Chuvas em PE: coletivos liderados por mulheres ajudam comunidades

Mulheres líderes de associações em áreas periféricas de Pernambuco se organizam para amparar as vítimas das enchentes na região.

Por Mariana Oliveira

07|06|2022

Alterado em 08|06|2022

A 2,5 km da praia mais famosa de Recife (PE), Boa Viagem, está Jaboatão dos Guararapes, uma das regiões que vem sendo assolada pelas fortes chuvas no estado desde o dia 23 de maio.

As mudanças climáticas vêm se intensificando a cada dia, isso resulta em tempestades mais severas, grandes secas e outros efeitos. Quem quem mais sofre sempre são os mesmos, tem nome e rosto: moradores das periferias e em situações de vulnerabilidade. Só este ano, ocorrerem outros  três desastres intensificados pelas chuvas em diferentes estados no país: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, totalizando mais de 400 vidas perdidas.

Em Pernambuco, a primeira morte registrada foi em 25 de maio, na cidade de Olinda. Até o dia 3 de junho, durante o fechamento desta matéria, foram contabilizadas mais de 128 mortes e 9.609 de desabrigados.

Na ausência de amparo dos órgãos governamentais, coletivos e associações locais, além dos próprios moradores, se unem para auxiliar os desabrigados. Como é o caso de Flora Rodrigues, 18, uma das coordenadoras da Rede Tumulto, que oferece amparo às famílias vítimas das enchentes em Jaboatão dos Guararapes.

“Era uma tragédia anunciada justamente por conta da negligência desse governo. No meio da noite, começou a chover um pouco, depois até parou, mas aí veio a chuva forte e depois tudo o que aconteceu”. Eu vivo em uma vila, a rua onde eu moro teve um grande volume de chuva, mas não encheu nenhuma casa. Minha casa também não foi atingida. Na região, quem mais foi atingido estava no final do bairro. Lá que as casas encheram e perderam as coisas”.

Ao Nós, mulheres da periferia, a jovem disse que nunca viveu uma situação igual a essa. “Meu pai passou por uma enchente assim, se não estou enganada foi em 1975”.

A enchente que Flora relata aconteceu em 1975, quando o Rio Capibaribe e outros canais transbordaram. 80% do território ficou alagado e 107 pessoas morreram. Na época, o Governo de Pernambuco declarou estado de calamidade pública. O município do Recife ficou praticamente isolado e sem energia elétrica por dois dias.

“O governo está oferecendo 200 reais para as famílias deixarem o lugar, mas o Recife tem o aluguel mais caro da região, o valor é impensável para sobrevivência dessas famílias.”De acordo com o índice FipeZap, em abril o aluguel no Recife foi o terceiro mais caro do país, ficando atrás de Barueri e São Paulo, ambos no Estado de São Paulo.

Flora denuncia o descaso e negligência do governo atual, atualmente sob a gestão de Paulo Câmara (PSB). “Tem lugares que a Prefeitura e a Defesa Civil ainda nem chegaram”. Dessa forma a mobilização do coletivo e voluntários é importante e necessária para receber e distribuir as doações. “Tudo está com urgência, precisam principalmente de colchões. Aqui a gente prioriza as mulheres e crianças”. Também acrescenta outra preocupação: a gripe. Os moradores que perderam ou não podem retornar para suas casas, estão sendo alocadas em quadras e escolas que disponibilizam seus espaços. Porém, a proximidade com o chão frio na hora de dormir só contribui para o estado de vulnerabilidade em que estão.

Finaliza seu desabafo chamando atenção de quem está de fora.

“É importante que pessoas do eixo de fora do nordeste, principalmente do sul e sudeste, nos deem voz, porque a gente é muito negligenciado nessa região e as pessoas têm dificuldade em ajudar a gente. É importante vocês conhecerem e ajudarem nossa comunidade”.

Ceça Santos, 58, é diretora da Associação das Mulheres Guerreiras de Camaragibe e passou três vezes por situação de enchente em menos de três anos. A primeira ocorreu em 2019 e relembrar do vivido sempre a deixa emocionada. Embora exista desde 2008, a Associação foi beneficiada com um espaço físico para executar as atividades na comunidade Aldeia de Baixo, em Camaragibe, em 2013. “Quando eu vi a Associação antes, era uma parede com uma porta estreitinha, sem janela, sem nada. Sem teto. A gente foi construindo e ficou, assim, linda. Um amor. As mulheres sempre unidas, muitas mulheres para realizar os serviços, do empoderamento, da valorização. E depois você vê tudo no chão. Dez anos de construção, de luta, no chão.”.

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Associação Mulheres Guerreiras de Camaragibe antes da enchente

©Ceça Santos/Arquivo Pesspal

A comunidade fica à beira de um rio e o espaço físico foi construído por meio de doações. Decorado, pintado e dividido em setores, um sonho estava saindo do papel, até que em 2019, houve uma cheia no rio. “A gente chegou lá a geladeira estava em um lugar, o fogão em outro, cadeira tinha caído, mas não destruiu tanto. Essa foi a primeira situação que a gente viveu. Aí a gente continuou no local. Arrumamos tudinho, fizemos melhorias, colocamos forro de PVC na casa toda. Ficou linda a associação. Quando foi em março de 2022, aí teve a cheia. Dessa vez, realmente foi muito complicado. Uma parede todinha caiu, o teto todinho caiu. Com a queda da parede, a água entrou com força e saiu arrastando tudo. “Choveu, eu já fico pensando que a gente está lá ainda”. A água chegou a mais de um metro de altura, móveis foram arrastados e levados pela correnteza. Todos os moradores que sofreram em 2019 e em março deste ano, revivem tudo novamente.

“Não houve desocupação, todos permaneceram no mesmo local e sofreram tudo de novo, com menos proporção, porque em março deu quase dois metros de água e agora não subiu tanto. (…) Infelizmente [os moradores] não têm para onde ir, não temos política habitacional no nosso país. E acabou, passou a cheia, secou, as pessoas tem que voltar. Esperar a próxima tragédia”.

“O povo que cuida do povo”

O que se vê em Recife e em outras tragédias ao longo dos últimos anos são consequências do racismo ambiental ao vivermos sequências de omissões. É o que afirma Terezinha Filha, 53, integrante da Ação Comunitária Caranguejo Uçá, na Comunidade Ilha de Deus, próximo à praia turística de Pina, no Recife. A comunidade não sofre com enchentes devido a diversos enfrentamentos antigos e luta por direitos humanos, o que resultou em um processo de urbanização que elevou o nível da comunidade em relação ao mar.

Terezinha ainda conta que mesmo mesmo não sofrendo mais de modo direto com enchentes, Caranguejo Uçá e os moradores das regiões vizinhas se ajudam. “Psicólogos se disponibilizam para atender as pessoas com acompanhamento psicológico.

É a própria comunidade que vai lá, pega uma pá, pega uma enxada. Tira o barro, tira a areia que caiu”,

Ela reforça que uma tragédia nesta proporção aconteceria a qualquer momento. “Dessa vez a calamidade foi maior, mas o contexto de alagamento são situações urgentes e deixa evidente a desigualdade e a falta de compromisso das gestões. Todo mundo já sabe que é uma situação de risco, sobretudo quando a gente tem ainda mais as alterações climáticas incidindo na vida das pessoas e nos ecossistemas.

Já se sabia que isso iria acontecer, mas como é o preto, pobre que está nesses lugares, que ocupa esses espaços de riscos, então não há uma política preventiva ou um desenvolvimento da cidade pensado de forma a trazer qualidade e a garantia de direito para essas pessoas.”

No dia 30 de maio, o atual presidente da República, Jair Bolsonaro (PL) sobrevoou a região e realizou uma coletiva de imprensa. Na mesma data, em entrevista à Band,  afirmou que “no meu entender poderia ser evitado sim. Em grande parte nós somos responsáveis, os políticos, mas a população poderia colaborar também evitando, nós sabemos da dificuldade, de fazer sua residência em locais que é sabidamente provável, em havendo um excesso de precipitação, a tragédia se fazer presente”.

Diante desta declaração, Terezinha rebate. “Quando o presidente diz isso ele só reafirma esse projeto político genocida, essa necropolítica que tem exterminado as pessoas”.

“As pessoas não vão construir as casas em áreas de risco porque elas acham massa. Onde é que vão construir?. Com certeza, ninguém gostaria de estar com uma casa ali em uma área que a qualquer hora pode cair.”

Até o momento, o número de desabrigados é de 9.609 pessoas, alocados em 126 instituições. Para os próximos dias, a Agência Clima Tempo prevê 80% de chance de chuva.

Terezinha crítica realocação das verbas para festas de São João, o que após dois anos em pausa, movimentaria a economia local. No último dia 30, o prefeito do Recife, João Campos (PSB), anunciou a realocação de R$15 milhões destinados para as festas, para as ações de enfrentamento às chuvas.

Conforme a Lei Orçamentária Anual do município, para 2022 foram disponibilizados R$980 milhões de verba para para urbanização de áreas de risco, porém apenas R$164,6 milhões foram aplicados. “É um quadro total de calamidade, mas de falta de compromisso, de comprometimento do Estado, das gestões, a nível Federal, Estadual, Municipal”.

Na última sexta-feira (3), o corpo de Mércia Josefa do Nascimento, 43, última desaparecida havia sido soterrada em um deslizamento na comunidade em Camaragibe, foi encontrado, com isso o número de mortos foi para 128. Ainda na sexta, voltou a chover forte provocando alagamentos na região.

Contribua com as Associações

Todas as associações da região estão trabalhando com ações para auxiliar as famílias que estão desabrigadas ou que perderam seus bens e parentes, já que o suporte governamental está distante da população. Os itens mais necessários são colchões, fralda descartável para criança, lençol, toalha de banho, alimento de preferência já prontos, pois mesmo distribuindo cestas básicas, não há como cozinhar. Confira nos links abaixo como contribuir.

  • Rede Tumulto:
    PIX: redetumulto@gmail.com
  • Mulheres Guerreiras de Camaragibe
    Rua Pio XII, nº 800. Bairro Novo. Camaragibe – PE (Todos os dias das 9h – 17h)
    (81) 996546716 (Falar com Ceça Santos)
  • Ação Comunitária Caranguejo Uçá
    PIX: 497.960.384 – 04