Assédios, ministérios e a descredibilização da agenda progressista

Por que os escândalos são maiores nos ministérios progressistas?

22|10|2024

- Alterado em 22|10|2024

Por Karoline Miranda

No início de setembro de 2024, o movimento negro — e a esquerda como um todo — sofreu um golpe inesperado: foram divulgadas denúncias de assédio moral contra membros do Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania e de assédio sexual diretamente contra o ministro Silvio Almeida em pessoa. O que agrava — e pessoalmente, machuca — mais ainda é que a principal denunciante era outra ministra, dessa vez da pasta de Igualdade Racial: Anielle Franco, que também é uma mulher negra.

O acontecimento dividiu opiniões, mas, pior, dividiu militantes do movimento negro. Era tão absurdo que uma figura admirada como Silvio Almeida, visto como um intelectual e verdadeiro aliado na luta progressista e pelos nossos, fosse um assediador, que muita gente acabou descredibilizando Anielle. Ninguém nem lembrou que, pasmem!, ela também era uma aliada na luta antirracista.

Pouco tempo depois do choque, agora, no último 21 de outubro, fomos impactados com outro golpe: o Ministério das Mulheres, gerido pela feminista Cida Gonçalves, recebeu denúncias de assédio moral e racismo — e mais uma vez, a própria ministra era alvo de acusações. Dezessete pessoas confirmaram o relato de assédio moral, de acordo com o site Alma Preta, tendo a reportagem acesso a um áudio onde Cida teve falas problemáticas.

Ambas as denúncias foram um balde de água fria em nós, progressistas, que lutamos pela inclusão de mais mulheres, pretos e pretas nos espaços de poder e instituições. E, em menos de dois meses, dois dos principais pilares de nossa luta foram radicalmente afetados pela opinião pública.

Parece até orquestrado, né?

E, na verdade, talvez seja.

De acordo com notícia do jornal O Globo de 7 de setembro (três dias após o vazamento das denúncias contra Silvio Almeida), o Governo Federal recebeu 557 denúncias de assédio sexual (o equivalente a dois casos por dia) apenas entre janeiro e agosto de 2024. Os alvos? Controladoria Geral da União (CGU), órgão e repartições federais diversas e ministérios também.

Ainda segundo O Globo, a maior parte das denúncias está ligada ao Ministério da Saúde.

Vou repetir: a pasta com maior número de denúncias de assédio sexual é o Ministério da Saúde.

A grande questão é: por que isso não virou um escândalo?

E outras questões vem depois desta:

Por que, talvez, essa informação só esteja chegando a você por mim, agora, nesse exato minuto, enquanto você já estava cansada de saber, opinar e comentar no Instagram sobre o caso Silvio Almeida?

Por que o escândalo é muito maior e absurdo quando o crime parte de mulheres e pessoas pretas?

Por que a corrupção (porque, sim, isso é uma corrupção de valores e ideais da população) dos Ministérios de Direitos Humanos e das Mulheres merece ampla divulgação e o Ministério da Saúde, um órgão fundamental para qualquer país, fica nas sombras?

O que acontece para que haja tamanho silêncio sobre outras denúncias, de outros ministérios, órgãos públicos e a própria CGU?

A resposta para essa equação de muitas questões é, na verdade, uma velha conhecida: não é um acidente, é um projeto.

Atacar instituições caras à agenda progressista, de luta pelos direitos humanos, das mulheres e das pessoas pretas é funcional para uma lógica que lucra com o nosso sofrimento.

Afinal, quem melhor para descredibilizar uma agenda política de pautas feministas e antirracistas do que pessoas pretas e mulheres nos espaços de poder?

A ampla divulgação e escandalização desses eventos – em detrimento de uma noticiabilidade muito menor das denúncias de assédio em outros órgãos públicos – evidencia uma constante necessidade da lógica capitalista em enfraquecer nossas pautas.

É como enviar a mensagem de que, uma vez no poder, faremos pior do que as pessoas e valores que denunciamos. É uma arma na mão dos conservadores e um golpe na esperança dos progressistas. No fim, todos perdemos.

Meu objetivo não é, de nenhuma forma, “passar pano” para assediadores, sejam eles ou elas, pretos ou brancos. Por outro lado: convido você, leitora, à reflexão do que é ou não escândalo.

O escândalo é o assédio ou quem o comete? O absurdo a ser noticiado é o crime ou o ambiente em que ele acontece? E se é o ambiente, por que apenas os que são geridos por minorias sociais e defendem suas agendas políticas são pauta relevante nos noticiários?

Ademais, fica aqui o meu voto para você, progressista, que quer um mundo mais justo para mulheres e pessoas pretas: a luta ainda não acabou e, sim, ela vale a pena. Pessoas são individuais, mas a luta é coletiva. E um de nós falando não nos representa: queremos muitos de nós falando.

Que nenhum de nós sofra assédio nenhum – moral ou sexual. Que nenhum de nós receba o racismo como tratamento profissional.

Mas que nenhum de nós, também, seja o algoz-exemplo para descredibilizar a nossa própria luta.

Ninguém nos deu nada de graça. Por isso, não deixemos de lutar por causa de ninguém – nem por nossos supostos aliados.

Karoline Miranda Jornalista e historiadora, é mãe do Gael e da Pilar de Maria e autora responsável pelo Uma Mãe Feminista.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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