Foto mostra mulher negra sendo atendida por dentista, simbolizando paciente de reconstrução dentária pelo SUS

Nova lei garante reconstrução dentária pelo SUS, mas exige comprovação de violência doméstica

Conversamos com Masra Abreu, da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), sobre a Lei 15.116/2025, seus avanços, os riscos de exclusão de mulheres em situação de vulnerabilidade e os caminhos para que a reparação seja, de fato, integral e transformadora

Por Amanda Stabile

24|04|2025

Alterado em 24|04|2025

No dia 2 de abril, a presidência da República sancionou a Lei 15.116/2025, que institui o Programa de Reconstrução Dentária para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica. A iniciativa garante, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), tratamentos odontológicos gratuitos, que incluem reconstruções dentárias, colocação de próteses, cuidados estéticos e ortodônticos, a mulheres que sofreram agressões e tiveram a saúde bucal afetada.

Para Masra Abreu, da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), a existência da lei é importante, porque dá visibilidade ao problema e reconhece a especificidade das situações de violência contra as mulheres. “Mulheres que sofrem violência, que têm suas vidas esfaceladas e seus corpos transformados, precisam acessar de forma prioritária os serviços públicos de saúde. Isso é essencial para tentar reconstruir suas vidas e sua autonomia”, aponta.

De acordo com a 18ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, pelo menos 1,2 milhão de mulheres foram vítimas de violência doméstica no país em 2023. Estudos alertam que danos na região da cabeça e pescoço são frequentes nesses casos, gerando traumas físicos e psicológicos profundos.

O estudo “Prevalência de traumatismos maxilofaciais causados por agressão ou violência física em mulheres adultas e os fatores associados: uma revisão de literatura”, de autoria de pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) por exemplo, revela que os traumatismos maxilofaciais (no rosto e na cabeça) decorrentes de violência contra mulheres apresentam uma prevalência, variando entre 24,4% e 81,0% dos casos analisados. Esses traumas têm maior incidência em mulheres jovens, economicamente dependentes e com menor nível de escolaridade.

Porém, um ponto que merece atenção em relação à nova lei é o artigo 3º, que exige que a mulher comprove que foi vítima de violência doméstica para ter acesso ao tratamento odontológico gratuito. As regras de como essa situação deverá ser atestada ainda não foram definidas pelo governo, mas esse ponto acende um alerta.

Se forem exigidas comprovações legais, como Boletim de Ocorrência (B.O.), medidas protetivas, laudos médicos ou psicológicos, exames de corpo de delito ou outros documentos formais, muitas mulheres podem ficar de fora do programa. Isso porque mais de 60% daquelas que sofrem violência doméstica e familiar não denunciam à polícia.

O medo é o principal motivo para 73% das mulheres não buscarem ajuda. Além disso, 81% das vítimas de feminicídio no primeiro semestre de 2024 nunca haviam registrado denúncia contra seus agressores.

“Essa exigência de documentação pode se tornar um impeditivo a um direito: o direito de reconstruir sua identidade física e emocional. Claro, o processo legal é importante, mas ele não pode ser uma barreira ao cuidado”, defende Masra.

Conversamos com a especialista sobre a nova legislação. Leia a seguir:

Nós, mulheres da periferia: A Lei 15.116/2025 foi sancionada com a promessa de garantir reconstrução dentária para mulheres vítimas de violência doméstica. Como vocês avaliam essa medida?

Masra Abreu: Acho que o primeiro ponto é reconhecer que essa lei ter sido aprovada e sancionada, no cenário que a gente tem hoje — especialmente com um Congresso Nacional conservador, que tende a não aprofundar análises sobre gênero, políticas para as mulheres e questões de equidade — já é um avanço. Pelo contrário, esse Congresso geralmente não pauta esses temas ou atua contra projetos nesse sentido.

Então, reconhecer que a violência contra as mulheres é grave no país — quase uma epidemia — e que essa violência tem crescido, é fundamental.

A existência da lei já é importante, porque ela visibiliza o tamanho do problema. E o que muda com essa nova legislação é justamente o reconhecimento da especificidade das situações, tratando-as como precisam ser tratadas.

Mulheres que sofrem violência, que têm suas vidas esfaceladas e seus corpos transformados, precisam acessar de forma prioritária os serviços públicos de saúde. Isso é essencial para tentar reconstruir suas vidas e sua autonomia.

Não estamos falando de um acidente de carro — que também é grave — ou de um acaso da vida, como uma queda. Foram atos intencionais. Esses corpos são modificados pela violência patriarcal e machista, que tenta desconfigurar a identidade e a autonomia das mulheres.

Nós: Antes da lei, como funcionava o acesso das mulheres a tratamentos odontológicos no SUS e o que realmente muda com a implementação da nova legislação?

Masra: Antes da lei, o que acontecia é que o acesso era muito desigual e atravessado por barreiras burocráticas e estruturais. O SUS até oferece tratamento odontológico, mas de forma muito limitada, especialmente em regiões mais vulneráveis. Quando uma mulher vítima de violência buscava atendimento, ela caía na fila como qualquer outra pessoa.

Com a nova legislação, o acesso passa a ser prioritário. Isso significa que o SUS terá que criar protocolos específicos para essas mulheres — inclusive com a oferta de reconstrução dentária, algo que antes era praticamente inexistente dentro da estrutura pública.

Esse reconhecimento é importante não só pelo acesso em si, mas porque ele afirma, de forma concreta, que essas violências precisam de uma resposta institucional diferenciada.

Isso pode significar para muitas mulheres a possibilidade de voltar a sorrir, a se ver no espelho, a conseguir emprego, a falar com mais clareza. É uma reparação simbólica e material.

Nós: A lei traz uma forte ênfase em tratamentos como próteses, estética e ortodontia. O quanto essa abordagem pode acabar reduzindo a reparação à dimensão estética, em vez de integrar as necessidades reais de proteção, autonomia e reconstrução da vida dessas mulheres?

Masra: Essa ênfase não reduz o tamanho do problema. A maioria das agressões acontece no rosto e nas partes genitais.

Quando mulheres são assassinadas, os ataques frequentemente miram o rosto, a vagina, os seios — porque o machismo usa justamente esses símbolos da feminilidade como alvos.

Então, muitas mulheres perdem parte do rosto, da fisionomia. As próteses são uma forma de tentar recuperar algo que vai deixar uma marca para sempre. Essa abordagem estética tem um papel importante, mas ela não pode ser a única.

É essencial que o tratamento seja multidimensional: psicológico, terapêutico, fisioterápico. Muitas mulheres perdem a arcada dentária, a fala, a visão — precisam de fonoaudiologia, fisioterapia. Tudo isso é parte essencial do processo de reconfiguração da vida.

Então, se for só estética, vira maquiagem. Mas se for parte de um conjunto de ações, aí sim pode ser uma política potente de reconstrução da dignidade, da autoestima e da autonomia.

Nós: O artigo 3º exige documentos comprobatórios da violência. Considerando o medo, a burocracia e a descrença institucional que muitas mulheres enfrentam, esse tipo de exigência pode excluir justamente as vítimas mais vulneráveis?

Masra: Sim, essa exigência é um problema. Nenhuma mulher vai chegar num posto de saúde com o corpo desconfigurado dizendo que foi um mero acidente. Mas obrigar essa mulher a passar por todo o processo na delegacia — que muitas vezes não está preparada — e fazer exame de corpo de delito pode ser, para muitas, um risco à própria vida. Esse caminho dificulta o acesso ao que a lei deveria garantir.

Muitas mulheres continuam em relações abusivas, onde a violência é contínua e crescente. Elas têm medo de denunciar. E ainda assim precisam de tratamento. O acesso à saúde deveria acontecer mesmo sem o processo legal formalizado.

Essa exigência de documentação pode se tornar um impeditivo a um direito. O direito de reconstruir sua identidade física e emocional. Claro, o processo legal é importante, mas ele não pode ser uma barreira ao cuidado.

Nós: Quais seriam, na avaliação da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), as políticas que deveriam caminhar juntas com a Lei 15.116 para que a reparação fosse de fato integral e transformadora?

Masra: Na avaliação da AMB, a Lei 15.116 vem como uma legislação complementar à Lei Maria da Penha. Ela reconhece diferentes formas de violência e cria mecanismos institucionais de enfrentamento à violência estrutural contra as mulheres.

Mas é preciso mais. Precisamos de políticas públicas que enfrentem o problema na sua raiz. O patriarcado e a misoginia são estruturais e exigem políticas robustas, que não apenas tratem os efeitos, mas enfrentem as causas.

A Lei Maria da Penha é nossa principal legislação de enfrentamento à violência contra as mulheres. E, infelizmente, nos últimos anos ela tem sofrido muitas tentativas de alteração no Congresso, que continua conservador, machista e patriarcal.

Essas tentativas dificultam que o poder público avance em programas de enfrentamento à violência. E a gente precisa lembrar que não se trata apenas de punir. A punição é necessária, mas precisamos também de prevenção.

A Lei do Feminicídio, aprovada em 2015, também foi um avanço ao qualificar os assassinatos por razões de gênero. Mas ela atua quando a violência já chegou a um ponto extremo.

Como movimento, buscamos transformar a sociedade. Isso significa trabalhar com os efeitos — pelos caminhos legais, jurídicos, de saúde —, mas também atacar a causa. Investir em educação, em prevenção, em transformação da estrutura que gera essa violência.

Mesmo com todos os avanços, os feminicídios continuam nos jornais todos os dias. É preciso enfrentar de forma robusta, com políticas públicas consistentes, para proteger as mulheres e construir uma sociedade menos violenta.