Foto mostra Luana sorrindo de jaleco branco e com um estetoscópio no pescoço

A saga por um sonho: ‘eu iria fazer medicina, nem que fosse com 60 anos’

Conheça a história de Luana Romão que, com o sonho de realizar uma das graduações mais concorridas do Brasil e vinda de uma família negra e de baixa renda, conseguiu ingressar no curso de medicina com quase 40 anos

Por Amanda Stabile

23|01|2023

Alterado em 23|01|2023

Luana da Silva Romão é uma sobrevivente. Das seis gestações de sua mãe, que tinha o desejo de ter pelo menos duas crianças, foi a única que vingou no ventre. Veio ao mundo na década de 1980, em São Bernardo do Campo, município que faz parte da região do Grande ABC, na região Metropolitana de São Paulo.

“Moramos em Santo André [cidade vizinha a que nasceu] por dois anos”, conta. “Depois meu pai comprou uma casa em São Vicente, que é na baixada santista, porque a família da minha mãe é toda daqui. Aí eu cresci no meio da família”.

Quando criança, Luana adorava as matérias de ciências e biologia na escola. Em casa, amava cuidar dos animais. “A minha mãe sempre teve gatos. E se tinha algum machucado para cuidar, eu não tinha nojo. Eu gostava de ver aquela melhora do animalzinho”, lembra.

Ainda na infância, com bronquite crônica e asmática e sem o tratamento adequado, a menina passou muito tempo no hospital em que sua tia trabalhava como técnica de enfermagem. Luana achava lindo aquele uniforme todo branco. Nesse ambiente corriqueiro, começou a desejar estar sempre ali, mas não mais como paciente e, sim, como médica.

“Eu achava fantástico sentar na cadeira e o médico me atender, me dar uma medicação e eu sair de lá uma pessoa diferente do que eu entrei. Eu pensei: ‘pô, eu achei o que eu quero: fazer isso na vida das pessoas’”. 

Quem cursa medicina no Brasil?

A faculdade de medicina é a graduação mais cara no Brasil. De acordo com levantamento feito pelo portal Melhores Escolas Médicas, as mensalidades variam entre R$ 3.754,81 a R$ 12.850. O custo médio é de R$10 mil, mas também é necessário investir em materiais específicos para as aulas, como jalecos, estetoscópio e instrumentos para aferir a pressão.

As universidades públicas são uma opção para aqueles que não podem pagar a mensalidade. Porém, no estado de São Paulo, por exemplo, medicina é a graduação mais concorrida da Universidade de São Paulo (USP). De acordo com a Fundação Universitária para o Vestibular (FUVEST), no vestibular deste ano haverá 118 pessoas concorrendo para cada vaga na unidade de São Paulo; 96 em Ribeirão Preto; e 78 em Bauru.

Ainda, há uma desigualdade racial histórica em relação aos estudantes que acessam o curso. Em 2018, quando passou a adotar o sistema de cotas raciais, a USP recebeu 307 alunos negros contra 1.411 brancos nas faculdades de medicina. Em 2022, a disparidade diminuiu, porém estudantes brancos ainda foram a maioria dos admitidos: 1.777, contra 572 novos estudantes que se autodeclararam pretos ou pardos.

Também é possível ingressar no curso de medicina por meio de programas do Governo Federal que garantem o acesso de estudantes de baixa renda ao ensino superior. O Sistema de Seleção Unificada (SISU) oferece vagas em universidades públicas de todo o país; o Programa Universidade para Todos (ProUni) oferece bolsas de 50% ou 100% em faculdades particulares; e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) financia os cursos a juros baixos e a dívida só começa a ser cobrada após a formação. 

Para ser selecionado pelos programas, é necessário ter estudado o Ensino Médio em escolas públicas ou em escolas particulares como bolsista, ter uma renda per capita mensal menor que três salários mínimos, fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e não zerar na redação. 

Porém, enquanto a média nacional no ENEM em 2021 foi de 536 pontos, no mesmo ano a nota de corte para ingresso no curso de medicina foi de 814,73 pelo SISU; 734,14 pelo ProUni; e 704,92 pelo FIES, de acordo com o Guia da Carreira.

Em vez de livros, entrevistas de emprego

Antes de sair do Ensino Médio, Luana já trabalhava. Seu primeiro emprego, aos 16 anos, foi a venda de cartões de zona azul.

“Eu lembro até hoje, ganhava 25 centavos por cartão vendido. Esse era o dinheiro que salvava a compra do mês na minha casa ou uma conta de luz ou a compra do gás”.

Desde seus 11 anos, a situação financeira de sua família estava crítica. Nessa época, seu pai foi demitido da empresa onde trabalhava como técnico de planejamento. “Ele já tinha uma certa idade e a formação dele estava defasada, porque ele não tinha curso superior, apenas curso técnico”, conta. 

“No mesmo período, minha mãe descobriu que tinha lúpus. Ela até tentou trabalhar como doméstica, mas ficou muito mal de saúde e não pôde mais. Então, quem nos ajudava com alimentos era a família”.

Assim, apesar de sempre compartilhar com os pais o sonho de ser médica, Luana já saiu do Ensino Médio com o currículo nas mãos em busca de emprego, enquanto seus amigos prestavam o vestibular. E o seu sonho de trabalhar em um hospital parecia cada vez mais distante.

Quando a menina completou 18 anos, seu pai conseguiu um emprego temporário em um restaurante recém-inaugurado no centro de Santos (SP). Com essa idade, Luana havia apenas trabalhado em lanchonetes e lojinhas de roupa, e ganhava muito pouco. Não tinha salário fixo, apenas comissão. Pediu, então, que o pai conseguisse um emprego para ela no buffet.

O início de um sonho

Admitida como garçonete, mesmo que apenas por meio período, Luana sempre sonhava um pouco mais alto. Vendo o interesse e a dedicação da adolescente, a proprietária a convidou para trabalhar em período integral. Ela logo viu a possibilidade de pagar um curso de técnico de enfermagem.

“Eu pensei ‘tudo bem que eu não vou fazer medicina, mas pelo menos eu vou trabalhar em um lugar que eu quero’”, lembra. Com esse salário integral, Luana conseguiria alimentar não apenas sua casa, mas também seus sonhos.

Após um ano e meio de curso, a recém técnica de enfermagem enviou seu currículo para todos os hospitais da baixada santista. Meses depois, finalmente começou a trabalhar na Santa Casa de Santos. Decidiu, naquele momento, que estava na hora de dar mais um passo em direção ao seu futuro.

Na quadra seguinte a de seu trabalho, foi implantada uma unidade da Universidade Paulista (UNIP), mas as mensalidades estavam fora de seu orçamento, que ainda era destinado à manutenção de sua casa. 

“Nessa época, saiu um concurso da Codesavi [Companhia de Desenvolvimento de São Vicente] e meu pai se inscreveu e passou. Aí ele conseguiu um salário para bancar a casa sozinho. E todo o meu dinheiro eu consegui usar para investir em mim”.

Luana até pesquisou a mensalidade do curso de medicina, “mas ainda era impossível, muito distante da minha realidade”, conta. Começou a cursar enfermagem e, entre idas e vindas e uma transferência de faculdade, finalmente conseguiu se formar, em 2011, pela Universidade São Judas – Campus Unimonte.

Apesar de todo esse esforço, Luana não começou a trabalhar como enfermeira. “Antes de me formar, eu prestei um concurso para a Prefeitura do Guarujá e passei como técnica de enfermagem. Trabalhando lá o meu salário melhorou bastante. Então mesmo formada enfermeira, sair do emprego para trabalhar na nova profissão não compensava”, explica.

Um passo mais perto

A vida pessoal de Luana também progredia. Ela se apaixonou, se casou, se mudou e teve um filho, mas sempre com a medicina na cabeça.

“Eu já estava com 37 anos, mas eu iria fazer medicina nem que fosse com 60”.

Insistindo mais uma vez, planejou uma ida para a Argentina nas férias de seu trabalho. Ela ouviu de colegas que a mensalidade do curso tão almejado era mais barata no país vizinho. “Eu convidei minha mãe para ir comigo, porque como é que eu ia levar uma criança e ser estudante de medicina em um país desconhecido?”. E ela aceitou.

Porém, enquanto esses planos ainda estavam no papel, três faculdades de medicina abriram as portas próximo à cidade onde Luana morava. Seu marido na época a apoiou a prestar o vestibular, assim como havia apoiado a viagem. “Eu estava descrente porque eu me formei no Ensino Médio em 2001 e a gente já estava em 2018”, confessa. Ela passou no vestibular, mas como bancar uma faculdade particular de medicina? 

Quando seu pai faleceu, sua mãe vendeu a casa em que moravam e investiu em um imóvel menor. Deu o valor que sobrou para a filha, que finalmente investiu na faculdade dos sonhos. O valor permitiu que Luana pagasse seis meses de curso.

Durante esse período, ela trabalhava na escala de 12×36, o que significa 12 horas de trabalho para 36 horas de descanso. Ela saía do Guarujá, onde estava morando desde que se casou, e ia para Cubatão assistir às aulas. Mas, antes disso, levava seu filho para a creche. “Tive que colocar ele na creche ainda aos oito meses. Eu deixava ele lá de manhã, buscava correndo depois da faculdade e deixava ele na casa da avó”, lembra. 

“Depois eu ia direto trabalhar, trabalhava a noite toda e saía de manhã. Passava na minha casa, pegava o neném e levava para creche. Ia para Cubatão, estudava e só à noite eu ia dormir com o meu filho”. Seu ex-marido também é técnico de enfermagem, então eles se revezavam para cada um cuidar do bebê uma noite.

Reta final

Após o primeiro semestre de faculdade, Luana fez alguns empréstimos para pagar o curso. “Eu consegui parcelar a minha dívida e fui pagando, esperando conseguir um financiamento estudantil no banco, mas nunca consegui”, lamenta. Foi assim até o terceiro ano, quando não conseguiu mais renovar seus empréstimos.

A solução que encontrou foi um financiamento pelo Pravaler, uma empresa de crédito estudantil. “Fui aprovada. Deu tudo certo e eu estou indo para o quinto ano da faculdade, aos 42 anos”.

Agora, Luana já pensa em seus próximos passos. Atuando como técnica de enfermagem, ela descobriu uma paixão pela área de urgência emergência. Mas acredita que precisa pensar em uma especialização a longo prazo, que possibilite trabalhar de uma forma mais tranquila, porque a rotina é muito cansativa.

“Eu sempre repenso a especialização em urgência e emergência. Mas acho que vou trabalhar com isso nem que seja por um ano porque eu gosto muito. A gente precisa pensar na satisfação pessoal também”, aponta. “Mas eu penso em Psiquiatria, que é uma área mais clínica, ou em infectologia, que é a base para muitas outras especialidades”, conclui.