As veias abertas de minha cidade

As veias de minha cida.de* ainda permanecem abertas, à espera de serem cicatrizadas. São veias de metal correndo a todo tempo por entre um sangue pisado, sorvendo em água. As células de minha cida.de lutam a cada dia para sobreviver ao caos cancerígeno que as rodeiam. Os braços de minha cida.de já estão cansados de […]

Por Jéssica Moreira

05|07|2017

Alterado em 05|07|2017

As veias de minha cida.de* ainda permanecem abertas, à espera de serem cicatrizadas. São veias de metal correndo a todo tempo por entre um sangue pisado, sorvendo em água. As células de minha cida.de lutam a cada dia para sobreviver ao caos cancerígeno que as rodeiam. Os braços de minha cida.de já estão cansados de esperar que lhes deem uma mão.

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Perus | Créditos: Jéssica Moreira


As pernas de minha cida.de já não suportam mais o peso que carregam. A cabeça está a ponto de explodir, mas no peito um coração ainda bate; ainda bate. E bate correndo. Bate com medo, bate nos braços e pernas se esbarrando entre as vias. Bate apertado na veia de metal. Bate dolorido na Cracolândia. Bate desmantelado naquela solidão na multidão. Bate querendo falar. Bate apressadamente por entre ritmos dos pianos da Luz ou da Sé. Sé. Seu Sé. Bate intimo de tantos lugares. Bate sorrateiro.
Bate pedindo água e bate vendendo oito pilha um real. Bate na boca entreaberta às cinco da manhã. Bate. Bate. Eles me batem. Mas eu continuo batendo. Eles me matam. E, entre tantos socos, eu ainda bato. Meu coração ainda bate quando passo pelo Seu João e Dona Ipiranga. Ele ainda bate. Até a cida.de, um dia, parar de bater.
*CIDA – Prefixo latino de matar.
Jéssica Moreira é cofundadora do Nós, mulheres da periferia, moradora de Perus, escreve crônicas sobre seu dia a dia nos trens.