Com novo governo, antiofídico pode alcançar crianças indígenas isoladas

Enquanto pesquisadores da Fiocruz recomendam que a vítima de picada de cobra receba o soro em até duas horas, há registros de crianças em aldeias indígenas isoladas que levam até oito horas para chegar ao serviço de saúde mais próximo.

31|05|2023

- Alterado em 31|05|2023

Por Adriana Amâncio

Chegamos ao segundo capítulo da nossa jornada que descortina o impacto de amputações em crianças indígenas vítimas de picada de cobra e sem acesso rápido ao soro antiofídico. Hoje, falamos sobre qual é a melhor alternativa para reduzir o tempo de socorro às vítimas.

Além disso, você vai descobrir o que institutos de pesquisas estão fazendo para encontrar soluções que reduzam os riscos de amputações e de morte entre as vítimas de acidentes ofídicos.

Lembrando que na primeira matéria, você conheceu a história de Silas Maquiles, jovem indígena Sateré Mawé, que, aos nove anos, teve a perna amputada por causa de uma picada de Surucucu Pico de Jaca, espécie mais venenosa da floresta amazônica. Ele reflete bem o que é viver na floresta e não ter acesso ao soro antiofídico.


A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera os acidentes com picada de cobra doença negligenciada. Essa classificação deve-se ao alto número de ocorrências no mundo, que leva de 80 mil a 139 mil mortes no ano e 400 mil casos de morbimortalidade. Os acidentes ofídicos são mais comuns em regiões rurais, de floresta, onde as pessoas costumam ter contato com áreas que abrigam cobras e outros animais peçonhentos.

Muitas dessas áreas estão localizadas em pontos isolados da floresta amazônica, onde não há acesso à energia elétrica. O soro antiofídico, que é produzido à base de sangue de cavalo refinado, ou seja, anticorpos retirados do sangue do cavalo, que são processados e colocados na ampola, precisa ser conservado em baixas temperaturas. Por isso, é necessário ter uma rede de energia elétrica e equipamento de refrigeração.

Contraditoriamente, o soro antiofídico não está presente nas áreas onde mais ocorrem picadas de cobra. Mas o fato é que o tempo faz toda a diferença no destino de uma criança indígena sofre um acidente ofídico no meio da floresta amazônica. A média de tempo recomendada para que a vítima receba o antídoto é de até duas horas. Quanto mais esse tempo é extrapolado, mais a ação do veneno se agrava levando a lesões irreversíveis.

Lembra da história do Silas Sateré que abriu esta série?. O jovem indígena teve a perna amputada por ter demorado a receber o soro. Ele, que mora no Território Indígena Andirá Marau, levou três horas para chegar ao posto mais próximo, onde, infelizmente, não tinha soro antiofídico. Assim, ele teve que percorrer mais cinco horas de viagem até outra unidade de saúde indígena, para, finalmente, receber o antídoto. Infelizmente, ele não chegou a tempo de evitar a amputação da sua perna direita.

Se no primeiro posto, Silas já tivesse recebido atendimento, ainda haveria chance de evitar a amputação. Para o professor e pesquisador de veneno, há 20 anos, na Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, Thomaz Rocha e Silva, a solução para evitar as amputações é trazer o soro para o mais perto possível das vítimas. “Hoje, a solução para reduzir esse risco de amputação e outras consequências graves é oferecer o soro, junto com estrutura para habilitação e profissionais capacitados, em qualquer unidade de saúde mais próxima, independente de ser da saúde indígena”, afirma.

Ao contrário do que muitos defendem, Thomaz explica que o soro antiofídico liofilizado, ou seja, o mesmo soro feito de anticorpos de cavalo, porém oferecido em pó, não seria uma alternativa para solucionar as populações indígenas isoladas. “O soro são anticorpos retirados do sangue do cavalo, processados e colocados na ampola. Justamente por serem anticorpos de cavalo, eles podem gerar uma reação alérgica violentíssima e até fatal. O soro liofilizado, ou seja, seco, possui os mesmos riscos de efeitos colaterais. Por isso, ele só pode ser administrado no hospital”, explica.

Em nota, o Instituto Butantã reforça que a administração do soro liofilizado requer equipe especializada para fazer o diagnóstico da lesão e aplicar o tipo de soro adequado. “Este [o profissional] deve saber qual o tipo de soro indicado, qual a quantidade (número de frascos) que o paciente deve receber de acordo com a gravidade do envenenamento, a forma de administração (por via intravenosa), e como tratar uma eventual reação alérgica ao antiveneno”, explica.

Mesmo na forma em pó, o soro antiofídico depende de uma estrutura de profissionais para ser administrado. Diante disso, ainda de acordo com a nota, o Butantã defende a ampliação da rede de atendimento aos acidentes ofídicos como a melhor solução. “O Butantan apoia a estratégia de aumentar a cobertura da rede de frio do Ministério da Saúde em diferentes regiões do país, através da melhoria no fornecimento de energia elétrica e uso de refrigeradores movidos a energia fotovoltaica”, diz outro trecho do texto.

Momento oportuno

Com o novo governo federal, pela primeira vez, o Brasil possui um Ministério dos Povos Indígenas, comandado pela ministra Sônia Guajajara, eleita deputada Federal pelo PSOL do Maranhão. Diferente da realidade vivenciada nos últimos quatro anos, em que militares foram colocados para dirigir a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), mesmo sem experiência, hoje, temos um indígena, advogado, ativista e liderança política da causa indigenista, Ricardo Weibe Tapeba.

À frente da Fundação Nacional do Índio (Funai) está Joênia Wapichana, eleita deputada Federal pela Rede Sustentabilidade no estado de Roraima. Instituições essenciais para os direitos indígenas, ocupadas por indígenas, algo que nos leva a reconhecer este como sendo o momento mais oportuno para mobilizar recursos e políticas públicas para que o soro antiofídico chegue o mais perto possível das aldeias isoladas na floresta amazônica. A questão indígena ganha notoriedade, justamente porque esses povos são considerados os que mais têm chances de morrerem vítimas de picada de cobra, revela o boletim epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.

Esperança distante

Uma fagulha de esperança ainda está na fase inicial de pesquisa, fruto de uma parceria entre a Faculdade Israelitade Albert Einstein e o Instituto Butantã. Trata-se de uma caneta hipoalergênica para evitar a reação alérgica provocada pelo soro. “A ideia é que o paciente aplicando ela [ a caneta hipoalergênica] no local da picada, tenha menos problemas até chegar ao hospital. A gente quer diminuir as sequelas e mortalidade por conta do tempo que a pessoa leva até chegar ao hospital”, explica.

Thomaz avalia que para a caneta chegar ao usuário, será necessário cumprir todas as etapas de produção. “A nossa caneta está nos estágios iniciais, nós estamos fazendo os testes em laboratório mesmo, pois não adianta nada se a medicação que a gente quer usar, neutralizar a ação do soro. Eu vejo que seria, no mínimo, três anos para tê-la pronta, se funcionar. Os primeiros testes em laboratório devem encerrar em 18 meses. Depois vem o protótipo, em seguida, os testes de seres humanos”, finaliza.

A nossa reportagem fez contato com a assessoria de comunicação do Ministério da Saúde, pedindo informações sobre as possíveis soluções para reestruturar a rede de atendimento para levar o soro antiofídico mais para perto das aldeias isoladas. Também buscamos respostas aos problemas apontados pelas fontes na reportagem anterior, referentes à proibição ao uso de preparos medicinais da cultura ancestral indígena e ao desrespeito à decisão das famílias dos pacientes vítimas de acidentes ofídicos por problemas de comunicação. Até o fechamento desta coluna, não obtivemos resposta do órgão.

Jornalista formada pela Universidade Joaquim Nabuco (PE) com 25 anos de experiência em assessoria de comunicação e reportagem nas áreas de direitos humanos, gênero e meio ambiente. É repórter de Inclusão e Diversidade no Colabora – jornalismo sustentável. Já recebeu o Prêmio Sassá de Direitos Humanos, além de ser premiada por As Amazonas, Abraji e pela Embaixada dos Estados Unidos com o podcast “Cidadãs das Águas”.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.