
Nita de Cotijuba: “Eu sobrevivi a uma vida cruel na periferia de Belém do Pará. Eu sou mestra de sobrevivência!”
Conheça a história de Rubenita da Silva, paraense que foi doada na infância, sobreviveu ao massacre de Eldorado dos Carajás e hoje canta o carimbó como resistência
Por Amanda Stabile
18|06|2025
Alterado em 18|06|2025
Rubenita da Silva foi doada pela mãe aos sete anos para ser criada por um casal que vendia biscoitos. “Eles me acharam engraçadinha, me pediram e minha mãe consentiu. Disseram para minha mãe que seria para estudar”, lembra. Não houve escola. O que houve foi trabalho.
Logo a menina, criada livre em Ourém (PA), acostumada a brincar, tomar banho de rio e comer frutas do pé, se viu confinada dentro de uma casa grande, cuidando de outra criança. Cresceu em condições difíceis no bairro Sacramento, em Belém do Pará. Lembranças que a mente preferiu esquecer.
“Na época, o bairro era conhecido como ‘Sacra Bala’, um lugar violento e precário. As casas eram palafitas. Fiquei lá por uns cinco anos, mas há partes da minha infância que não consigo lembrar. Acho que minha mente apagou os momentos mais dolorosos para me proteger”, conta.
Com a chegada do irmão mais velho à capital, as coisas melhoraram um pouco. “As pessoas passaram a me poupar mais de algumas coisas, porque ele estava lá”.
Aos 15 anos, Rubenita foi morar com uma família evangélica e começou a se envolver com a igreja. Frequentar cultos, aprendeu sobre religião. “Isso acabou moldando parte da minha visão de mundo”.
Com o tempo, conseguiu ajudar seus irmãos a saírem do interior e construírem suas vidas em Belém. “Sou de uma família grande, somos 12 irmãos agora, pois perdemos um. Ajudei cada um a se estabelecer, arrumar trabalho, até que todos conseguissem ter suas casas próprias”.
Antes de se reinventar na militância, foi doméstica, sacoleira, cozinheira, vendedora de marmitas, entre diversas outras coisas. “Sempre lutei pelo que queria. Por exemplo, se via um sapato ou uma roupa bonita numa vitrine, eu trabalhava o ano inteiro, mas conseguia comprar. Isso era meu jeito de dizer que também podia conquistar as coisas”.
O nascimento de Nita
Foi no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que Rubenita encontrou a identidade que carrega até hoje. “O nome ‘Nita’ nasceu lá, em 1996, nas atividades culturais do movimento. Foi onde passei a me reconhecer como mulher preta e trabalhadora. Antes disso, eu não sabia quem eu era. Era só alguém tentando sobreviver”.
Encontrou o movimento aos 26 anos, enquanto procurava um irmão desaparecido. Encontrou-o no sul do Pará, perto da divisa com o Mato Grosso, um lugar marcado pela miséria e a violência. “Era uma região de muita pobreza e opressão, onde o MST era a luta dos sem terra — os mais vulneráveis dali”.
Rubenita chegou no movimento com medo, mas logo encontrou a coragem e a si mesma. Logo assumiu um posto de coordenação.
“No início, participei de acampamentos. Para quem não sabe, acampamento é quando você ocupa uma área ainda não oficializada. Ficamos debaixo de lonas pretas, sem nenhuma estrutura. Já o assentamento é quando você conquista a terra e pode construir uma casa com luz, água, e tudo mais”, explica.
Sob as lonas pretas, cuidava das famílias e resolvia os conflitos: “Cuidava das mulheres, dos homens que batiam nas mulheres, dos filhos, dos que usavam drogas. Era a disciplina geral”, lembra. Os grupos eram organizados em núcleos de até 100 famílias. “Coordenar era dividir tarefas, organizar alimentação, resolver brigas. Tudo com firmeza, mas com foco no coletivo”.
Massacre de Eldorado dos Carajás
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O episódio mais brutal de sua vida aconteceu em 17 de abril de 1996, no município de Eldorado dos Carajás, também no Pará. Na ocasião, milhares de trabalhadores do MST marchavam, cobrando a desapropriação da fazenda Macaxeira. “Estávamos há três meses na mata, com malária, fome e sem remédio. Depois de cinco dias de caminhada, decidimos ocupar a estrada”.
A PA-150 foi bloqueada, no km 95. Segundo Rubenita, a polícia, que já acompanhava o grupo, recebeu ordem para desobstruir a pista “a qualquer custo”. E a ordem foi cumprida com tiros, cavalaria, bombas e cães. Nita estava ali, coordenando seu grupo. Ao ver a movimentação, saiu da sua posição para tentar entender o que estava acontecendo.
“Sou curiosa. Fui me aproximando. Quando senti, foi como um estouro. Achei que fosse bomba. O chão levantou com o impacto. A bala atravessou minha mandíbula, cortou minha língua. Não senti dor. O sangue descia e eu não conseguia falar. Vi os corpos caindo, vi gente sendo assassinada na minha frente”, lembra.
As horas seguintes foram de puro terror. “Eles mandavam a gente abaixar a cabeça para não ver. Mas eu via. Os corpos sendo alinhados, um do lado do outro”. Sem atendimento, foi levada por companheiros para dentro do mato. “Passei mais de 24 horas sangrando, com dor. Sem socorro. À noite, no escuro, escorrendo sangue pela boca, eu pensava: agora eu morro aqui”.
Só no dia seguinte, uma comissão conseguiu chegar com um pequeno avião e levar os feridos mais graves para Belém. “Quando entrei no hospital, me senti derrotada. Sem documento, sem família por perto, com a mandíbula estilhaçada. Não fui operada logo. Só estabilizaram o sangramento”.
Seguiram-se anos de cirurgias e tratamentos. “Passei dois anos me alimentando com comida pastosa”, conta. A bala continua alojada, ainda hoje, entre a carótida e a jugular. “O médico disse que é mais seguro deixar do que tentar tirar. Qualquer movimento errado pode ser fatal”.
Recomeço em Cotijuba
Mesmo com dor constante durante anos, Nita voltou à militância. Mas depois do massacre e da luta pela terra, não conseguiu permanecer no assentamento. “Havíamos conseguido a terra, casas, energia, tudo que tínhamos reivindicado. Mas quantas pessoas morreram para que isso fosse possível? Eu sentia que não conseguia comemorar algo que veio com tanto sofrimento”.
O recomeço veio na forma de uma ilha. Foi na travessia com o movimento até a Ilha de Cotijuba, na baía de Guajará, em Belém (PA), que Nita sentiu, quase como um chamado, o que buscava. “No segundo dia, passei por um lugar e disse: ‘eu quero uma casa aqui’”, recorda. Algum tempo depois, comprou um pedaço de terra exatamente onde havia sonhado. Começou com uma pequena casa, foi ampliando aos poucos, até construir seu refúgio definitivo.
Na ilha, encontrou mais do que paz. Encontrou uma nova forma de luta: a cultura. Engajou-se em movimentos culturais e no Movimento de Mulheres das Ilhas de Belém (MIBE). E reencontrou sua antiga paixão: a música. “Sempre gostei de cantar. No MST já participava das atividades culturais, cantando sobre a luta. Aqui, essa paixão ganhou ainda mais força”.
A música, que começou nos cultos evangélicos da juventude, passou a ser ferramenta de resistência. No carimbó, tradicional ritmo amazônico, Nita encontrou o caminho para dar voz às suas histórias e às de seu povo. “Minhas músicas falam do meu lugar de fala: da água, da areia, da natureza. É o que eu vivo. É a minha ilha”.
Com o tempo, recebeu o reconhecimento que antes hesitou em aceitar: tornou-se Mestre Nita. “No carimbó, para ser Mestre normalmente é preciso ter muitos anos de trajetória, fabricar instrumentos, compor, contribuir para a comunidade. Eu não cumpro todos esses requisitos. Mas minha vida de luta e resistência me trouxe até aqui”.
Eu sobrevivi a uma vida cruel de periferia em Belém do Pará. Sobrevivi ao massacre. Levei um tiro. Eu sou mestra de sobrevivência, de saber me reinventar. A vida me fez assim.
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Carimbó de Roda em São Paulo
Depois de todos esses anos no Pará, a vida trouxe novos caminhos. “Deixei minha casa na ilha e um emprego de carteira assinada e vim para São Paulo. Não foi só pela música — a música ficou em terceiro lugar”, ri. Havia outro motivo: o reencontro com um amor antigo, perdido no tempo.
“Na pandemia, uma antiga namorada me encontrou depois de 12 anos sem contato. Eu não usava nem WhatsApp, só aquele celular lanterninha. Minha irmã que me obrigou a mudar, comprou um celular, fez minha conta no aplicativo. Foi assim que o reencontro aconteceu”, conta.
Nessa mesma época muitas músicas começaram a brotar. Nita de Cotijuba diz que não foi ela quem criou as músicas — foram os encantados que deram. “Desci na pedra, em frente à minha casa, na praia da Pedra Branca. Eu falava sozinha, pedindo: ‘Encantados da mamãe, vocês têm que me dar uma música’. E a música vinha”, revela.
A pandemia, para ela, foi um ponto de virada. Veio também a fé. Dessa conexão com a espiritualidade nasceu “Mãe Ribeirinha”, sua primeira composição. Inspirada na fala de uma criança que procurava a mãe que tinha saído para pescar:
Ô menina, cadê tua mãe? — Ela saiu pra pescar, foi pro lado de Cotijuba na praia do Vai Quem Quer
A música veio inteira, como se estivesse pronta, apenas esperando ser cantada. Depois veio outra, e mais outra. Em pouco tempo, compôs uma sequência que até hoje considera um presente.
Foi com esse repertório que decidiu aceitar o convite para vir a São Paulo. A viagem surgiu a partir de um contato com uma ativista do turismo de base comunitária que conhecia seu trabalho no MIBE. “Ela disse: ‘Te prepara e traz teu tamborzinho.’ Aí eu pensei: que música vou cantar em São Paulo? As minhas falam de peixe, de pedra, de encantado. Aí falei com os encantados de novo: ‘Vocês têm que me dar uma música pra São Paulo’”.
E eles deram. “Carimbó de Roda” nasceu entre a rede e a varanda, olhando o mar. Na letra, Nita fala de São Paulo, Belém, Santarém, Macapá. O carimbó, antes visto como um ritmo do norte, agora roda com ela também no sudeste.
O carimbó de roda toca em Belém do Pará, onde tem meninas faceiras e suas saias a rodar…
Hoje, aos 63 anos, Nita continua compondo — mas sente que longe da ilha as músicas custam a chegar. “Aqui em São Paulo eu fiz uma música só. Fui para Paraty (RJ), sentei na pedra, falei com os encantados. Mas acho que eles não estão aqui”. Em julho, ela volta. Quer reencontrar o silêncio, as pedras, os encantados.
No dia 13 de junho, Nita lançou oficialmente o single Carimbó de Roda com um show especial no Sobrado Tucupi, em São Paulo. Acompanhada por jovens músicos e instrumentos tradicionais — curimbó, maracas, banjo, flauta —, conduziu o público a um mergulho na sonoridade amazônica. As saias rodaram, o público entrou na roda e a força coletiva do carimbó tomou conta da noite.
O single, gravado à beira da praia de Cotijuba, agora circula nas plataformas digitais, como parte da produção de seu primeiro álbum, pelo selo Raiz Voadora. “O carimbó é mais do que um ritmo. É memória, é resistência. É roda, é força ancestral. E também pode ser urbano. São Paulo tem coco, maracatu, jongo — por que não carimbó também? Trazido por uma mulher preta, com história de luta”.