A agressão à jornalista Sara Wagner York e o ódio contra travestis

Sara Wagner York foi vítima de agressão no carnaval no RJ. A colunista Victória Dandara reflete sobre ódio contra travestis. "O ódio não nos pertence. Ele é uma determinação do outro/da outra cisgênero sobre nossas existências".

01|03|2023

- Alterado em 17|05|2024

Por Victória Dandara

Há 7 anos atrás, eu, uma travesti de 18 anos de idade embarcava rumo a Moscou para uma conferência global de preparação de jovens lideranças. O curso, organizado pela instituição “Preparing Global Leaders Academy”, contava com formações com professores de Oxford, Princeton e Cornell, que figuram entre as melhores universidades do mundo. No ano em questão, duas jovens meninas de São Paulo foram selecionadas, eu e uma grande amiga. Ambas tivemos nossas histórias divulgadas em importantes portais midiáticos à época. Porém, somente uma de nós sofreu centenas de ataques virtuais por exaltar sua conquista. Comentários afirmando que ela seria assassinada na Rússia, que ela era feia, que era um homem, que era nojenta etc, etc, etc. A outra, recebeu elogios e cumprimentos por sua grande conquista. 

Eu pergunto a vocês, meus leitores e leitoras, qual das duas era cis e qual era travesti? Não é difícil responder a essa pergunta.

7 anos depois. Carnaval de 2023. A pedagoga, doutora, professora, jornalista e minha amiga de vida/inspiração, Sara Wagner York, ao realizar a cobertura desse momento tão festivo e tradicional no nosso país, na cidade de São Pedro da Aldeia (RJ), é impedida de ingressar no espaço do evento em questão, sendo brutalmente agredida pelos seguranças do prefeito Fábio Pastel (Podemos). 

No mesmo dia, mesmo evento, jornalistas cisgênero realizam as respectivas coberturas midiáticas com tranquilidade, sem levar um “mata leão” de brinde para casa. 

Pessoalmente não gosto de evidenciar episódios de violência e transfobia em meus escritos. Acredito que existe um fetiche em nossa dor por parte da cisgeneridade, que tende a nos vincular única e exclusivamente a este lugar de submissão e agressões. No entanto, pra não dizer que não falei do ódio, queria indagar a vocês, leitores e leitoras cis, como é viver em uma sociedade que não os odeie? Como é poder viver suas vitórias e conquistas em paz? Como é ter a possibilidade de curtir o Carnaval sem ser violada e agredida? Como é fazer posts, publicações, ou qualquer interação pública e virtual sem sofrer uma enxurrada de comentários negativos e depreciativos? Como é sair na rua sem ter medo de morrer? Como é entrar num espaço comum, como uma universidade, e não se sentir um ET porque todos te olham como se tivesse perdido o caminho para a pista de prostituição? 

Não gosto de falar do ódio. Mas não posso deixar de imaginar um mundo onde ele não exista. E a pior parte: o ódio não nos pertence. Ele é uma determinação do outro/da outra cisgênero sobre nossas existências.

É tão fácil para as pessoas cis agredir, ofender e violar travestis. É como se em nossos corpos existisse um sensor que desbloqueasse toda a civilidade humana, consumindo toda a empatia em um indivíduo. Quem chora pelas travestis agredidas e assassinadas?

Garanto que já chorei muito e cada novo episódio de violência, como o que ocorreu com Sara Wagner York, bate também em mim. Não somos feitas de ferro, somos humanas e temos sentimentos, temos nossos dias de fraqueza. Desejo que possamos ser fracas também, ainda que este seja um luxo reservado para poucos momentos. E o mais importante: desejo que transformemos todo esse ódio em nosso motor para a transformação, pois é isso que viemos fazendo desde sempre. Somos hastes finas, que brisas e tempestades já envergaram, mas nenhuma espada é capaz de cortar. Estamos enraizadas na história deste país e deste território desde os mais remotos tempos, e aqui seguiremos. Quando fui pra Rússia, desejaram que eu lá morresse, porém, voltei pro Brasil com um certificado internacional. Desejaram mostrar à Sara que celebrar a vida e o Carnaval não seria para uma de nós, porém, ela voltou nos dias seguintes em um camarote na Sapucaí. Nos queriam mortas, mas ainda assim nos levantaremos. Como já li de uma amiga certa vez, “a vida é dura, mas nós somos travas”. 

Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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