A titulação de comunidades quilombolas ‘é uma dívida histórica’

A comunidade quilombola Lagoa dos Campinhos esperou 20 anos pela titulação; conversamos com Silvania Moura, lideranças do território

Por Beatriz de Oliveira

13|04|2023

Alterado em 14|04|2023

Às margens do Velho Chico, o rio São Francisco, 126 famílias formam a comunidade quilombola Lagoa dos Campinhos, que tem sido preservada há mais de um século. O território tem 1263 hectares e está localizado entre os municípios Amparo São Francisco e Telha, no estado de Sergipe. Há duas décadas lutando pela titulação do quilombo, os moradores conseguiram esse feito no dia 21 de março, durante evento do governo federal que anunciou pacote com sete medidas pela igualdade racial no país. Na ocasião, o presidente Lula assinou a titulação de três territórios quilombolas.

O quilombo Lagoa dos Campinhos é formado por quatro povoados: Serraria, Pontal, Crioulo e Lagoa Seca. “Temos um ponto turístico com dois bares, onde se serve o peixe frito, a farofa d’água, almoço e uma cervejinha bem gelada, e ainda um belíssimo passeio de barco, sem contar o banho de rio”, conta Silvania Moura, pedagoga e coordenadora da Associação de Território Remanescente de Quilombo Pontal dos Crioulos. A quilombola conta também que as principais atividades realizadas no território são a pesca e a agricultura.

Quilombos são comunidades negras que resistiram ao período escravocrata, a partir de trajetória histórica e relações territoriais próprias. Já as comunidades remanescentes de quilombo são as populações que se perpetuaram nesses territórios até os dias de hoje, mantendo relações específicas com a terra, parentesco, ancestralidade tradições e práticas culturais. O Decreto nº 4.887, de 2003, regulamentou a demarcação e titulação das terras quilombolas no Brasil, como forma de garantir a continuidade desses grupos étnicos.

Silvania se orgulha da potência do quilombo em que vive: “a comunidade vem se constituindo ao longo dos anos por sua tradição e forma de organização, penso que a identidade dos quilombolas não se define pelo número de membros, mas pelas experiências e histórias contadas oralmente, dando continuidade ao modo de vida quilombola”.

Entre as medidas apresentadas no evento do governo federal está o Aquilomba Brasil, proposto pelo Ministério da Igualdade Racial, iniciativa que amplia o Programa Brasil Quilombola, criado em 2007. O programa prevê, entre outras coisas, titulação das terras quilombolas, garantia de permanência de quilombolas no ensino superior, reconhecimento da medicina quilombola como parte do direito à saúde e acesso à energia elétrica nas comunidades. Segundo o governo, existem cerca de 214 mil famílias quilombolas no país.

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Associação de Território Remanescente de Quilombo Pontal dos Crioulos © arquivo pessoal

O quilombo Lagoa dos Campinhos é formado por quatro povoados © arquivo pessoal

A comunidade quilombola Lagoa dos Campinhos esperou 20 anos pela titulação © arquivo pessoal

Titulação possibilita independência de comunidade quilombola

“A comunidade recebeu a notícia do título do território com muita alegria e com sentimento de vitória, pois há vinte anos a gente vem lutando para que isso acontecesse”, afirma Silvania. Ela acredita que a titulação vai trazer maior autonomia aos moradores.

A luta pela titulação da comunidade quilombola Lagoa dos Campinhos começou em 2003. Três anos depois, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) iniciou o processo de demarcação do território. Já no ano de 2008, o órgão emitiu uma portaria reconhecendo o território como remanescente de quilombo.

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Silvania Moura é liderança da comunidade quilombola

©arquivo pessoal

Com a titulação emitida em 2023, a comunidade deixou de ser responsabilidade do Incra e passou para Associação de Território Remanescente de Quilombo Pontal dos Crioulos, sediada na comunidade. Na prática, agora são os moradores que decidem os projetos e atividades a serem realizados em seu território.

“Com o reconhecimento da área, as famílias passam a traçar planos para o futuro, como ampliar as relações comunitárias, infraestrutura local, saneamento básico e oficinas de geração de renda”, aponta Silvania.

De acordo com o Incra, em 2018 menos de 7% das terras reconhecidas como remanescentes quilombolas haviam sido tituladas no Brasil. O baixo percentual de terras tituladas vai ao encontro da redução da verba destinada à área. Segundo levantamento da Organização Terra de Direitos, entre 2013 e 2018 o orçamento para titulação de territórios quilombolas diminuiu mais de 97%.

Para Silvania, a titulação das comunidades quilombolas é uma demanda inegociável. “É uma dívida histórica que o governo tem com a população negra, tiraram tudo que nós tínhamos, então nós queremos tudo que temos direito de volta”.