‘Não tenho paz há 1096 dias’: 3 anos do Massacre de Paraisópolis
Mortes de jovens negros por policiais multiplicam-se pelo país à medida que responsáveis seguem impunes; mães atuam como ‘promotoras da justiça’ e preservam memória dos que se foram.
Por Beatriz de Oliveira
07|12|2022
Alterado em 09|12|2022
Às 15h do dia 1º de dezembro, um grupo de pessoas se reuniram na Praça da Sé, centro de São Paulo. Eram, em maioria, mulheres que usam camisetas brancas com rostos de diferentes jovens pretos estampados. A escadaria que dá acesso a Catedral da Sé toda preenchida com faixas e cartazes. “1096 dias sem nossos filhos”, dizia um deles.
O ato marcou os três anos do Massacre de Paraisópolis. Familiares e outros manifestantes pediam justiça pelos nove jovens assassinados numa das favelas da capital paulista. O objetivo era também preservar a memória dos que se foram.
Nove cartazes traziam o nome e a foto de cada uma das vítimas: Denys Henrique Quirino da Silva, Gustavo Cruz Xavier, Gabriel Rogério de Moraes, Mateus dos Santos Costa, Bruno Gabriel dos Santos, Dennys Guilherme, Marcos Paulo, Luara Victoria de Oliveira e Eduardo Silva.
O massacre aconteceu em 1º de dezembro de 2019, quando policiais militares realizaram uma operação no baile da DZ7, que acontece há uma década em Paraisópolis, Zona Sul de São Paulo. Os policiais cercaram o quarteirão em que acontecia a festa usando bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha.
A multidão se dispersou, muitos jovens não eram moradores do local e não conheciam as saídas da favela. Uma parte deles parou na Viela Três Corações, onde foram encurralados por policiais. Ali, morreram as nove vítimas entre 14 e 23 anos de idade.
Próximo das 15h30, uma mulher pega o microfone e dá início ao ato “Os 9 que perdemos – 3 anos do massacre de Paraisópolis”. É Maria Cristina Quirino Portugal, mãe de Denys Henrique Quirino, que aos 16 anos morreu no massacre.
“Nós estamos aqui reunidos para poder fazer uma manifestação de repúdio, de ódio”, diz e continua “porque é o que eu sinto quando eu tenho que vir aqui falar da minha dor, eu sinto ódio da justiça”.
Daí em diante, familiares das vítimas e demais presentes foram convidados a fazer uso do microfone para expressar suas dores, saudades e clamores por justiça. Às 17h , houve uma missa na Catedral da Sé presidida pelo padre Julio Lancellotti em memória das vítimas.
Adriana Regina dos Santos, mãe de Dennys Guilherme dos Santos Franco, que morreu aos 16 anos no massacre, é uma das que decide tentar colocar em palavras seus sentimentos.
“Eu não consigo mais montar uma árvore de natal na minha casa. A gente não tem estrutura psicológica pra ficar feliz, pra ficar bem”, afirma. “Eu não tenho paz há 1096 dias.”
Adriana Regina dos Santos é mãe de Dennys Guilherme dos Santos Franco, que morreu aos 16 anos no massacre.
©Beatriz de Oliveira
“A gente está há três anos na busca por memória, verdade e justiça, e até agora nada. Se a gente se trancar só na nossa dor, que é muito grande, aí é que a justiça não vai acontecer”, pontua.
Após sua fala no ato, em conversa com o Nós, mulheres da periferia, Adriana conta mais sobre sua indignação. Apesar de ser doloroso, ela considera como uma obrigação realizar atos em memória às vítimas do massacre.
Um dos valores que Adriana passou para o filho foi exatamente sobre justiça. “Eu ensinei pra ele [meu filho] que tudo que ele fizesse tinha consequência. Tiraram a vida dele, e eu ainda não vi eles pagando pela consequência de tirar nove vidas”.
Mães são ‘promotoras’ da justiça
A doutora em Direito Inara Firmino explica que o papel das mães é essencial nos casos como o do Massacre de Paraisópolis, em que cidadãos negros e periféricos são mortos por policiais. Essas mulheres atuam num papel de “promotoras da justiça”, ao lutar, por exemplo, contra a narrativa dos policiais, que geralmente falam em legítima defesa e resistência das vítimas, o que é contestado a partir da versão de testemunhas.
“Essas mães e familiares atuam contra isso, apresentam uma contra-narrativa e impulsionam o sistema de justiça a promover investigações e não ficar com uma análise inicial, pressionam o Ministério Público a atuar no processo”, explica.
Além disso, as mães apoiam umas às outras por entender o que é a dor de perder um filho. No ato realizado na Praça da Sé, estavam presentes mulheres que perderam seus filhos em diferentes casos de violência policial ocorridos em periferias de São Paulo. Elas abraçaram umas as outras, se consolaram a se incentivavam a irem falar no microfone. }
Uma das presentes era Márcia Gazzarolli, coordenadora do Movimento Mães de Maio da Leste, que perdeu seu filho Peterson Conti Senoreli, conhecido como Renatinho, em 2015, após ele ser espancado por quatro policiais. “Renatinho, presente”, gritou ela em dado momento. “Presente!”, responderam os demais manifestantes.
São muitas as mães que choram a morte de seus filhos pela violência policial. Pesquisa do Observatório da Segurança “Pele alvo: a cor que a polícia apaga” lançada em novembro de 2022, com dados referentes ao ano de 2021, mostrou em números o porquê da polícia ser o núcleo duro do racismo no Brasil.
Maria Cristina Quirino Portugal ao lado de manifestantes
©Beatriz de Oliveira
Segundo o boletim, ao menos cinco pessoas negras são mortas por policiais todos os dias. Em São Paulo, apesar da redução no número de mortes com a adoção de câmeras nos uniformes dos agentes, a cor dos que se foram não mudou: 69% eram negros.
Na Bahia, o estado com maior letalidade policial do nordeste, uma pessoa negra é morta pela polícia a cada 24h. Em 2021, foram 603 mortes. O Rio de Janeiro é o estado com maior número de mortes, com registro de dois assassinatos de pessoas negras pela polícia por dia. É também aquele com maior quantidade de chacinas. Dos 57 registros policiais com três vítimas ou mais, 30 apresentam totalidade de vítimas negras.
Inara Firmino é uma das integrantes do Núcleo de Justiça Racial da Fundação Getulio Vargas (FGV), que realizou a pesquisa “Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros: Contextos Sociais e Narrativas Legais no Brasil (1992-2020)”.
O estudo avaliou oito casos de letalidade policial, incluindo o de Paraisópolis. Os pesquisadores constataram que mesmo com ampla repercussão midiática e mobilização social, o sistema de justiça foi ineficaz em responsabilizar os policiais envolvidos.
A falta de ação do Ministério Público (MP) e a anulação de veredictos do Júri foram algumas das similaridades encontradas nos casos. São eles: Massacre do Carandiru (1992); Favela Naval (1997); Chacina do Borel (2003); Caso Amarildo (2013); Chacina do Cabula (2015); Massacre de Paraisópolis (2019); Caso Luana Barbosa dos Reis (2016); e Caso João Alberto Freitas (2020).
“Nos oito casos analisados foram 140 mortes. Desse total, apenas nove policiais tiveram condenações confirmadas. Algumas condenações foram desfeitas em anulações de decisões que vieram do tribunal do júri”, afirma a advogada.
Em relação ao Massacre de Paraisópolis, 13 policiais são acusados de envolvimento nas mortes. Doze deles foram enquadrados pelo Ministério Público Estadual como réus por homicídio qualificado, quando assumem o risco de matar. Casos como esse costumam ser levados a júri popular. No entanto, ainda não há data prevista para o julgamento. Antes disso, deve acontecer a primeira audiência do caso, marcada para 25 de julho de 2023, em que serão ouvidas vítimas sobreviventes, testemunhas e acusados.
Outro destaque sobre a atuação das mães e movimentos sociais em crimes como esse é a inserção do racismo como fator central para os assassinatos. O Massacre de Paraisópolis, assim como o caso de Luana Barbosa, Amarildo e João Alberto, foram denunciados ao Judiciário tendo o racismo como causa das mortes. Ao longo da evolução do processo, no entanto, esse item é excluído, conforme aponta Inara Firmino.
Tia e avó de Gustavo Cruz, que morreu aos 14 anos no massacre
©Beatriz de Oliveira
Para a pesquisadora, as mulheres que vivem o luto e a luta pela perda de seus filhos são guardiãs de suas memórias. Elas permitem que a sociedade não esqueça desses jovens, da forma que mortos e quem foram os responsáveis.“Que principalmente a gente não esqueça da ação deliberada desses policiais, foi uma incursão direcionada a um baile que acontece há mais de dez anos, e que a gente sabe qual é o perfil das pessoas que estão ocupando esse espaço”, afirma se referindo ao Massacre de Paraisópolis.
No ato que marcou os três anos do massacre também estavam presentes mulheres negras que ingressaram na política institucional, como Luana Alves, vereadora de São Paulo pelo PSOL, e Paula Nunes, codeputada estadual integrante da Bancada Feminista do PSOL.
“Os nove que nós perdemos têm nome, têm família, têm território e têm também uma grande rede que faz parte da luta incessante por justiça.”, afirmou Paula.
A palavra “justiça” foi a mais repetida naquela tarde. Para Renata Cruz, tia de Gustavo Cruz, morto aos 14 anos no massacre: “Toda vez que a gente vem aqui [no ato em memória dos jovens] parece que a gente tá enterrando ele de novo. Quando a justiça não é feita, o sentimento que fica na gente é esse. A gente enterrou, mas falta sempre alguma coisa: a justiça”.
A advogada Inara Firmino pontua que os jovens e familiares além de serem vítimas da letalidade policial, são vítimas também do sistema de justiça, que não atua para punir os assassinos. “Por mais que os juízes não tenham apontado a arma para essas pessoas, são eles que estão com a caneta na mão, que estão dando as sentenças ou não. O não responsabilizar esses policiais é dar anuência e legitimidade para essa atuação de violência policial que é comum”, diz.