“Mesmo com cotas, USP precisa se reinventar para ser mais preta”

Estudantes vibram com as cotas raciais na USP e mostram quais são os principais desafios para a permanência e integração dos novos estudantes

Por Jéssica Moreira

31|01|2018

Alterado em 31|01|2018

Quando Aryani Marciano chegou ao curso de Artes Visuais da Universidade de São Paulo (USP), em 2014, soube logo que este seria um dos maiores choques culturais de sua vida. A estudante, moradora do Morro Doce (região noroeste de SP), era uma das poucas jovens negras e da periferia em sua sala.
Passados quatro anos, Aryani vibra com a aprovação das cotas raciais e sociais adotadas pela USP  neste ano, mas relembra como a universidade ainda precisa se reinventar para realmente garantir a permanência e integração da população preta em seus cursos. Dentre os diversos desafios está, por exemplo, a necessidade de pensar um currículo que traga os conhecimentos e cultura afro-brasileiros para dentro da sala de aula.
“Como a universidade vai receber essa parte da população que sempre foi mantida distante do mundo do conhecimento legitimado? Como vai, de fato, fazer o sistema de cotas funcionar sem criar mais barreiras, como foi o caso dessas notas mínimas inalcançáveis do Sisu?”, questiona a estudante.

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Aryani Marciano | Créditos: Mariana Gonçalves

©Mariana Gonçalves


COTAS
Este é o primeiro ano que a USP adere às cotas, sendo a última, dentre as três universidades estaduais de São Paulo, a entrar no sistema. Em 2018, foram reservadas 37% das vagas de cada unidade de ensino e pesquisa. Já em 2019, o total será de 40% para cada curso de graduação e, em 2020, o montante de vagas deve chegar a 45%.
O objetivo é que até 2021 e nos anos seguintes o total de vagas destinadas chegue a 50% por curso e turno. As reservas irão considerar os dois tipos de processo seletivo para ingressar na universidade, que são a Fuvest e o Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
“Fica muito claro, quando você chega na universidade, que lá não é lugar para quem vem de escola pública. A proporção de pessoas negras e pessoas brancas é ridícula. Eu acredito que as cotas têm muito o que agregar em muitos sentidos e foi uma grande vitória do movimento negro dentro da USP, que luta por isso há muito tempo”, concorda Sabrina Martins, estudante de Física, negra e da periferia, que passou atravessou até mesmo problemas de saúde para continuar no curso.
Leia a história de Sabrina: As figuras escondidas da periferia e as meninas que sonham em ser cientistas
A questão ganhou novo fôlego com a divulgação do resultado do Sisu nesta segunda-feira (29). Uma matéria publicada pelo Estadão mostrou que, em Medicina, por exemplo, apenas uma pessoa entrou por cota racial e 8 de escola pública, de um total de 15 vagas que poderiam ser atribuídas a pretos e 25 por alunos de escolas públicas. A nota de corte do curso era de 700 pontos para todas as habilidades.
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Sabrina Martins, estudante de Física da USP, quando passou no vestibular em 2014| Arquivo pessoal


“Quando você entra em contato com gente que estudava nas melhores escolas do Brasil, que tinha feito intercâmbio no ensino médio, isso parece uma realidades absurda. São pessoas com esse ensino de ultra qualidade que estão tendo acesso à faculdade. E eu me senti muito injustiçada”, relembra Aryani.
Em janeiro deste ano, uma pesquisa sobre o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2016 mostrou que 72% dos estudantes que tiraram as mil maiores notas no exame são meninos, mesmo as garotas representando a maioria no número geral de inscrições.
Os números mostram não só uma disparidade de gênero, mas também racial. Dentre as notas mais altas, que são aquelas acima de 781,68, só 6% são de jovens negras, enquanto os meninos brancos totalizaram quase 50% das melhores notas, no entanto, representam 15% dos inscritos.
Para além da entrada, as estudantes apontam as preocupações também na permanência dos novos estudantes. “Meu curso sai muito caro. Temos que comprar muito material de pintura, desenho, papel, gravura, fotografia, e o departamento não dá nada. Às vezes, os professores não entendem por que você não pode fazer tal trabalho, porque tu não tem dinheiro para o papel tal.  Eu sou uma dessas exceções. Vão ter que repensar quando sempre tiver metade da turma que não vai ter condições. Acho que pode mudar tudo”, aponta Aryani.
Sabrina salienta que é importante apoiar os novos alunos para evitar índices de evasão. “É muito mais difícil para uma pessoa que vem de escola pública, que não tem grana, se manter dentro da universidade. Muitos cursos da USP você não consegue fazer direito se você trabalha. Não adianta dar universidade, mas não dar auxílio-permanência para esse/a jovem. Então, eles têm que trabalhar e há riscos da evasão dos cursos aumentarem. Se aumento o número de ingressantes de baixa renda você tem que aumentar o suporte, não diminuir o suporte”.
VITÓRIA DO MOVIMENTO NEGRO
Aprovada em julho de 2017, a ação foi considerada histórica para o movimento negro e estudantil de todo o país. “Esta é uma vitória histórica do movimento negro de São Paulo,  e que a juventude, no último período, soube entender a importância disso, embora a USP ainda seja uma universidade profundamente elitista e até o próprio movimento estudantil teve dificuldade de entender a importância de pautar as cotas como uma prioridade”, afirma Beatriz Lourenço do Nascimento, integrante da Frente Alternativa Preta (FAP).
Para Katiara Oliveira, integrante do coletivo Kilombagem, que também integra a FAP, a aprovação das cotas em uma universidade como a USP abre espaço para ampliar a discussão também entre a população preta sobre políticas afirmativas e combate ao racismo.
“Acredito que esta é uma possibilidade de construir um conhecimento de fato democrático, onde pesquisadores pretos possam dar sua contribuição crítica para a história do nosso país. Um conhecimento cuja perspectiva não será apenas da visão do branco, como tem sido nos últimos tempos. A construção do conhecimento em si a partir de um debate real da sociedade brasileira, que é majoritariamente negra, para as próximas gerações serem beneficiadas do que está sendo feito agora.  Outro elemento importante para as mulheres negras, é a possibilidade de pesquisa científica de qualidade e que possibilita alcançar mais as demandas do povo brasileiro”, apontou.
RACISMO E EDUCAÇÃO
O racismo à paulista, no entanto, sempre esteve presente na esfera educacional. Como mostra Petrônio Domingues, em “Uma História não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição“, a escola era reprodutora de discursos e também práticas discriminatórias. Algumas unidades chegavam a inscrever em seus estatutos a proibição da matrícula de negros, independente de sua classe social. Os materiais didáticos retratavam alunos negros como seres inferiores. Apenas na década de 20 um maior número de negros passou a entrar no sistema educacional.