No Brasil, cerca de 180 mil crianças não têm acesso à pré-escola

Mesmo esta etapa de educação sendo obrigatória, muitas crianças enfrentam dificuldades de acesso à vagas ou à algum meio de transporte para chegar à escola; também é comum os próprios pais optarem por deixar a criança em casa

28|09|2023

- Alterado em 17|05|2024

Por Adriana Amâncio

Desde que saiu de Minas Gerais, onde vivia com os pais, Jennifer Yasmim Souza da Silva, de cinco anos, parou de frequentar o primeiro ano da educação infantil. Com o divórcio dos pais, ela foi morar com a avó, Ângela Maria da Costa, de 55 anos, no Conjunto Habitacional Cidade Sorriso 1, no município de Benedito Bentes, região metropolitana de Alagoas.

Ela não encontrou vaga na escola do bairro e muito menos nas escolas dos bairros vizinhos. “Dá uma pena, ela estava tão feliz na escola e, agora, eu estou com medo de cortarem o Bolsa Família, porque ela está fora da escola”, relata a avó, apreensiva. Jennifer é uma das quase 180 mil crianças com idade entre quatro e cinco anos, que estão fora da pré-escola, segundo dados do Todos Pela Educação, com base no Censo Escolar 2022.

Assim como Jennifer, em 2019, em Alagoas, havia 6.374 crianças fora da pré-escola, revela o estudo Desigualdade na Garantia do Direito à Pré – Escola, produzido pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Ainda segundo a pesquisa, esse estado possui a maior diferença entre crianças brancas e pretas. Enquanto o primeiro grupo possui 88,6% de taxa de escolarização, o segundo, formado por crianças pretas, tem 75,9%. O estudo também destaca que o acesso à escola se torna mais difícil para crianças pretas, em situação de pobreza, filhas de mães com 19 anos ou menos, com baixa escolaridade e com empregos informais.

A analista de Políticas educacionais do Todos Pela Educação, Daniela Mendes, afirma que como pano de fundo do número alarmante, está “uma desconexão entre oferta e demanda. Há falta de vagas, falta de transporte para que as crianças cheguem à escola. Mas há também um grande contingente de crianças que estão fora da escola simplesmente porque os pais não querem matriculá-las”, explica.

Segundo a Lei nº 9394/96, ou seja, a Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDB), a educação básica, da qual a etapa da pré – escola faz parte, é obrigatória. O artigo 5º , logo no início do texto, afirma que o “acesso à educação básica obrigatória é um direito subjetivo”, e completa, afirmando que “qualquer cidadão, grupo de cidadãos ou Ministério Público pode acionar o poder público para exigi-lo.” Já, o Marco Legal da Primeira Infância, instituído pela Lei 13.257, de 2016, em seu artigo 5º, reforça que a educação infantil é uma área prioritária para as políticas públicas da primeira infância.

Daniela acredita que a falta de conhecimento sobre a importância dessa etapa escolar são as razões para que muitos pais deixem os filhos de quatro e cinco anos em casa. “Ainda existe um mito de que a criança de um a seis anos é muito nova para aprender. Muitos pais não entendem que a criança está aprendendo desde o momento que têm contato com o mundo. A escola é muito importante para os vínculos sociais que a criança vai criar com o mundo”, explica.

O estudo “A relação entre educação pré-primária, salários, escolaridade e proficiência escolar no Brasil” , desenvolvido no Instituto de Ensino e Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) faz eco ao alerta de Daniela. Segundo a pesquisa, estudantes que frequentaram a pré-escola tiveram um desempenho escolar melhor na 4ª e 8ª série do ensino fundamental e na 3ª série do ensino médio. A pré- escola está associada ao aumento de um ano e meio de escolaridade e de 16% na renda, revela outro achado do estudo.

Trocando em miúdos, crianças que cursaram a educação básica têm melhor desempenho ao longo da trajetória escolar, o que reflete no acesso à renda. O trabalho de autoria dos pesquisadores Naercio Aquino Menezes e Andréa Zaitune relacionou o impacto da educação pré – primária (creche e pré- escola) e os salários, a escolaridade e a proficiência escolar. As bases de dados usadas nas análises foram a Pesquisa de Padrão de Vida (PPV) e o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).

Nos seis primeiros anos de vida, são formadas 90% das conexões cerebrais de uma criança. Na prática, significa que a criança está começando a vivenciar e definir o mundo a sua volta. Além de contribuir com a construção de uma série de valores importantes, que podem orientar a posição desta criança no mundo, a escola, nesta faixa etária, pode impactar no desempenho produtivo da criança no futuro.

Em seus estudos, o professor emérito de economia Henry Schultz da Universidade de Chicago e ganhador do Prêmio Nobel de Economia, James Heckman aponta que os países podem ter grandes ganhos econômicos ao investir na educação infantil.

Silvania Oliveira da Silva, de 44 anos, moradora do Residencial Jorge Quintella, também localizado no bairro Benedito Bentes, na periferia de Maceió (AL), colocou a neta, Laura Sofia Oliveira, em um reforço escolar para que ela não esquecesse o que já havia aprendido na escola. “Aqui, tem o Instituto Amigo da Periferia, que tem aula de reforço, eu matriculei ela para não esquecer as letras e os números”, explica a avó.

No início deste ano, Silvania matriculou a neta em uma escola privada. Ao perder a fonte de renda extra que ganhava para pagar a mensalidade escolar, ela se viu obrigada a retirar a criança da escola. Ela conta que ainda tentou matricular a garota nas escolas do bairro e dos bairros vizinhos, mas, infelizmente, não encontrou vaga. “Ela era uma menina calma, agora, está ficando levada”, afirma Silviania, se referindo à mudança de comportamento da neta, após a saída da escola.

Enquanto isso, no Sertão nordestino

Na contramão das estatísticas nacionais, o município de Carnaíba, localizado no Sertão do Pajeú, a 400 km do Recife, capital de Pernambuco, possui 122% das crianças de quatro a cinco anos matriculadas na rede de ensino. Além de atender aos estudantes do próprio município, a gestão ainda abriga crianças vindas dos municípios vizinhos. A população total do município é de 18.644 pessoas, de acordo com o Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2022.

A precisão nos números vem do cruzamento de dados de saúde básica com os dados da gestão escolar, explica a Secretária Municipal de Educação, Cecília Patriota. Eles cruzam os dados, o que permite ter uma ideia da quantidade de crianças fora da escola. “Eu peço esse filtro [crianças de quatro e cinco anos] separado para me ajudar a identificar se essas crianças estão na escola. Quem não está, vamos atrás. [Nos dados] da criança tem a idade, nome da mãe, o nome do agente de saúde, onde ela mora, fica fácil de ir atrás”, explica.

Além de fazer uma busca pelas crianças para inseri-las na rede de educação, Cecília conta que reorganizou as escolas para facilitar o acesso ao ensino infantil. “Nós eliminamos as escolas multisseriadas, e para evitar longos deslocamentos, adaptamos as escolas rurais, deixando as maiores, apenas para atender a educação infantil ”, explica.”, explica.

Turma da pré-escola

Turma da educação infantil em escola de Carnaíba

©Arquivo Secretaria Municipal de Educação de Carnaíba

Ainda de acordo com Cecília, o investimento na estrutura das 18 escolas de educação infantil é outra estratégia para garantir que as crianças cumpram o ano escolar. “Nós temos parques nas escolas, um lanche antes do início das aulas, além da merenda escolar, além de recursos para promover a educação inclusiva, ou seja, intérprete de libras para crianças surdas e professora de braile para estudantes cegas. Hoje, os pais se sentem mais seguros e buscam a escola para matricular os filhos”, observa.

Daniela Mendes não vislumbra mudanças no cenário de crianças fora da pré-escola sem que o Governo Federal coopere com os estados e municípios, hoje, responsáveis diretos pela educação infantil. “Também é um dever do Governo Federal apoiar os municípios na realização de mapeamento da demanda. Identificando onde há alunos fora da pré-escola, pois não basta criar mais vagas ou criar mais escolas, é preciso criar onde há necessidade”, arremata.

Adriana Amâncio Jornalista formada pela Universidade Joaquim Nabuco (PE) com 25 anos de experiência em assessoria de comunicação e reportagem nas áreas de direitos humanos, gênero e meio ambiente. É repórter de Inclusão e Diversidade no Colabora – jornalismo sustentável. Já recebeu o Prêmio Sassá de Direitos Humanos, além de ser premiada por As Amazonas, Abraji e pela Embaixada dos Estados Unidos com o podcast “Cidadãs das Águas”.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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