Rio de Janeiro (RJ), 15/08/2024 - Espaço de Desenvolvimento Infantil(EDI) Claudio Cavalcanti, em Botafogo.

‘Políticas climáticas que ignoram a primeira infância comprometem o futuro coletivo’, diz pesquisadora

Alicia Matijasevich destaca que os efeitos da crise climática em crianças variam de acordo com raça, classe social e território

Por Beatriz de Oliveira

22|08|2025

Alterado em 22|08|2025

A crise climática afeta profundamente bebês e crianças pequenas, ao comprometer o desenvolvimento infantil e ampliar vulnerabilidades. As crianças negras, indígenas e periféricas sentem ainda mais esses impactos. É o que aponta a publicação “A primeira infância no centro do enfrentamento da crise climática”, do Núcleo de Ciência Pela Infância (NCPI). 

Lançado em junho deste ano, o estudo destaca que a primeira infância, período que vai do nascimento até os seis anos, deve ser prioridade no orçamento público e nas políticas climáticas, assim como nas áreas de educação, habitação, saneamento, segurança alimentar e proteção social. 

Alicia Matijasevich, uma das pesquisadoras e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), explica que a primeira infância é decisiva para o desenvolvimento físico, cognitivo e socioemocional, e que nessa etapa o corpo está em rápido desenvolvimento, tornando esse público mais suscetível a infecções, desnutrição, problemas respiratórios. 

“Eventos climáticos extremos, como ondas de calor, enchentes e secas, agravam essas fragilidades com consequências imediatas, como a maior mortalidade infantil, atraso no desenvolvimento, maior incidência de doenças e efeitos de longo prazo, incluindo doenças crônicas, déficits cognitivos e prejuízos à saúde mental na vida adulta”, afirma. 

O estudo revela, entre outras coisas, que crianças nascidas em 2020 enfrentarão 6,8 vezes mais ondas de calor do que  as nascidas em 1960. Além disso, sofrerão mais que o dobro de incêndios florestais, secas e inundações. 

Mas a crise climática não afeta todos os bebês e crianças pequenas da mesma forma, pois seus impactos variam de acordo com raça, classe social e território. Crianças negras, indígenas e periféricas estão mais expostas a riscos ambientais, o que evidencia o racismo ambiental. 

“Isso ocorre porque as famílias dessas populações, em maior proporção, vivem em áreas de moradia precária, frequentemente localizadas em regiões de risco, como margens de rios, sujeitas a enchentes; encostas, sujeitas a deslizamentos; territórios sem saneamento básico ou expostos à poluição atmosférica e hídrica. Nessas condições, desastres climáticos têm efeitos mais devastadores, elevando o risco de doenças infecciosas, desnutrição e morte infantil”, pontua Alicia.

De acordo com a publicação, 33,6% das crianças na primeira infância que estão em situação de pobreza ou extrema pobreza integram famílias monoparentais, chefiadas por mulheres negras sem ensino médio completo. 

A depender da região do país, os impactos são sentidos de forma diferente. “Crianças das regiões norte e nordeste do Brasil, por exemplo, estão mais sujeitas a secas prolongadas, que agravam a escassez de água e a insegurança alimentar. Já no sul e sudeste, chuvas intensas têm provocado desastres recorrentes, com destruição de moradias e escolas”, explica a professora.  

A classe social também é um fator determinante. Em áreas urbanas, por exemplo, as famílias de baixa renda costumam estar localizadas em bairros com pouco acesso a espaços verdes. Segundo a pesquisa, territórios com alta densidade populacional e moradias precárias podem se tornar ilhas de calor, com temperaturas até 5 °C superiores às de áreas arborizadas.

No Brasil, a faixa etária de 0 a 6 anos representa 18,1 milhões de pessoas, o equivalente a 8,9% da população. Mas ao olhar para as famílias de baixa renda, com renda mensal familiar per capita de até meio salário mínimo, a proporção na primeira infância é de 15,9%. 

Diante desse cenário, é importante que a primeira infância seja um ponto central na formulação de políticas climáticas. “A crise climática não é apenas um fenômeno ambiental, mas também social. Ela expõe e intensifica desigualdades já existentes. Por isso, políticas de mitigação e adaptação precisam considerar interseccionalmente raça, classe e território, assegurando justiça climática e proteção integral das crianças desde a primeira infância”, afirma Alicia. 

A crise climática não é apenas um fenômeno ambiental, mas também social. Ela expõe e intensifica desigualdades já existentes

Alicia Matijasevich

O estudo aponta que o Brasil tem alguns marcos na formulação de políticas de proteção ambiental e social, como a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei nº 12.187/2009), o Plano Nacional de Adaptação (2016) e a Lei nº 14.904/2024, que estabelece diretrizes para a elaboração de planos de adaptação à mudança do clima. No entanto, há dificuldades para implementação, passando por desigualdades territoriais, escassez de recursos e falta de integração entre setores. Como forma de enfrentar esse cenário, os pesquisadores fazem algumas recomendações, como: 

Ampliação da cobertura da atenção primária à saúde, com foco em prevenção, nutrição e imunização;

Garantia de infraestrutura educacional segura e adaptada a eventos extremos;

Aumento do acesso a moradias dignas e ao saneamento básico;

Promoção de estratégias locais de segurança alimentar em comunidades em situação de vulnerabilidade.

“Políticas climáticas que ignoram a primeira infância, não apenas falham em proteger os mais vulneráveis, como também comprometem o futuro coletivo. A realidade é que apenas uma pequena fração dos fundos emergenciais globais é destinada às crianças, apesar de elas representarem um grupo populacional significativo e altamente impactado”, destaca Alicia. 

Para a pesquisadora, pensar a crise climática a partir da primeira infância significa “assegurar não apenas a sobrevivência, mas a possibilidade de um futuro digno para todas as crianças, e por extensão, para toda a humanidade”.