fachada de escola

Professora recebe ataques e ameaças após denunciar racismo 

A professora Ana Kobetan relata que se tornou alvo de uma série de insultos após a gestão escolar se omitir em relação a denúncia de racismo feita por ela

Por Beatriz de Oliveira

31|05|2023

Alterado em 16|06|2023

Um caso de racismo não acaba quando o último insulto é dito pelo agressor. Ele se arrasta, gera males à vítima, e, em alguns casos, desencadeia mais situações de violência. Foi o que aconteceu com a professora Ana Paula Pereira Gomes, conhecida como Ana Koteban. No fim de 2022, ela denunciou uma situação de racismo que sofreu na escola em que lecionava. Nos meses que se seguiram, a questão foi ignorada pela gestão escolar e a educadora passou a lidar com uma série de ataques, incluindo ameaças de morte, enquanto reivindica justiça.

Ana Koteban é professora de Sociologia e dá aulas na rede municipal de São Paulo há 10 anos. No dia 26 de outubro de 2022, foi vítima de racismo na Escola Municipal Professor Linneu Prestes, na zona sul da capital paulista. Nessa escola, as listas de presença tem espaços para indicação dos nomes dos professores responsáveis pela aula. Ana Koteban foi avisada por uma colega que no espaço de sua aula estava escrita a palavra “macaca”.

lista de presença, caso de racismo

Lista de presença

©arquivo pessoal

A educadora levou a lista para a gestão da escola e pediu que houvesse um tratamento institucional. Nada foi feito. Então, Ana Koteban registrou um boletim de ocorrência (BO) na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). Além disso, levou o caso para a diretoria de ensino e fez uma denúncia contra a supervisão escolar por omissão caracterizada por racismo institucional. Também houve repercussão do caso na imprensa.

“Uma vez que a instituição não se posicionou em relação ao fato, aquilo virou objeto de debate e polêmica na unidade escolar sem qualquer critério de mediação. A direção da escola não fez o seu papel e simulou uma normalidade, como se nada estivesse acontecendo. Eu sigo fazendo as minhas reivindicações. Acabei dando algumas entrevistas para veículos de comunicação, que repercutiram também na escola. Como a instituição não se posicionou, eu passei a ser atacada por todos os racistas e pessoas que achavam que eu estava exagerando, que não tinha o direito de reagir dessa maneira”, pontua.

“Você merecia ser fuzilada”

Diante da falta de ação da gestão escolar, Ana Kobetan passou a cobrar uma postura antirracista, pauta que já tratava anteriormente na escola. Fez uma intervenção em todas as salas de aula falando sobre a gravidade do ocorrido. “Essa ação que eu estava fazendo sozinha deveria ser feita pela instituição”, afirma.

Por se posicionar, a educadora recebeu novos ataques. Numa reunião, o pai de um aluno disse a ela que não deveria ter publicizado o caso e que deveria ser afastada da escola. Um outro afirmou que ela fazia ideologia de gênero. Noutra ocasião, um aluno gravou a aula da professora e sua mãe ligou para a direção reclamando dos conteúdos passados por ela: direitos humanos, igualdade racial e de gênero, equidade.

Até que, algo ainda mais grave aconteceu. No dia 5 de dezembro, um aluno, diante da professora e do diretor, disse a ela: “você já deveria ter morrido, você merecia ser fuzilada”. Ao ouvir aquilo, a educadora conta que passou mal, “fiquei desestabilizada emocionalmente e com medo”. Somente nessa situação o diretor da escola fez um registro escrito do episódio, algo que não havia feito no caso de racismo anterior.

Com os novos ataques, Ana Koteban registrou outros dois boletins de ocorrência. Um por difamação e o outro por ameaça de morte. No início de dezembro, por recomendação médica, a professora se afastou da escola. Tentou retornar em fevereiro, mas foi informada de que o estudante que a ameaçou continuaria sendo seu aluno, então decidiu retomar o afastamento.

“Minaram o meu ambiente de trabalho, praticando todo tipo de empecilho, violência e ameaça a minha segurança, até que gerou-se uma situação em que não havia condições para que eu permanecesse lá. Não porque eu não tivesse equilíbrio para tanto ou estivesse doente, mas aquela situação e a maneira como ela foi conduzida, foi paulatinamente me adoecendo e me tirando as condições principalmente de segurança para permanecer naquele ambiente”, relata.

Mesmo afastada da escola, as ameaças e ataques racistas não cessaram. Ana Koteban tem recebido mensagens anônimas em suas redes sociais, que “faziam menção a grupos nazistas que me odiariam, diziam que eu deveria tomar muito cuidado, sinalizaram que como eu já havia sido vítima de racismo eu era um alvo preferencial e faziam menção à possibilidade à própria escola”. Essas mensagens foram recebidas no contexto em que ocorria onde de ataques a escolas no país.

Mulher negra de dread

Ana Kobetan é professora de Sociologia

©reprodução Instagram

“Só quem perde é a vítima”

Quem deu a mão para Ana Kobetan durante o enfrentamento aos ataques foram professoras negras, como ela. Em decorrência da repercussão da denúncia feita pela educadora, foi criado o Coletivo Antonieta de Barros. O grupo é formado por professoras negras de São Paulo que pautam há anos o combate ao racismo nas escolas e decidiram se juntar. “Pautamos essa questão como coletiva, como uma ameaça ao direito de todas nós, sinalizando como não é uma pauta individual”, pontua Ana Kobetan.

A primeira ação do coletivo foi a participação de uma reunião com o Conselho de Escola sobre o caso de Ana Kobetan. A partir daí o grupo continuou se reunindo, recebendo novas denúncias de racismo e discutindo políticas públicas necessárias para combater esse cenário.

Em março deste ano, lançaram o manifesto do coletivo, que pode ser assinado neste link. O documento aponta que a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo não dispõe de procedimento padrão para denúncias de racismo Também listam uma série de recomendações para o enfrentamento a esse cenário, como o registro imediato de uma ocorrência racista, formação de comitês antirracistas nas unidades escolares e disponibilização de informações sobre como denunciar.

“Nós, mulheres negras educadoras, que ao longo de toda História construímos as estradas por onde decidimos caminhar, afirmamos mais uma vez que não aceitaremos e não nos calaremos diante da contínua e violenta conivência institucional diante da violação dos nossos direitos”, diz um trecho do texto.

Nesse momento, Ana Kobetan está com dois processos judiciais. Um deles é administrativo, para apurar a responsabilidade institucional da gestão escolar. E o outro, criminal, que aguarda aprovação do Ministério Público, para investigar quem foi o autor do ato racista que ela sofreu.

A educadora destaca a necessidade de responsabilizar os gestores das escolas que se omitem diante de casos de racismo. “Não faz sentido a gente ter tantas leis e não ter de fato dispositivos legais que promovam justiça. Só quem perde é a vítima. A pessoa que me ameaçou e seus familiares continuam levando suas vidas normalmente. E a instituição inteira compactua com a naturalização disso”. Por fim, afirma: “a gente precisa seguir lutando”.

A falta de comprometimento com a luta antirracista não é exclusividade da escola em que Ana Kobetan leciona. Segundo estudo do Instituto Alana e do Geledés – Instituto da Mulher Negra, a maior parte da rede municipal de ensino do país não cumpre a Lei 10.639, que instituiu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” nas escolas. Os dados indicam que 53% dos municípios não realizam ações consistentes e contínuas para a aplicação da lei, enquanto 18% não realizam nenhum tipo de ação.

Ainda segundo o estudo, a aplicação de uma educação antirracista contribui “para o desenvolvimento de uma sociedade menos violenta e mais empática e, principalmente, fortalece a equidade na garantia de direitos para todas as pessoas”. Outros benefícios são o enfrentamento da evasão escolar e a formação integral do indivíduo.

Em entrevista em março de 2023 para o Nós, mulheres da periferia, a educadora Luana Tolentino afirmou que escola e sociedade devem caminhar juntas num processo de reeducação social. “Não dá mais para a escola ser um espaço em que há esse tipo de ação racista explícita, além de outras formas de racismo. É urgente que a escola assuma o compromisso de contribuir para a superação do racismo”, afirmou.