Cartas sobre Carolina: contar histórias das mulheres das periferias importa
Em 2015, o coletivo Nós, mulheres da periferia realizou uma série de oficinas em associações e escolas com mulheres de vários bairros sobre a imagem da mulher da periferia na mídia e como gostaríamos de ser retratada. Uma das participantes foi a dona Carolina, moradora da Jova Rural, zona norte. Como resultado, criamos uma exposição denominada […]
Por Semayat S. Oliveira
22|06|2016
Alterado em 22|06|2016
Em 2015, o coletivo Nós, mulheres da periferia realizou uma série de oficinas em associações e escolas com mulheres de vários bairros sobre a imagem da mulher da periferia na mídia e como gostaríamos de ser retratada. Uma das participantes foi a dona Carolina, moradora da Jova Rural, zona norte.
Sentada na cadeira de sua casa, na zona norte de São Paulo
Como resultado, criamos uma exposição denominada QUEM SOMOS [POR NÓS], exibida no Centro Cultural da Juventude, na Vila Cachoeirinha, também zona norte de São Paulo. Na mostra, tratamos os discursos e falas das mulheres em estado de arte, incluindo a entrevista em vídeo com mais de 10 mulheres. Entre elas, Dona Carolina, que faleceu na última sexta-feira.
Colocamos aqui mensagens, chamadas de cartas, que algumas integrantes do coletivo escreveram ao saber da notícia, mas em resumo, o sentimento é o mesmo: ainda bem que a conhecemos e ainda bem que registramos sua história!
Dona Carolina, obrigada <3
Carta de Aline Kátia Melo, jornalista e integrante do Nós, mulheres da periferia
Numa oficina do Nós mulheres da periferia na Associação de Mulheres Amigas de Jova Rural, dona Carolina se levantou e contou como enfrentou uma situação de racismo num cinema em Piracicaba. E assim ela começou a despertar nossa atenção, fazendo com que a convidássemos para ser uma de nossas entrevistadas.
Fomos num final de semana na casa de Dona Carolina para entrevistá-la. No final, com todo carinho do mundo, ela fritou coxinhas para nós, que ela mesma tinha feito, depois de dividir conosco histórias dos seus mais de noventa anos de vida! Desde a perda da mãe na infância até a perda da filha única em sua velhice.
Mostrou o quarto de sua filha, Marta, e as coisas dela pela casa, que ela não conseguia sequer mexer. Marta morreu idosa antes de sua mãe, que ficou sozinha no mundo, pois já não sabia de irmãos há muitos anos.
Na última vez que a encontrei dona Carolina, já que moro no mesmo bairro, ela estava triste e chorando de saudades da Marta. Quando me despedi, ela insistiu para eu levar um pão que ela havia comprado no mercado e me deu balas, para que eu entregasse para as meninas na estreia da exposição. Ela adoçou muitas vidas com sua simpatia, com seu exemplo de garra, com sua fé, com sua determinação... Vai com Deus dona Carolina!
Carta de Lívia Lima, jornalista e integrante do Nós, mulheres da periferia
Eu não estive na oficina que ela participou, mas depois fui até a sua casa, onde gravamos uma entrevista para os vídeos que fizeram parte da nossa exposição, que foi linda e maravilhosa, mas só nós sabemos como todo o processo não foi fácil.
Um dia antes de visitar Carolina eu passei o dia em gravações, me deslocando entre o Itaim Paulista e Guaianases (é zona leste, mas distantes entre si), em meio a diversos contratempos e dificuldades, com direito a gasolina do carro acabando enquanto eu me perdia e carro soltando fumaça na volta pra casa. Fiquei esgotada, mentalmente, sobretudo. Estava passando por um período de stress muito forte e tive até problemas de saúde no período.
Mas no domingo, não podia deixar de ir porque estava com os equipamentos para a gravação. Fiz meu pai se deslocar da zona leste para a norte e me levar. E então conheci dona Carolina. Ainda bem.
Quando a conheci, tive certeza de que tudo que estávamos fazendo era muito importante e necessário.
Precisamos que histórias como a dela sejam registradas, uma senhora negra de 93 anos, que passou por preconceitos, traições, foi doméstica, criou sozinha a filha, que faleceu antes dela. É preciso que todos conheçam as histórias que ela contava, com uma riqueza de detalhes tão específicos que a gente não sabia o que era realidade e o que era sua imaginação. Todos precisam ouvir suas canções e os relatos de quando recebia entidades no centro umbanda.
Falei de todo o contexto da gravação porque só eu sei o quanto eu estava emocionalmente abalada naquele dia. E quando fui me despedir, dona Carolina colocou a mão em mim e começou a fazer uma oração e me abençoou. Eu chorei porque ela sentiu que eu realmente precisava.
Sai de lá mais forte, com mais fé no sagrado que reside em cada experiência humana, agradecida à vida por aquele encontro, fortalecida para continuar nessa missão com as minhas irmãs de coletivo de tratar toda vida uma importância única .
Soube hoje que dona Carolina partiu semana passada. Fico feliz por tê -la conhecido e por de certa forma conseguirmos registrar sua memória para que mais pessoas se apaixonem por ela.
Carta de Jéssica Moreira, jornalista e integrante do coletivo Nós, mulheres da periferia
Sabe, eu aprendi a ler aos seis anos de idade, e, desde então, meu sonho é ser escritora. Agora, passados 19 anos, eu continuo carregando o mesmo sonho, mas com um viés muito claro: quero contar as histórias que ninguém conta, que ficam escondidas na voz doce, no olhar triste, de uma dona Carolina, que deixou o interior pra viver nas quebradas rurais dessa São Paulo.
Jéssica Moreira e Dona Carolina durante oficina de fotografia, em agosto de 2015
Era minha primeira oficina do projeto “Desconstruindo Estereótipos”, do Nós, mulheres da periferia, quando conheci os olhos da d. Carolina na Associação de Mulheres do Jova Rural. Mulher forte, 93 anos, falava firme e não levava racismo pra casa, não. Titubeou um monte para botar as mãos na câmera fotográfica. As amigas agradaram, agradaram, até que ela aceitou. Eu fui com cuidado, cuidado que teria com minha vó, ensiná-la a mexer.
Então, naquele encontro, ela disse, como quem tenta explicar o inexplicável: – eu tenho um monte de câmera na minha casa… mas não tenho coragem de pegá, não. “Mas por quê?”, perguntei, querendo encorajá -la. “Minha filha era fotógrafa, mexia em tudo isso… faz seis meses que ela morreu”.
Naquela hora eu descobri o que realmente era desconstruir. Não era a mídia, não era a imagem, era escuta… é disso que precisamos pra desconstruir e construir nossas histórias. Hoje, eu descubro, muito triste, que dona Carolina finalmente irá encontrar a fotógrafa que tanto sentia falta. Enquanto a gente fica aqui com seu canto, sua história.