Amiga, avisa quando chegar?

A história da jovem mineira vítima de estupro no bairro Santo André, em Belo Horizonte, estarrece, dá raiva e mais medo.

03|08|2023

- Alterado em 03|08|2023

Por Jéssica Moreira

Na época da escola, minha mãe acordava às 5h para me levar ao ponto de ônibus. Depois, voltava sozinha. Na época da faculdade, ela levantava à 1h da manhã e ia me buscar sozinha no ponto. Para me proteger, colocava-se em perigo, enquanto meu pai continuava dormindo.

Embora tivesse um pai presente, era ela que se preocupava com a adolescente ou jovem adulta sozinha na rua. Por outro lado, ele acreditava que impulsionava minha autonomia: “tem que aprender a se virar sozinha!”. E ainda considerava os cuidados da mãe um excesso.

Ela sempre esteve e continua certa: nenhum dia é dia para nós, mulheres. Não há, literalmente, um minuto ou lugar de paz. Eu mesma achava meu medo um excesso, mas há razões para sentir. Infelizmente.

Algumas pessoas até hoje não entendem: “mas você está no seu bairro, não vão te roubar”, argumentam.

O que é uma falácia, porque já fui assaltada duas vezes. O meu medo é outro. O meu medo tem cara e corpo de homem. O assalto é horrível, mas o terror vai muito além: ser estuprada.

A história da jovem mineira vítima de estupro no bairro Santo André, em Belo Horizonte, estarrece, dá raiva e mais medo. Raiva por não nos sentirmos seguras em nenhum lugar e medo porque qualquer uma de nós poderia passar – ou já passou – por alguma das situações que ela experienciou.

Uma sucessão de erros masculinos culminaram, sim, no estupro desta mulher. A postagem de Luana Davico, nas redes sociais, resume:

“Uma mulher vulnerável. Um homem amigo. Um homem irmão. Um homem Aplicativo de Carro. Um homem que auxilia outro homem. Um homem estuprador”

Luana Davico, delegada de polícia

A jovem foi a um show no Mineirão. Ela bebeu, sim, algo completamente comum. Se minha amiga está alcoolizada, eu fico com ela, não a deixo ir sozinha, seja de carro ou de transporte público. Ponto final! Se minha irmã, prima ou sobrinha está chegando, fico atenta: ao portão, ao relógio… Minha mãe é um exemplo disso. Mesmo tomando medicamentos para dormir, ela checa o horário que vou chegar. Se sou motorista, passageira, ou simplesmente uma pessoa que está passando na rua, fico preocupada e me importo com outra pessoa desacordada em uma calçada. Jamais abandonaria alguém na calçada.

Quem cuida das mulheres?

O post da psicóloga e escritora Núbia Lima traz uma reflexão importante: “as mulheres cuidam das mulheres. As mulheres cuidam das crianças. As mulheres cuidam dos homens. Os homens não cuidam de ninguém, nem deles mesmos”.

É tão óbvio para mim esse cuidado mínimo. Sinto, porém, que os homens ainda não o acessam. Há um pacto narcísico de pensar apenas neles próprios como centro do mundo. Sei que as apurações apontam para um amigo que tentou acompanhá-la e partilhou a viagem com o irmão. E entendo a preocupação da família em não culpabilizar o irmão, já que estão sofrendo muito por tudo que aconteceu com esta jovem. Também reconheço que os motoristas de aplicativos vivem rotinas exaustivas, de muitas horas ininterruptas de trabalho, e dependem da próxima corrida para garantir algum dinheiro no fim do dia.

Mas conseguem perceber que esses homens sempre são acolhidos em seus erros? Sempre há uma explicação para toda ação? Arriscaria dizer, no entanto, que nenhum deles sequer acessou os medos que a jovem poderia ter! Que nenhum deles imagina os perigos que existem em apenas ser mulher e andar sozinha em uma rua à noite.

O homem também é vítima do machismo na sociedade. Porque precisa fingir que não sente medo para provar sua masculinidade. Diante disso, sinto que eles ainda não conseguem se conectar com nossos medos e receios, porque sempre tiveram passiabilidade no mundo. Ainda crianças, são incentivados a explorar o ambiente externo.

Os homens precisam se colocar em nosso lugar ao menos um minuto. Todos os dias e em todos os lugares criamos nossas próprias estratégias de cuidado.

Não podemos esquecer de refletir sobre a cultura do estupro impregnada em nossa sociedade. O estuprador deste caso entendeu um corpo de mulher em situação de vulnerabilidade apenas como objeto.

Cultura do Estupro

Segundo o portal Politize, “o termo “cultura do estupro” tem sido usado desde os anos 1970, época da chamada segunda onda feminista, para apontar comportamentos tanto sutis, quanto explícitos que silenciam ou relativizam a violência sexual contra a mulher. A palavra “cultura” no termo “cultura do estupro” reforça a ideia de que esses comportamentos não podem ser interpretados como normais ou naturais. Se é cultural, nós criamos. Se nós criamos, podemos mudá-los”.

Estratégia de sobrevivência

Nos anos de 1980, quando não havia postos de saúde nos bairros periféricos, as mulheres combinavam de passar uma na casa da outra de madrugada para pegarem juntas o trem para marcar pediatra em regiões centrais.

Prender os cabelos, colocar a mochila para frente e tirar brincos é uma das coisas que mulheres fazem para se proteger de homens abusadores quando estão sozinhas em ruas escuras, muito cedo ou à noite. Vocês não fazem ideia como é aliviante saber que há outra mulher caminhando na rua e não um homem.

Não à toa, sempre desço do ônibus com as chaves nas mãos, porque assim consigo fingir que estou entrando em alguma casa se algum homem me abordar.

Jéssica Moreira

Em ocupações de moradia, é comum as mulheres se organizarem com apitos e panelas para sinalizar a violência ou abuso com uma delas. Entre amigas, dividir o mesmo aplicativo de corrida, dar carona ou dormir na casa uma da outra sempre foram meios de proteção.

Em shows, baladas ou bares, as mulheres também cuidam das amigas quando percebem que um homem está ultrapassando seus limites.

Enquanto escrevo esse texto no trem, checo minhas costas para ver se é uma mulher. Dou graças às deusas, assim como agradecia quando chegava no ponto e minha mãe estava lá. No fim do dia, é outra mulher que está cuidando da gente.

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Cofundadora e diretora de comunidade do Nós, mulheres da periferia. É autora de VÃO: trens, marretas e outras histórias (Patuá) e ministra oficinas e palestras sobre cidade e literatura.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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