Foto mostra uma mãe realizando uma das tarefas do cuidado: a ajuda aos filhos na educação

Economia do cuidado: a maternidade deve ser reconhecida como trabalho

Conversamos com Verônica Ferreira, doutora em Serviço Social, sobre a estruturação do trabalho do cuidado hoje e a necessidade de uma reforma do sistema previdenciário para beneficiar a todas as brasileiras

Por Amanda Stabile

05|04|2023

Alterado em 08|02|2024

Em novembro de 2022, a comissão da Mulher da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 2647/2021, que prevê alterar a lei que regulamenta os Planos de Benefícios da Previdência Social para que as tarefas assistenciais de criação e cuidado de filhos e filhas, biológicos ou adotados, sejam contabilizados como tempo de serviço para fins de aposentadoria.

Para cada filho nascido com vida, o projeto prevê um ano de acréscimo ao tempo de serviço e, para cada criança adotada como filho ou com incapacidade permanente, o acréscimo é de dois anos. 

De autoria da então deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB/AC), o PL incorporou os projetos das deputadas Jandira Feghali (PCdoB/RJ) e Taliria Petrone (Psol/ RJ), que dispunham sobre o mesmo tema. Após essa aprovação, o PL segue para análise das Comissões: de Seguridade Social e Família; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. 

“O acréscimo de um ou dois anos não é justo para se reconhecer a vida inteira trabalho. Mas o tempo estipulado é um tempo de medida reparativa, já é algum reconhecimento”, aponta Verônica Ferreira, Doutora em Serviço Social com a tese Apropriação do tempo de trabalho das mulheres nas políticas de saúde e reprodução social: uma análise de suas tendências, professora do departamento de serviço social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)

A medida avança no sentido do reconhecimento de uma trajetória de realização de trabalho doméstico e de cuidados e da garantia do direito à aposentadoria para as donas de casa de baixa renda. São duas medidas muito importantes porque vão adensando o reconhecimento do trabalho reprodutivo, de maneira geral.

O cuidado como trabalho

Você já parou para pensar o que aconteceria com o mundo se houvesse uma greve permanente nos trabalhos de cuidado doméstico? As indústrias até poderiam produzir bens e os serviços na esfera social poderiam continuar sendo executados. Mas como a sociedade se sustentaria se não existisse ninguém que cuidasse para que essas mercadorias se transformassem em refeições ou tomasse para si a tarefa de garantir que as crianças ao menos sobrevivessem?

Ainda no século passado, a escritora e pensadora britânica Virginia Woolf já havia levantado esse questionamento. Em seu livro “Um teto todo seu” (1929) ela afirma:

Sem os nossos feitos, esses mares seriam inavegáveis e essas terras férteis, um deserto. Demos à luz, criamos, banhamos e ensinamos, talvez até a idade de seis ou sete anos, um bilhão e seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que, de acordo com as estatísticas, existem neste momento, e isso, mesmo que tenhamos tido ajuda, leva tempo.

Ou seja, nessa ordem social em que vivemos, o trabalho do cuidado é essencial para garantir a sobrevivência humana e a reprodução da força de trabalho, que é o que mantém o modelo econômico capitalista de pé. Mas apesar dessa importância não ser uma descoberta recente, essas tarefas sequer são remuneradas ou reconhecidas como trabalho. 

Duplamente exploradas

No Brasil, as mulheres são a maioria no desempenho dessas funções. O levantamento “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que, em 2019, elas dedicavam quase o dobro de horas por semana aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas do que os homens. Enquanto eles dedicavam, em média, 11 horas semanais, elas dedicavam 21,4 horas.

“Na nossa sociedade, nós temos uma organização desigual da realização desse trabalho reprodutivo em função de uma divisão sexual do trabalho, que estabelece que essa é uma atribuição das mulheres. Isso gera uma situação em que as mulheres são duplamente exploradas”, alerta Verônica.

Quando se trata de mulheres que são mães, essa desigualdade se acentua ainda mais dramaticamente. A especialista aponta que muitas vezes são elas que têm de abandonar o trabalho remunerado para se dedicar às crianças e que têm a sua trajetória no trabalho remunerado interrompida ou prejudicada.

Durante a pandemia, por exemplo, ao mesmo passo em que 50% das mulheres brasileiras passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém, segundo a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, elas também foram mais afastadas do mercado de trabalho.

Uma pesquisa feita pelo IBGE e divulgada no ano passado mostrou que cerca de 72% dos postos de trabalho encerrados em 2020 eram ocupados por mulheres. Apesar de alarmante, esse número não inclui dados do mercado informal de trabalho, onde cerca de 40% da população brasileira está inserida.

Negligência do Estado

Outra questão que contribui para esse cenário de desigualdade é que as práticas sociais de cuidado também não são assumidas pelo Estado. A elas é atribuída uma “solução familiar”, que é a responsabilização da família por essa organização. Assim, o Estado se isenta de prover mecanismos para atender a essas necessidades.

Uma política para ilustrar esse cenário é o acesso às creches, que é a primeira etapa da educação básica e atende a crianças de 0 a 3 anos de idade. Apesar de ser um direito das crianças e um dever do Estado, aquelas que mais precisam ainda têm pouco acesso ao serviço.

De acordo com estudo divulgado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) em 2022, apenas 24,4% das crianças de até 3 anos, entre as famílias mais pobres, frequentam creches no país.

Essa é uma realidade absurda. Esse modelo mantido pela omissão do Estado sobrecarrega as mulheres.

Como fica a aposentadoria das mulheres?

Mesmo tendo que, muitas vezes, deixar o mercado formal e informal de trabalho para cuidar dos filhos, essas mulheres não param de trabalhar para complementar a renda da casa. Mas essas atividades informais, além de sobrecarregá-las, ainda são realizadas de maneira precária e até hoje não têm sido contabilizadas para fins de aposentadoria. 

“Isso gera desigualdades em um mundo do trabalho que já é marcadamente desigual. Nós temos que lembrar que a maioria das pessoas que trabalha remuneradamente no nosso país, no âmbito produtivo, trabalha na informalidade. Ou seja, nem contribui, muitas vezes, para a Previdência Social, nem está em situação de proteção social. As mulheres são a maioria das pessoas nessa situação”, aponta a especialista.

Ela também alerta para o papel das reformas ao sistema previdenciário realizadas desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) até o de Bolsonaro (2018-2022), que contribuíram para uma lógica restritiva de direitos que privilegia uma lógica de não reconhecimento das desigualdades que estruturam o mundo do trabalho. 

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) concede o benefício da aposentadoria a mulheres a partir de 62 anos e homens com no mínimo 65 anos. Para trabalhadores rurais a idade mínima é reduzida em cinco anos para homens e sete anos para mulheres. Porém, atrelado a esse requisito está a necessidade de que o trabalhador tenha contribuído por determinado tempo para a Previdência Social. Atualmente, é exigido pelo menos 15 anos de contribuição.

“Nós temos essa combinação perversa entre idade e tempo de contribuição, uma lógica contributiva, que afeta completamente as mulheres, sobretudo por toda essa condição desigual”, explica. “Somos aquelas inseridas no trabalho mais precário, com menos rendimento e, portanto, temos menos ‘capacidade’ de contribuir para a Previdência”. 

Ou seja, nessa lógica, apesar de uma vida inteira de trabalho, as mulheres não conseguem se aposentar. Para a especialista, essas limitações ditadas pela organização do nosso sistema previdenciário são um dos desafios a serem pautados agora com aprovação desse Projeto de Lei, que pode ser considerado um primeiro passo para a mudança desse cenário.

Esse projeto representa um avanço que só se torna viável e possível e material quando nós voltarmos a reconhecer o tempo de trabalho e não apenas o tempo de contribuição para fins de proteção social e para fins de aposentadoria. O que é justo é reconhecer o tempo de trabalho. As pessoas trabalharam, ainda que não tenham contribuído.