens mais jovens costumam dizer que não consideram que o sejam, reconhecem as desigualdades, mas alegam que apoiam as nossas causas, mas a verdade é que eles não têm ideia do todo do qual eles fazem parte. E a culpa não é (toda) deles, é de toda a estrutura de nossa sociedade patriarcal.
Quando meu pai ignora ou então adia a ação de lavar os pratos, inconscientemente ele reafirma que aquela não é sua função dentro de casa. Mesmo aposentado, demonstrando muitas vezes estar entediado da rotina que anda levando, mesmo assim nem cogita que poderia me ajudar mais nas tarefas domésticas.
E para ele não importa se eu trabalho oito horas por dia, e passo quase quatro horas no transporte público. Se tenho duas graduações, um mestrado, falo línguas. A louça é minha, porque assim é que sempre foram as coisas.
Deveria queimar sutiãs, quebrar os copos? Revolução nem sempre é possível. Entender as limitações do meu pai, compreender o contexto de sua educação e que, sendo idoso (e taurino), é muito difícil exigir novas aprendizagens dele, além de saber que nós dois ainda estamos nos adaptando à dor e a todas as perdas que nosso luto nos trouxe, tem sido meu exercício de empatia (e paciência). E sem isso, não se chega a lugar nenhum, seja qual for a luta.
Tenho esperança no futuro, nas novas relações, em uma educação mais igualitária de nossas crianças, mas em relação ao meu pai, por todo o amor e gratidão que sinto, me reservo a ser livre para escolher lavar os pratos.