Aline Sousa da Silva: ‘Uma catadora entrou para a história’

A catadora Aline Sousa, que entregou faixa à Lula, conta sua trajetória e os sonhos para o Brasil nos próximos quatro anos.

Por Jéssica Moreira

06|01|2023

Alterado em 06|01|2023

“Reciclar é reconstruir. Reciclar é preservar”. A síntese é da catadora de materiais recicláveis Aline Sousa da Silva, 33. Terceira geração de uma família de catadoras, Aline ficou mundialmente conhecida no dia 1º de janeiro, quando ao lado de outras sete pessoas passou a faixa presidencial para Luiz Inácio Lula da Silva.



“É uma reciclagem geral do país. Uma catadora fazer a entrega da faixa simboliza uma reciclagem de tudo que foi produzido, de tudo que foi mau gerido ou nem foi gerido, e que agora vamos recomeçar”, define.



Desde 2018, Aline também é presidente da sua categoria. A catadora está no 3º mandato como diretora da Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do DF e Entorno (CENTCOOP-DF).

O cotidiano é corrido. Chega cedo e sai tarde, e durante o dia articula desde assuntos mais simples até os mais complexos, fazendo a gestão de mais de 700 catadores reunidos em 11 grupos. “O Brasil inteiro precisa de uma unidade para pensar as demandas dos catadores”, diz.

Há dez anos também atua no Movimento Nacional de Catadores, sendo a articuladora nacional e representante do DF e também integra a Secretaria Nacional da Mulher e Juventude da Unicatadores, conciliando a vida profissional com a família.  “Viajo muito. Já fui à África do Sul, Joanesburgo, Argentina, Itália e Panamá.

‘Eu apareci! Quero mostrar que catadores são parte da solução’


Desde a tarde do último domingo, na rampa do Palácio do Planalto, a vida de Aline se transformou. “Minha vida mudou. Eu apareci. Fui de 900 seguidores para 23 mil seguidores no Instagram”, conta feliz.

Mãe de sete filhos – Ariela Vitória (2), Alef Josimar (4), Alexandro Airan (6), Arthur (9), Adriano (12), Adriel (13) e Andrei (15) – conta o que ouviu do filho mais velho, Andrei,: “ele disse ‘mãe, a senhora tem muitos seguidores, faz vídeo comigo. Mãe, a senhora estava na televisão’. Acho que eles não vão entender. Se nem eu estou entendendo [tudo isso]. Queria que eles entendessem a magnitude, uma catadora entrou para a História”.

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Aline e seus filhos Ariela Vitória (2), Alesse Josimar (4), Alexandro Airan (6), Arthur (9), Adriano (12), Adriel (13) e Andrei (15).

©Rafaela Felicciano


Muito além de fama, a visibilidade traz um propósito ainda maior: “penso que não é uma conquista da Aline essa oportunidade que a Janja me deu. Ela deu pra uma mulher trabalhadora que representa um segmento. Com esse espaço, quero mostrar que os catadores são parte da solução. Quero aproveitar para trazer melhorias para os catadores, sempre frisando a nossa realidade”.

Aline espera que esse seja um governo do diálogo. “Que a gente consiga resgatar as políticas criadas por ele e resgatar a dignidade. A gente não é o problema, é parte da solução do problema de resíduos no país”, reafirma Aline sobre o papel dos catadores.

‘Minha ficha não tava caindo’



Quando Aline recebeu o convite da equipe do presidente, sabia que estaria no ato de entrega da faixa ao lado de outras sete representantes da sociedade. Mas não fazia ideia que seria ela a grande representante do povo na passagem da faixa.

“Quando cheguei no local indicado, vi tanta autoridade. Não tava caindo a ficha. Tinha muita gente importante pra entrar na vã. Eu olhei para os rostos, eu falei: ‘meu Deus’, essas são as lideranças. Todos me acolheram. O grupo escolhido teve uma sinergia grande”, conta.

Ainda dentro da sala do palácio, enquanto a organização explicava a posição de cada um e cada uma, a ficha de Aline ia caindo. Quando disseram que a última pessoa do lado esquerdo iria entregar a faixa, e seu nome apareceu, o choro e o riso despencaram juntos. “Agradeci, fiquei honrada. Eu não tenho nem pêlo, mas subiram todos. Fiquei gelada. Eu superei o ar condicionado. Chorei muito, surtando felicidade”, relembra.



‘Sempre quis estudar para mudar a realidade da minha família’



Nascida no Distrito Federal, Aline foi uma aluna exemplar. “Sempre fui muito estudiosa. Minha vó só era chamada na escola pra receber elogio sobre mim”, lembra com carinho a catadora que sempre enxergou no estudo um caminho para mudar a vida da família. 

“Morávamos em uma ocupação irregular, tinha dificuldade pra tomar banho e pra comer também. Então, sempre quis estudar pra gente mudar a realidade da minha família. Os estudos eram a única forma de ajudar todo mundo”.

Mas a Aline criança nem sempre pôde estudar. Por conta das dificuldades financeiras, ainda na infância vendeu bala no semáforo para ajudar a família, formada por 18 irmãos por parte de pai e outros cinco maternos.

“Minha infância foi muito difícil até chegar a ser catadora, fui vendedora de bala no sinal, com nove anos. Tenho uma família grande. Minha vida sempre foi pautada no trabalho, sempre quis trabalhar.

A família passou fome e morou em uma ocupação irregular na cidade satélite de Taguatinga, no Distrito Federal. “Até conseguir criar uma cooperativa e nossa casa própria. Mais 54 famílias estão no local. A gente conseguiu”.

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Aline compõe a terceira geração de uma família de mulheres catadoras.

©Rafaela Felicciano

‘Pensava em fazer Direito pra defender o povo’



Cansada de ver sua família e vizinhos sendo expulsos das ocupações onde viviam, o sonho de Aline para quando terminasse o Ensino Médio era ingressar em um curso de Direito. “Eu pensava muito em fazer Direito. Sempre éramos alvo das derrubadas pela higienização pública. Vinha polícia, faziam derrubadas das ocupações, eu achava que mesmo fazendo tudo aquilo, estando em área pública, eles não tinham o  direito de tratar a gente como bicho. Sempre quis defender aquele povo”.

Mas os planos não foram tão lineares. Diante das circunstâncias da vida, envolvendo trabalho e a maternidade, Aline ficou mais de 12 anos sem estudar, de 2007 a 2019. “Casei, tive filho. Tentava estudar e não conseguia. Enfrentei violência doméstica. Todo ano me matriculava e não conseguia”.

Ser nomeada presidente da da CENTCOOP não só ampliou sua autoestima profissional, como a impulsionou na volta aos estudos. “Quando ingressei na CENTCOOP-DF senti a  necessidade de voltar pra escola, e ler leis para defender a categoria, e vi que tinha que terminar a escola”.

Em 2020, ela realizou o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), uma prova que certifica pessoas que estão aptas, mas não tiveram a oportunidade de concluir os estudos.

“Em 2020, surgiu uma oportunidade de uma bolsa de 90% no curso de Direito em duas faculdades. Não deu certo em uma, comecei em outra. Comecei a cursar Direito com muita luta”.

Durante a pandemia, as aulas eram remotas, permitindo conciliar os horários. Mas quando voltou para o modelo presencial, Aline não conseguiu dar continuidade e, mais uma vez, precisou parar. “Saí, mas quero voltar para a faculdade. Concluir minha graduação, fazer a prova e advogar”.

‘Eu escolhi ser catadora’

O verbo reconstruir e preservar faz parte da vida de Aline desde criança, mas foi na adolescência, olhando os exemplos do pai e da avó, que Aline entendeu que também queria ser catadora.

Quando se deu conta dos perigos que a avó corria catando materiais sozinha pelas ruas, Aline começou a se esconder na carroça, sem que a senhora a visse, e a acompanhava no trabalho.

“Achava que podia proteger ela. Ia escondido na carroça. Quando chegava nas lixeiras, ela me via. Comecei a ver, aprender o que era reciclagem. Desde quando criei minha maioridade, eu decidi focar na reciclagem, melhorar a realidade da minha vó e minha mãe. Poderia ter feito estudo, faculdade, eu escolhi ser catadora. Eu gosto, eu tenho orgulho desse trabalho. A gente faz com amor”.

‘Fazemos o trabalho pesado, mas o lucro ainda é dos empresários’



Aline relembra que o Movimento de Catadores existe há muito tempo e que a luta  organizada em movimentos existe há pelo menos 20 anos. Ela destaca a importância da criação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em 2010, durante o Governo de Dilma Rousseff e a importância dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) terem dado visibilidade à pauta da categoria.

“São gerações que dão continuidade. Muitas lideranças já se foram. Só no [Governo] Lula os catadores tiveram visibilidade. Essa palavra significa muito. [Visibilidade] faz as pessoas terem conhecimento sobre sua necessidade e realidade”, pontua.

Quando perguntada quem é sua inspiração, a fala flui: uma das irmãs mais velhas, Jaqueline, também catadora. “Ela foi a primeira catadora [do DF] que empoderou e criou a cooperativa mesmo sem ter idade. Com uma rede de apoio, ela conseguiu a casa para os catadores. Ficava observando a luta dela. Eu não sabia que iria estar assim como ela”, diz orgulhosa.


Nos últimos seis anos, catadores e catadoras se sentiram invisibilizados pelos ex-presidentes Michel Temer (MDB) e Jair Messias Bolsonaro (PL).

“Nos últimos seis anos, houve um desmonte pra excluir a gente. A gente faz todo serviço pesado, vai na lixeira, que gasta recurso pro material chegar na indústria, mas na hora de receber, o retorno econômico foi dos empresários, quem mais já explora a gente”.


Próximos quatro anos

“A gente acaba com o ódio abraçando e entregando amor”, é o que deseja Aline para os próximos anos. Ela conta que, desde que a posse aconteceu, tem sido alvo de críticas e de pessoas maldosas. “Eu me tornei alvo, porque querem atacar o nosso presidente. Fico triste quando as pessoas que não conhecem minha história e minhas raízes, vêm com ignorância dizendo “uma catadora” [em tom pejorativo].

Para além de continuar lutando pela vida e melhorias profissionais para os catadores, Aline continua enxergando na educação a porta de saída para os problemas que ainda assolam o país. Afinal, pensar em melhores condições aos catadores, é dar condições também aos seus filhos.

“Penso que poder trabalhar as creches e trazer oportunidades para crianças e juventude. Não é porque eu sou terceira geração de uma família de catadores que meus filhos precisam herdar isso. Têm que reconhecer que é importante para o meio ambiente. Mas eu não quero que os meus filhos passem o que minha mãe e avó passaram. Catador no Brasil sofre muito. É doloroso. A gente combate com sorriso, luta e trabalho, porque a gente sobrevive disso”.

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Pensar em melhores condições aos catadores, é dar condições também aos seus filhos.

©Rafaela Felicciano

Ela aposta que a Educação também será uma prioridade no governo de Lula.Assim como falo que a educação salva, tenho certeza que será prioridade do presidente. Inclusão de crianças e jovens. Fortalecer o Prouni. Pra gente conseguir dar condição pra nossa juventude. Só o  estudo que muda a gente de cenário. Isso é inspirador. Quero mostrar para os meus filhos que eles precisam estudar. Quero que estudem. Que se formem e que busquem ajudar as pessoas por meio da formação. O estudo e a educação libertam qualquer ser humano”.