O que a morte de Kahtlen Romeu diz sobre as polícias no Brasil?
por Paula Guimarães do Portal Catarinas “Sua memória é à prova de balas”. É o que escreveram familiares e amigos no memorial de grafite em homenagem à jovem Kahtlen de Oliveira Romeu, no último domingo (13). Os muros que testemunharam o exato momento de seu assassinato, à luz do dia da terça-feira (8), na Comunidade […]
Por Jéssica Moreira
17|06|2021
Alterado em 17|06|2021
por Paula Guimarães do Portal Catarinas
“Sua memória é à prova de balas”. É o que escreveram familiares e amigos no memorial de grafite em homenagem à jovem Kahtlen de Oliveira Romeu, no último domingo (13). Os muros que testemunharam o exato momento de seu assassinato, à luz do dia da terça-feira (8), na Comunidade do Lins (RJ), agora exibem permanentemente sua imagem e palavras de ordem daqueles que exigem justiça.
Aos 24 anos, Kathlen estava formada em designer de interiores e já havia dado entrada na compra de um apartamento. Grávida de quatro meses, seu bebê se chamaria Maya ou Zayon. “Meu doce furacão, ela era intensa, ela era luz […] Eles destruíram duas vidas e eu quase perdi três”, emocionou-se Jacklline de Oliveira Lopes, 40 anos, mãe de Kathlen, durante a homenagem.
A terceira vida a se esquivar do alvo da polícia foi a avó materna da jovem, que estava com a neta no momento do disparo e se jogou sobre ela para protegê-la. Jaqueline pede investigação e punição dos atiradores, pois como afirmou “quem dá tiro a esmo é bandido. Policial dá tiro com mira. Eles têm que treinar e têm que respeitar a gente”.
Durante a homenagem, um representante da Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro responsabilizou o governador Cláudio Castro (PSC) e sua política de segurança pública pela morte da jovem e demais jovens negros e favelados no estado.
“Responsabilizamos também a Polícia Militar e repudiamos a versão oficial da corporação. A única que foi recebida à bala foi a nossa amiga. Exigimos uma investigação imparcial e independente pelas instituições do Estado. Exigimos também as garantias legais de proteção para familiares e testemunhas”, disse o ativista.
Memorial em homenagem à Kathlen leva cores e mensagens políticas aos muros do bairro onde foi atingida/Foto: Monique Messias de Souza
A jovem foi morta enquanto caminhava, acompanhada da avó, Sayonara Fátima de Oliveira, para levar uma marmita à tia que tem um centro de estética nas proximidades de onde foi atingida, no bairro Lins de Vasconcelos, no Rio de Janeiro.
“Quando passamos, a rua estava tranquila. Foi tudo muito de repente, a minha neta caiu. (…) Quando olhei era polícia de tudo o que é lado”, disse a avó à imprensa.
Em conversa com o Portal Catarinas, a madrinha de Kathlen, Monique Messias de Souza, 41 anos, relata que estava em casa, que fica ao lado do local, quando ouviu o disparo. “Eu estava na minha sala e foi como uma rajada, a gente até comentou ‘todo dia esse inferno, vai começar’, só que parou”. Avisada pelo irmão, ela logo chegou ao local do crime, mas Kathlen já havia sido socorrida na viatura da polícia. “Não teve confronto, por isso a gente pede investigação”, diz.
A esteticista conta que, há cerca de um ano, um jovem morador da comunidade morreu pelas mãos da polícia no mesmo local. “Todo o bairro sabe que ele não tinha envolvimento com o tráfico, mas saiu no jornal que ele era envolvido, como ele não tinha notoriedade como a Kathlen, então ficou por isso mesmo”, relembra.
Ela questiona a ação policial durante momentos de intensa circulação de pessoas no bairro. “A gente não pode pagar por uma guerra que não é nossa, se foi tiro da polícia ou bandido não importa. Como a polícia entra numa comunidade dessa maneira, duas horas da tarde, com todo mundo na rua, horário de comércio, de escola?”, questiona.
De acordo com o último o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 61% de todas as ocorrências policiais com morte no Rio de Janeiro, em 2019, aconteceram durante o dia, com maior frequência nos primeiros horários da manhã, período em que os moradores se deslocam para o trabalho e escola.
Lins de Vasconcelos é um dos poucos lugares onde a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) ainda está instalada no estado. O aumento da insegurança dos moradores das periferias após a instalação das UPPs foi tema de mestrado da vereadora Marielle Franco, que analisou a ocupação policial na Favela da Maré, onde nasceu e foi criada.
Marielle foi executada após fazer uma série de denúncias contra a violência policial na Favela do Acari. “[…] a política estatal de combate às drogas e à criminalidade violenta nesses territórios das favelas é caracterizada por estratégias de confronto armado contra o varejo do tráfico, em que as incursões policiais ou a permanência nesses locais reforçam a iminência de confrontos e cerceamento da vida cotidiana”, escreveu em trecho da tese publicada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
A família de Kathlen havia deixado a comunidade há um mês justamente por temer a violência contra os corpos dos seus. “Saiu do morro por causa dessas atuações, porque no Lins estava muito recorrente a atuação da polícia. Ela saiu da favela, ela e a mãe já moravam fora do morro, mas a avó continuava lá. Então, tem a paixão, o afeto, a familiaridade, porque as pessoas acham que quem mora na favela não tem laços familiares, que é filha de chocadeira, mas tem sim”, indigna-se Monica Cunha, do Movimento Moleque.
Kahtlen Romeu grávida de 4 meses/ Reprodução
Entre o vírus, a fome e a bala
A letalidade policial, que não respeitou nem mesmo a entrega de cestas básicas aos moradores durante a pandemia, levou o STF a determinar a suspensão temporária de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro. Em 5 de junho de 2020, o ministro Edson Fachin acatou o pedido feito na ADPF 635, a ADPF das Favelas, em defesa da vida dos moradores das periferias. Desde então, as operações só podem ser realizadas em casos excepcionais, com justificativa formal ao Ministério Público.
No mês da decisão, o número de mortes em decorrência de intervenções policiais caiu significativamente. Enquanto em junho de 2019, 153 pessoas foram mortas em intervenções policiais no Estado, em junho de 2020, sob a decisão do STF, o número de mortos pela polícia foi de 34, redução de 77,8% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Ocorre que, ao completar 11 meses da decisão, o Rio de Janeiro foi palco de uma das chacinas mais sangrentas de sua história. No dia 6 de maio de 2021, 28 pessoas foram executadas por policiais civis na Favela do Jacarezinho. Não por acaso a Chacina do Jacarezinho ocorreu dias depois das manifestações bolsonaristas que exibiram a faixa com os dizeres “autorizamos o presidente a ‘limpar’ o Brasil”.
“A gente vê que as polícias, seja a militar ou a civil, como vimos no Jacarezinho, tem tensionado esses limites da legalidade e disputado um regime de autoridade e de poder com o apoio de governantes de destaque no momento atual, que difundem ideias e valores morais que menosprezam a vida das pessoas. Em vez da possibilidade do Estado enquanto ente que deveria proteger a vida, que deveria proporcionar melhores condições de vida, o que temos visto é a ação dos agentes do Estado na produção de mortes, na omissão de atenção e cuidado”, analisa Flavia Medeiros, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Como contextualiza o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) no texto “Segurança como o estandarte da nossa eterna ‘Procissão de Milagres’” que abre o anuário de 2020, o projeto de nação que elegeu Bolsonaro e outros representantes pelo país, considera as mortes como a de Kathlen como efeitos colaterais aceitáveis desde que orientados contra inimigos internos. “Uma jovem que não teve direito à maternidade, como tantas outras que seguem viva, mas perderam a vida com a perda do filho. É dessa limpeza que estamos falando”, destaca o pesquisador do Fórum.
A fundadora do movimento Moleque, Monica Cunha, que perdeu seu filho Rafael da Silva Cunha aos 20 anos, executado por policiais civis do Rio de Janeiro, em 2016, afirma que a população que vive nas periferias do país está submetida ao terror do discurso político que autoriza práticas ilegais, como a execução de civis. “A gente nunca teve momentos de glória, mas estamos nos piores momentos, ter um miliciano no poder maior, e ter um omisso no Estado é o que há de pior, para eles nossas vidas não valem nada. Num momento de pandemia, em que deveríamos estar nos resguardando, temos que ir para as ruas lutar pelas nossas vidas, reivindicar que somos humanos, que merecemos estar nesse estado e cidade”, demarcou Cunha que, até recentemente, coordenou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Para o pesquisador do FBSP, o contexto de atuação em guerra das polícias brasileiras nestes territórios, nos quais a população negra foi lançada à própria sorte desde a abolição formal da escravatura, está em pleno desacordo com a noção de segurança pública que deveria estar a favor da ordem e do social, e não do “combate ao inimigo”. “O caso da Kathlen mostra que de fato não temos segurança pública. Essas mortes, que não estão de acordo com o regime democrático, são a permanência do autoritarismo ditatorial, e até mesmo o recrudescimento desse modo de encarar certos grupos não como cidadãos, mas como inimigos”.
A justificativa de guerra para a produção de mortes pela polícia, contestada por ativistas e pesquisadoras/es dos campos das ciências sociais, também foi alvo permanente de críticas de Marielle Franco. “[…] não há ‘guerra’ nesse processo. O que, de fato, existe ou está indicado é uma política de exclusão e punição dos pobres, que está escondida por trás do projeto das UPPs”, assinalou na dissertação de mestrado.
“Mãe que perde a filha não tem nome, tem buraco, tem dor”
Momentos após a morte de Kathlen, Monica Cunha, do movimento Moleque, foi até o hospital se solidarizar e colocar a sua luta à disposição dos familiares da jovem. “Eles destruíram literalmente uma família toda. Se as pessoas não entendiam o que é uma família desestruturada, quando o braço armado entra nela, olha para a família da Kahtlen (…) É um absurdo não termos direito de criar a nossa cria, de esperar o nosso momento, de construir a nossa família, que perdemos de uma hora para outra. De segunda para terça, Jaqueline acordou mãe e prestes a ser avó, de quarta para quinta, acorda sem filha e sem neto”, colocou a ativista.
A ativista entende a dor da mãe de Kahtlen. “O marido que perde a companheira vira viúvo, a filha que perde a mãe vira órfão, mas e a mãe que perde a filha não tem nome, tem buraco, tem uma dor, tem estatística, enquanto a gente viver a gente tem que provar, mas a minha filha não era bandida, não estava do lado errado, a gente tem que justificar até o fim, porque os corpos negros dos nossos filhos vivem estirados no chão. É desumano, é sofredor”.
Jacklline de Oliveira Lopes, 40 anos, ao lado da filha Kathlen Romeu, 24/Foto: arquivo pessoal
O caso de Kathlen é demonstrativo de que ser uma família “do bem” não livra a população negra de ver seus corpos marcados para morrer, como observa Cunha. “A gente vê uma família de negros, com a originalidade das nossas ancestralidades, que com certeza passaram por muito preconceito, mas que estavam sendo, na medida do possível, o que essa sociedade hipócrita gosta de exigir: uma família ‘Doriana’ [de comercial de tv]. Uma mãe graduada em administração de empresas, um pai graduado em educação física, uma filha casada, quer dizer, uma foto da família do bem, como essas pessoas hipócritas gostam de citar. Só que essa família do bem não teria nenhum problema dessa espécie, bala perdida, se não fosse negra”.
Para a historiadora e pesquisadora de relações raciais e de gênero, Wania Sant´Anna, a grave questão da segurança pública é resultado da ausência total de um sistema de seguridade social que garanta bem-estar às pessoas. “Pensam que podem transferir questões sociais para área de segurança pública, quando no fundo são da ordem da cidadania [..] ‘Adolescente em conflito com a lei’ é o termo legal para chamar jovens que cometeram algum delito, a questão é que a lei sempre teve em conflito com ele, isso é a linguagem jurídica consolidada para ver o tamanho da loucura do país”.
A historiadora lembra que a população periférica e negra paga a mesma carga tributária em produtos e serviços como qualquer outra, ou ainda mais porque representa parcela expressiva da população do país. “Eu não quero que o dinheiro do meu imposto sirva para isso. Eu não quero pagar essa segurança pública, não quero comprar a munição, o uniforme, a arma, combustível, pagar salário, pensão e nem aposentadoria de uma instituição que não me serve”, enfatiza.
Os alvos das ‘balas perdidas’
Ainda que Kathelen Romeu e o bebê que gerava em seu ventre, definitivamente não estivessem em confronto com a polícia, a tese comumente usada nestes casos de “bala perdida” tende a ser a mesma que tem garantido aos policiais brasileiros o chamado excludente de ilicitude, ou seja, a legalidade da ação e desresponsabilização do autor do disparo. “É super comum usarem o argumento do confronto, na verdade é uma narrativa única para todas as mortes praticadas pelas polícias”, afirma Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, as polícias brasileiras bateram o recorde de registro de mortes desde que o estudo foi iniciado em 2013, foram 6.357 pessoas, 80% delas negras, 99% do sexo masculino. Ao todo, 74,3% das vítimas de intervenções policiais eram jovens de no máximo 29 anos, percentual bastante superior à média das mortes violentas intencionais, nas quais jovens formam 51,6% das vítimas.
“Comparando com zonas de guerra, na Síria e civis ao redor do mundo, temos uma taxa de letalidade muito alta, isso ajuda a entender a intensidade do problema que a gente vive no Brasil”, destacou Pacheco.
No mesmo período, 62 policiais foram mortos em serviço, o que representa 1% das mortes de civis, 65% deles também eram negros, quantidade 30% inferior a de suicídios de policiais, que foi de 91. Se acrescentarmos o número dos que foram mortos fora de serviço (110), ainda assim a taxa fica em 2%.
“O caso de Kathlen mostra a face terrivelmente letal da polícia, o seu descontrole. Há polícias brasileiras que matam muito, desproporcionalmente, não se tem um controle do uso da força, também por conta do armamento utilizado, como o fuzil. Esse uso da força acontece de formas distintas em territórios diferentes. Quem ocupa esses territórios vulnerabilizados pela atividade policial são justamente as pessoas negras, e aí a vitimização das mulheres negras encontra esse fator da raça por estarem presentes nestes territórios”, afirma o pesquisador.
Não é difícil afirmar que a produção de mortes por agentes do Estado é recorrente e cotidiana, apesar de nem todas causarem comoção. “A morte de Kathlen é algo que é sintomático de uma política de segurança pública que funciona justamente para aprofundar as desigualdades e agir de forma punitiva e repressiva contra grande parte da população negra e pobre, moradora das favelas e periferias”, afirma Flavia Medeiros, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A missa de 7ª dia de falecimento de Kathlen Romeu foi realizada na última segunda-feira (14), com participação de familiares e amigas/os no Cristo Redentor/Foto: arquivo pessoa
O negacionismo sobre o massacre
A ideia de que as polícias brasileiras matam tanto quanto morrem nos chamados confrontos não tem base factual. Pelo contrário, a proporcionalidade de mortes de policiais em relação a de civis indica abuso no uso da força letal pelas polícias brasileiras. Se levarmos em conta os dados de 2019, para cada policial morto em serviço há em média 102 mortes de civis, enquanto pesquisadores consideram razoável a proporção de 10 civis para um policial (Paul Chevigny), 4 civis/policial (Ignacio Cano) e a polícia estadunidense 12 para um (FBI). Nos Estados Unidos, cuja população é 60% maior que a nossa, a polícia matou 1.099 civis em 2019, o equivalente a 20% da letalidade policial no Brasil, e teve baixa de 59 policiais no mesmo ano – 5% do total das mortes de civis praticadas lá.
“A tese do confronto e do excludente de ilicitude, legítima defesa da vida, não tem apego à realidade, é uma ficção. O ponto central de abordagem dessa questão é a desmistificação do que sustenta essa lógica. E o que sustenta esse discurso é a ideia de que as pessoas são perigosas, de que estavam em confronto, confronto que não tem apoio nenhum nos dados, não existem evidências deste confronto, muito pelo contrário”, avalia Pacheco.
Segundo o pesquisador, existe uma economia política da violência que tende a se alastrar pelos órgãos, instituições e mídia, conferindo legitimidade à essa atividade policial “autoritária e absolutamente antidemocrática”. “A narrativa da imprensa é praticamente a reprodução da narrativa da polícia, a polícia civil reproduz a narrativa da militar, o judiciário reproduz a da civil, essa continuidade da narrativa fictícia de que a gente vive nesse mundo do confronto acaba conferindo legitimidade à polícia”.
A historiadora Wania Sant´Anna tensiona as narrativas que sustentam a aparente simetria de força entre policiais e civis: “Falam que ‘está morrendo dos dois lados’, minha questão não é essa. Estão morrendo dos dois lados, e as pessoas no meio. Então, não se tem política de segurança pública. Essa questão de bandido é muito simplória, a questão é até onde a gente vai chegar com isso, porque já está claro que deu errado, há muito tempo, mas insistem”.
O uso excessivo da força pelas polícias brasileiras é identificado ainda pela proporção da letalidade policial em relação ao total de mortes violentas intencionais. Cerca de 13% do total de mortes no país são praticadas pela polícia, em algumas capitais, como no Rio de Janeiro, essa proporção chega a 30%.
Pesquisa publicada em 2019 pelo sociólogo Ignácio Cano, da UERJ, aponta que quando as mortes causadas pela polícia ultrapassam o limite de 10% há “sérios indícios de execuções e uso abusivo da força policial”. Além do Rio de Janeiro, outros nove estados brasileiros avançaram sobre essa média: Amapá (29,15%), Bahia (12,3%), Goiás (23,4%), Mato Grosso do Sul (11,4%), Pará (17,6%), Paraná (13%), Rio Grande do Norte (11,6%), São Paulo (21,3%), Sergipe (17,2%).
Enquanto as mortes violentas intencionais tiveram uma queda de cerca de 10% na série histórica de 2013 a 2019, passando de 55.847 para 47.796, as mortes praticadas pela polícia saltaram quase 200%, de 2.212 para 6.375. “A polícia atira no peito, não quer atirar nas pernas, é tudo da cintura para cima, ou seja, é para atingir órgãos vitais, não é para imobilizar […] As instituições vão construindo argumentos que a justifiquem, no caso da polícia militar é a forma como a instituição tem encontrado para justificar a sua existência, cada vez com mais mortalidade […] ela já encontrou na exclusão da população negra um lugar de existência, tanto que a gente tem esse cidadão na presidência”, afirma a historiadora.
Banalidade do mal
Embora o instituto do auto de resistência tenha sido abolido, a justificativa de confronto é sinônimo de excludente de ilicitude para os policiais brasileiros, ou seja, o argumento de que houve uma ameaça à vida do policial retira dele a responsabilidade criminal sobre a morte que, em tese, teria sido indispensável para proteger a própria vida. Ocorre que em territórios conflagrados, considerados em guerra, não há fronteiras para barrar o excludente de ilicitude: a polícia entra, mas a legalidade fica do lado de fora.
“Já fiz pesquisa no IML e pude acompanhar esse processo de uma mãe reconhecer o corpo de seu filho que foi atingido pelo projétil de um fuzil. A forma como Kathlen foi assassinada e a justificativa utilizada por aqueles que a mataram é recorrente, de que teve trocas de tiros e foi bala perdida, a mãe dela vai dizer que não teve nada disso, foi uma morte produzida pela ação de agentes do Estado”, afirma Flavia Medeiros, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Como explica Medeiros, a informação da situação de confronto só pode ser comprovada com investigação policial conduzida pela polícia civil. “O argumento de legítima defesa dos policiais deve ser tratado pelos investigadores e pela autoridade policial, o delegado, como uma versão de uma das partes. A investigação deve ser produzida com perícia, principalmente, além de ouvir testemunhas para conferir se a versão é verossímil ou não”.
Na análise da pesquisadora, que há dez anos estuda o tema da violência policial no Rio de Janeiro, o fato de Kathlen ter sido atingida por um disparo de fuzil explicita a normalização da banalidade com a qual os policiais têm lidado com esses equipamentos, cuja finalidade é necessariamente a produção de morte. “O uso do fuzil pelas polícias do Rio de Janeiro não é algo excepcional, é um tipo de armamento que faz parte do trabalho cotidiano dos policiais civis e militares no estado”.
Posição das polícias
Entramos em contato com as polícias civil e militar do Rio de Janeiro. A Polícia Militar informou em nota que a Delegacia de Homicídios da Capital investiga o caso. Em paralelo às investigações da Polícia Civil, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) instaurou um procedimento apuratório para averiguar as circunstâncias do fato. As armas utilizadas pela equipe foram apresentadas à autoridade e os policiais militares estão afastados do serviço nas ruas.
Já a Polícia Civil relatou que as investigações estão em andamento na Delegacia de Homicídios da Capital (DHC). A mãe e a avó da vítima prestaram depoimento, assim como cinco dos 12 policiais militares que estavam na comunidade e participaram da ação. As armas – 10 fuzis calibre 7.62, dois fuzis calibre 5.56 e nove pistolas .40 – foram apreendidas e encaminhadas para a perícia técnica. Diligências seguem para esclarecer todos os fatos e identificar de onde partiu o tiro que atingiu a jovem.
Entramos em contato com o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) para saber quantos policiais foram levados ao Tribunal do Júri, nos últimos anos. Porém não tivemos nenhuma resposta à demanda até o fechamento desta matéria.