A história de Silas Sateré e o impacto da amputação de crianças indígenas na Amazônia

A região Norte do Brasil enfrenta um alto número de acidentes com picadas de cobra, afetando especialmente as comunidades indígenas da Amazônia. A falta de acesso ao soro antiofídico dificulta o tratamento adequado, resultando em amputações e impactando a vida das crianças indígenas.

22|05|2023

- Alterado em 24|05|2023

Por Adriana Amâncio

A região Norte do país, abrigo de diversas etnias indígenas que vivem em áreas isoladas no meio da floresta amazônica, tem quase quatro vezes mais acidentes com picada de cobra do que as demais regiões do Brasil, revela Boletim Epidemiológico de Vigilância em Saúde. Essa realidade é a pauta da minha jornada investigativa destrinchando o assunto em quatro capítulos. Nesta primeira viagem, descortino o impacto das amputações na vida de crianças indígenas e as lacunas no serviço de saúde indígena, que dificultam o acesso ao soro antiofídico. A segunda reportagem aborda os obstáculos para a produção e distribuição de um tipo de soro que dispensa a refrigeração e pode ser distribuído nas florestas para uso por parte de etnias isoladas. O terceiro capítulo traz a perspectiva das mães de crianças amputadas sobre como lidam com as dificuldades de adaptação, a falta de acesso aos serviços públicos de saúde e assistência social. O quarto e último capítulo busca resposta dos gestores da saúde indígena sobre soluções para esse problema. Siga conosco nessa jornada!


“Eu me senti muito mal logo após perder a minha perna. Cheguei a sentir que não era mais indígena”. É com essas palavras que Silas Sateré, da etnia Sateré Mawê, que mora na Aldeia Boa Fé, na Terra Indígena Andirá Marau, no estado do Amazonas, resume o impacto da perda da perna direita, aos nove anos, enquanto caçava uma cutia na floresta, acompanhado do tio. Ele sofreu duas picadas de uma Surucucu Pico de Jaca, a espécie mais venenosa da floresta amazônica.

Entre a aldeia onde vive Silas e o posto de saúde, que fica no Polo Base de Porta Alegre, a distância média é de três horas de voadeira. Por essa razão, quando ele chegou à unidade de saúde, a lesão havia avançado. “A minha perna apodreceu”, afirma o jovem. Mesmo tendo os outros membros do corpo sadios, Silas se fechou para mundo, perdeu a vontade de viver. Ele conta que ser criança na floresta sem uma perna é muito difícil. “Eu fiquei sem poder caçar, correr na floresta, coisas que todo Sateré faz”, recorda. Para além da infância, a perda da perna impactaria no futuro de Silas, que teria dificuldades de caçar e prover a família com alimento.

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Segundo o mesmo boletim, pessoas indígenas têm mais chances de morrerem por esses acidentes com cobra venenosa.

© André François / ImageMagica

O caso de Silas Sateré não é isolado. De acordo com o Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, em 2021, foram registrados mais de 31 mil casos de acidentes ofídicos. A região Norte, onde vive Silas, concentra quase quatro vezes mais acidentes ofídicos do que as demais regiões do país. São 55,16 ocorrências para cada 100 mil habitantes. Em todo o Brasil, o estado do Pará possui o maior número de registros de acidentes ofídicos 5.723. O Norte, com 42 ocorrências, também lidera o número de óbitos por ofidismo. Segundo o mesmo boletim, pessoas indígenas têm mais chances de morrerem por esses acidentes.

Mesmo diante de tantas ocorrências, ainda não há uma solução para garantir o acesso facilitado das crianças isoladas ao soro antiofídico. O soro antiofídico que poderia inutilizar o efeito do veneno da cobra no corpo de Silas precisa ser acondicionado em baixa temperatura. Uma vez que a região onde ele vive não há rede de energia elétrica, o acesso a esse produto só é possível direto no posto de saúde, que fica há horas da aldeia. A demora para receber o soro leva ao avanço da necrose no membro afetado.

A antropóloga e coordenadora do Programa Wajãpi do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (IEPÉ), Juliana Rosalem, explica que há diferenças entre os povos indígenas, mas, em linha geral, a amputação impacta fortemente a vida de uma criança porque o seu desenvolvimento é na floresta e exige muito do corpo. “Viver na floresta exige muito do corpo. Caçar, pescar, tomar banho no rio exige do corpo. A aprendizagem das crianças Wajãpi, por exemplo, se dá seguindo os pais, caminhando, pegando coisas, cheirando, comendo, plantando, selecionando animais. Elas não fazem distinção entre brincar e aprender, acontece tudo ao mesmo tempo. A perda de um membro interfere nesse processo ”, explica.

Segundo Juliana, o acesso ao soro não é o único problema. O fato dos hospitais proibirem os indígenas de usarem as suas práticas ancestrais no tratamento da lesão também agrava o quadro. “Tem a questão de que, às vezes, falta ou é difícil acessar o soro, mas tem também o problema dos indígenas serem proibidos de usar seus conhecimentos e suas práticas ancestrais no tratamento do paciente, o que poderia, em algumas situações, até evitar a amputação”, explica. A antropóloga defende que essa postura dos profissionais de saúde “contraria a própria PNASPI (Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas) que preconiza que a assistência à saúde deve ser complementar aos sistemas de conhecimentos e práticas de saúde já existentes nos povos indígenas”, defende.

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Amputações em crianças indígenas são comuns, pois a floresta é o lugar onde elas se desenvolvem de acordo com o o seu modo de vida. © Arquivo Expedicionários da Saúde

Silas Sateré em seu território Sateré Mawé. © Arquivo Expedicionários da Saúde.

Silas Sateré, da etnia Sateré Mawê, mora na Aldeia Boa Fé, na Terra Indígena Andirá Marau, no estado do Amazonas. © arquivo pessoal

A história de Silas Sateré e o impacto da amputação de crianças indígenas na Amazônia © Expedicionários da Saúde

Some -se a isso, a dificuldade na comunicação entre indígenas que não falam português e os operadores do serviço de saúde e, com isso, têm o seu direito de escolha comprometido. “Uma criança Wajãpi, certa vez, foi pegar um favo de mel no oco de uma árvore e teve a mão picada por uma cobra. No posto de saúde, os pais não queriam que ela fosse amputada, pois acreditavam que não seria necessário. Uma vez que eles não falavam português, os médicos, mesmo administrando o soro, resolveram amputar a mão da garota”, exemplifica. Os pais indígenas ficaram inconformados, mas, hoje, essa jovem Wajãpi, é adulta e se adaptou e se desenvolveu bem, sem traumas, em meio à floresta.

Eu diria que o acesso à saúde indígena adequada à cultura desse povo é um desafio para todas as etnias, mas aquelas que não têm o território demarcado, possuem uma necessidade maior

Juliana Rosalem

O território Wajãpi, onde Juliana atua há mais de duas décadas, e a Terra Indígena Andirá Marau, onde vive Silas, são demarcados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e ainda assim, enfrentam dificuldades para garantir soro antiofídico e a outras políticas públicas de saúde às etnias mais distantes. Naqueles territórios que ainda disputam o reconhecimento do seu território, a situação é ainda mais delicada, como reforça Juliana.

Ao completar 12 anos, Silas ganhou uma prótese ao participar do Projeto Floresta em Movimento realizado pela ONG Expedicionários da Saúde. O equipamento, adaptado à floresta, devolveu a esperança ao adolescente.

A minha vida mudou a partir daí. Senti vontade de estudar, de pensar no futuro, de ser médico e trabalhar na saúde indígena

Silas Sateré


No próximo capítulo, vamos ouvir a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e o Ministério da Saúde sobre as falhas na gestão da política de saúde indígena apontadas aqui. Também vamos buscar entender a razão pela qual não é produzido um tipo de soro que dispensa refrigeração, ideal para ser acessado pelos povos indígenas isolados.

Adriana Amâncio Jornalista formada pela Universidade Joaquim Nabuco (PE) com 25 anos de experiência em assessoria de comunicação e reportagem nas áreas de direitos humanos, gênero e meio ambiente. É repórter de Inclusão e Diversidade no Colabora – jornalismo sustentável. Já recebeu o Prêmio Sassá de Direitos Humanos, além de ser premiada por As Amazonas, Abraji e pela Embaixada dos Estados Unidos com o podcast “Cidadãs das Águas”.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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